O Facebook está há mais de um mês sob o fogo cruzado das autoridades de proteção de dados na Alemanha. Em dois estados [land] deste país, especificamente. Primeiro, foi o caso do sistema de reconhecimento facial da rede social, no início de agosto, em Hamburgo (cidade-estado desde a Idade Média). Segundo autoridades locais, este violava as leis de privacidade germânicas, publicou no dia 8/8 o Hamburger Abendblatt, periódico daquela cidade.
Depois, no meio de agosto, começou a guerra contra o botão “recomendar” (o polegar para cima) do Facebook: as autoridades de proteção de dados de Schleswig Holstein, estado que faz fronteira com a Dinamarca, decidiram que o plugin do Facebook era um potencial criador de perfis em massa. E que também violava as leis de privacidade locais, informou a revista PC Mag no dia 19 de agosto.
Os encarregados da proteção de dados estavam irredutíveis e proibiram o botãozinho. Sem medo do litígio, imediatamente ordenaram que as agências federais dentro do estado “fechassem suas páginas no Facebook, e removessem os botões ‘recomendar’ de seus sites”, sugerindo que quem usa o Facebook tem sua vida rastreada “por dois anos”, informou o Comissariado para proteção de dados daquele estado. Agências do governo foram avisadas que só poderiam usar o Facebook para negócios oficiais até o final de setembro, sob pena de multa.
O comissário Thilo Weichert, responsável estadual pela proteção de dados dos cidadãos, invalidou o argumento do Facebook que diz que as ferramentas e configurações de privacidade podem ser mudadas pelo usuário, de modo a obter proteção maior ou menor exposição aos anunciantes (e ao próprio site de Zuckerberg). “Não se pode transferir ao usuário a responsabilidade do Facebook”, disse o prudente comissário.
“Histeria de proteção de dados”
O Facebook, entretanto, continuou com seus argumentos pueris. “Firmemente rejeitamos qualquer afirmação de que o Facebook não está de acordo com os padrões de proteção de dados da União Europeia.” E continuaram a afirmar que o botão “‘recomendar’ (like) é tão popular porque as pessoas têm completo controle sobre como suas informações são compartilhadas através dele”. Mas o pessoal de Palo Alto não informou que o plugin também expõe padrões de preferências individuais e que poderia ser usado pela companhia para criar bancos de perfis de usuários.
Mesmo assim, prometeram ler todo o material produzido pelas autoridades de dados do pequeno estado da República alemã, “em nosso próprio nome e em nome de usuários da web em toda a Alemanha”, anotou a PC Mag.
No início de setembro, entretanto, a rede social de Zuckerberg mudou sua estratégia radicalmente. Os alemães estavam prontos a cumprir o que prometeram. Item por item. O semanário Der Spiegel, no dia 8 de setembro, publicou uma reportagem sobre o tour que o diretor europeu para procedimentos públicos do Facebook, Richard Allan, estava a fazer pelo país. Sua primeira parada foi em Schleswig Holstein, onde o comissário Thilo e sua turma o esperavam com um documento de 25 páginas de estudos sobre as coletas de dados que a companhia americana faz de seus usuários, através de cookies e capturas do IP dos mesmos (os primeiros rastreiam os internautas na web; os IPs são séries numéricas que identificam um usuário na rede). A pesquisa revelou que a prática poderia levar à criação de bancos de dados de perfis de usuários, sendo portanto ilegal diante das leis estaduais. O Facebook recusou-se a responder aos questionamentos das autoridades locais alemãs. E o comissário foi acusado, por advogados da web e por blogueiros, de “histeria de proteção de dados” e “inimigo dos negócios”. O impasse estava criado.
