No início deste mês, o sistema de identificação facial do Facebook esteve no centro da atenção da mídia digital online. O sistema de marcação (tags) de fotos do Facebook, além de sua capacidade de fotografar o próprio usuário, já é de conhecimento dos brasileiros há muito tempo. O mesmo sistema que pode tirar sua foto, ou marcar você numa foto de uma festa, pode ler o número do celular para o qual alguém liga, na mesma sala. A ferramenta já está funcionando desde dezembro, mas só chegou à Europa em junho. Por aqui, nunca causou espécie. Lá, provocou controvérsias e advertências de ação legal punitiva.
Zuckerberg tentou minimizar tudo ao dizer que os “usuários gostam” deste recurso. Mas o potencial intrusivo de sua tecnologia foi detectado e desmascarado por pesquisadores de uma universidade da Pensilvânia. Seus perigos já haviam sido desvendados antes. Vamos seguir, em ordem cronológica, porque cinco sites comentaram a notícia: o Wall Street Journal Americas, o Financial Times, o Guardian, o Hamburger Abendblatt e a PCMag (PC Magazine).
O primeiro a comentar o assunto foi o Wall Street Journal, na seção “Américas”, em português, no dia 1º de agosto. Foi a primeira publicação a apontar os perigos da identificação biométrica digital no Facebook. Citou o caso do pesquisador Alessandro Acquisti, que, com uma pequena webcam, conseguiu identificar quase 30% das pessoas que frequentavam o campus de uma Universidade da Pensilvânia. Comparando as fotos com perfis do Facebook, ele conseguiu a proeza de prever, com 67% de certeza, o número do seguro social de cada pessoa identificada.
Sem poderes jurídicos
O professor Acquisti apontou para o risco estratégico do Facebook, “com seus 750 milhões de usuários […], transformar-se numa grande central de identificação social”. Ele comentou o que Eric Schmidt, do Google, já havia afirmado na Conferência D9, na Califórnia, em junho: o ex-CEO do Google acredita que o Facebook é “a primeira forma amplamente disponível de identificação que elimina a ambiguidade”. “Historicamente na internet, um serviço tão fundamental como esse não seria propriedade de uma única empresa […] Acredito que a indústria se beneficiaria de uma alternativa a ele.” Schmidt acredita no potencial do Facebook como “principal plataforma da web sobre identidade social”.
Tenho um problema com o pensamento empresarial de Schmidt: acredito que ele está sendo ingênuo demais porque nossas identidades (mesmo as virtuais) não são produto do Facebook, ou outro ambiente virtual qualquer da web: são produtos de nossas histórias de vida, de nossas experiências pessoais, de nossas vivências. Afirmar que a rede social de Zuckerberg é “ausente de ambiguidades” é pueril e irreal. Muitos retratos que estão lá são falsos. Outros usam “avatares”, figurinhas desenhadas em 2D que representam a pessoa. Outros não usam retratos de si mesmos. Muitos criam identidades falsas.
Não quero subestimar os perigos evidentes da tecnologia de identificação digital visual, mas não posso creditar ao Facebook a capacidade de tornar-se uma autoridade identificadora, acima das agências de identificação nacionais. O Facebook não é um órgão oficial e, portanto, não tem poderes jurídicos para identificar positivamente nenhuma pessoa. Eric Schmidt acredita que uma companhia de mercado possa trabalhar com identidade social. Penso que isso deve ser função do Estado. Mas vamos em frente.
“As pessoas gostam do recurso”
O Financial Times, no dia seguinte, não apenas trouxe comentários, mas um aviso sobre a atenção especial que a identificação visual do Facebook vinha levantando na Alemanha. “A Autoridade de Proteção de Dados, na terça-feira (2/8), arbitrou que o sistema de reconhecimento facial do Facebook, que tenta identificar pessoas em fotos enviadas ao site, viola as leis de privacidade alemãs.” O chefe do órgão, Johanes Caspar, disse que o Facebook não deveria “colecionar dados biométricos dos usuários, como a distância entre seus olhos e a forma de seus rostos”. Exigiu também que o recurso seja mudado ou desabilitado, e que todos os dados sejam apagados. Deu à rede social duas semanas para cumprir suas diretrizes. Medidas legais foram prometidas, envolvendo multa de até 300 mil euros (cerca de R$ 660 mil), caso o Facebook não elimine ou mude seu “recurso”.
A questão é que os alemães ficaram desconfiados com um sistema que, por padrão, recolhia informações de seus usuários sem qualquer comunicação prévia. Estes poderiam desabilitá-lo a qualquer momento, mas, como disse o serviço alemão, o problema não era o reconhecimento facial, mas “o fundo de dados que permitia que um rosto fosse reconhecido” e a coleta de dados sem aviso prévio. A ação da autoridade alemã pode atrair a atenção do “Grupo de Trabalho Artigo 29” (Article 29 Working Party), entidade ligada à União Europeia que orienta a mesma em assuntos envolvendo privacidade e já chamou a atenção do Reino Unido, Irlanda e Alemanha.
O Facebook respondeu que de modo algum esteve a violar as leis europeias de proteção de dados. Pomposamente, anunciou que “vai considerar os argumentos da Autoridade de Proteção de Dados de Hamburgo sobre o recurso da marcação de fotos” e que “também descobriu que as pessoas gostam da conveniência do recurso, que torna mais fácil e seguro para elas manejarem suas identidades online”.
Autoridades irredutíveis
No dia 3/8 foi a vez das anotações do Hamburger Abendblatt, pela manhã, e do The Guardian, à tarde. Os alemães começaram dramaticamente: “No provavelmente maior banco de fotos digitais, estão armazenadas 75 bilhões de fotos. Não foram tiradas por nenhum serviço secreto, mas por milhões de usuários da plataforma Facebook na web. Mas muito raramente algum usuário suspeita.” E continua: “Quando está em rede, um programa de reconhecimento de rostos ‘roda’ no fundo. Se alguém, por exemplo, carrega fotos de uma celebração de aniversário bem alto, o programa examina as características biométricas dos rostos mostrados e os compara com as restantes que o Facebook tem armazenadas.” “Através de concordância mútua, um nome de marcação para a pessoa reconhecida é sugerido”, explicou a rede social. “Então a rede global de amizade torna-se ainda mais coesa”, pensa o Facebook.
Mas o comissário de Hamburgo para proteção de Dados não ficou nem um pouco impressionado. Apontou para o “potencial uso indevido” do reconhecimento facial: “Se dados de usuários acabam em mãos erradas, alguém poderá biometricamente compará-los e identificá-los”, disse o oficial a um jornal matutino. “Com um sistema como este, um regime não democrático poderá identificar opositores e simpatizantes com base num sistema de fotos. Além disso, pode acontecer que autoridades tenham acesso à base de dados. Existe perigo para o direito ao anonimato”, declarou Johanes Caspar. “Há risco de interferência junto ao direito informacional de proteção de dados durante o ato de reconhecimento facial, portanto o Facebook será notificado por escrito para acabar com a coleta indevida de dados e apagar o que já foi gravado”, sentenciou. E tudo deverá acontecer em duas semanas. Ou medidas legais serão tomadas.
Os alemães foram rígidos com o sistema de reconhecimento facial. E a história explica por que: desde o estado nazista de Hitler, até as autoridades repressivas da Alemanha Oriental (leia-se Stasi), a população alemã tem sido manipulada, numerada e controlada pelo Estado. Qualquer coisa que ameace as garantias de sua privacidade é severamente confrontada. Não bastam as desculpas do Facebook, nem o fato do dispositivo poder ser desativado a qualquer momento; o indivíduo tem que ser informado e