A fúria dos protetores de dados
Na quarta-feira (7/9), aconteceu o confronto no Parlamento estadual de Kiel, onde o diretor americano disse que as “críticas de Weichert haviam ido longe demais”, informou Der Spiegel. “O escritório europeu do Facebook, baseado na Irlanda, havia aderido às leis da União Europeia para proteção de dados”, declarou o diretor europeu do Facebook. O comissário alemão ficou imobilizado, sem poder fazer nada por não ter acesso a informações ocultas “por trás da cena”. Mas Allan prometeu “que ele logo receberia a evidência privilegiada”. A audácia do Facebook não tem limites…
Der Spiegel continuou a aprofundar a análise do litígio, apresentando um argumento curioso do Facebook, que afirma que “apesar de diferentes, as leis da Alemanha e da União Europeia só diferem em 1% dos casos”. Sem explicar que justamente este mínimo diferencial poderia fazer toda a diferença neste caso. O comissário Thilo permaneceu irredutível e manteve a proibição e a multa para quem continuasse a usar o botão “recomendar”, pelo menos em seu estado. Para ele, a mega rede social não havia respondido a suas questões.
Não tendo resolvido o caso na esfera estadual, o Facebook apelou para a instância federal. Mas o fez de forma errada. Prosseguindo em sua viagem/lobby de convencimento de autoridades alemãs, Robert Allan foi a Berlim, onde obteve do ministro do Interior, Hans-Peter Friedrich, apoio para um código de privacidade voluntário do Facebook. Que teria ainda uma abrangência legal maior do que as leis da União Europeia. Friedrich gostou da ideia. Aparentemente, a crise da proteção de dados estava encerrada. O ministro do Interior tem seu próprio projeto de regulação das redes sociais para a Alemanha e afirmou que “a iniciativa de autorregulação era bem vinda” e que a atitude do Facebook sem dúvida iria arrefecer a fúria dos protetores estatutários de dados no país. Mas o ministro, cooptado, falava apenas por si mesmo. E por seu projeto pessoal para as redes sociais no país…
Uma vitória estratégica
O comissário de proteção de dados de Schleswig Holstein não gostou nem um pouco da atitude do ministro. Ele estava “fora de sua jurisdição” e de sua “área de atuação”, disse Thilo Weichert. Sua abordagem era ingênua, informou a revista alemã, pois a “autorregulação” pactuada entre os dois era somente voluntária para o Facebook. E isto não mudaria em nada a natureza do problema: a rede poderia passar por cima das leis alemãs, desde que estivesse dentro dos parâmetros estabelecidos pela legislação europeia, “sem participar de acordos voluntários para serviços multimídia existentes na Alemanha”.
Weichert não foi o único a desacreditar a “autorregulação” do Facebook. A ministra da Proteção ao Consumidor, Ilse Aigner (outra grande crítica do Facebook), também demonstrou desconfiança diante do modelo acordado entre a companhia americana e o ministro do Interior alemão. Seu porta-voz assinalou que a solução por autorregulação não alivia o impasse. Não se sabe se é apenas “maquiagem” ou se o Facebook vai realmente melhorar seu sistema de proteção de dados. Segundo o funcionário, a companhia de Zuckerberg “só costuma reagir à pressão massiva de usuários, competidores e autoridades de proteção de dados”. Numa manobra política, a mega rede social iludiu público e governo, assinando um acordo que ela mesma elaborou, contando com o apoio institucional e as garantias do ministro errado. Nenhum acordo foi feito diretamente com as autoridades de proteção de dados, e ninguém garante que o Facebook vai realmente parar de espionar seus usuários. Ou melhor, “melhorar suas condições de segurança”…
Der Spiegel fez a melhor cobertura dos problemas recentes de violação de privacidade pelo Facebook na Alemanha. Revelou o poder gigantesco que a multiplataforma da Web possui neste momento da história da web. Conseguiu derrubar (pelo menos por enquanto) as suspeitas muito bem embasadas dos especialistas estaduais de Schleswig Holstein, apelando para uma autoridade federal. Depois, aparentemente, rendeu-se às pressões alemãs, mas o fez em seus próprios termos. Pelo menos por enquanto, foi uma grande vitória estratégica, pois a História nos mostra que, em se tratando de conflitos, muitas vezes render-se a um antagonista mais poderoso pode trazer muitas vantagens. Desde que os termos da “rendição” sejam ditados pelo “perdedor”…
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[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]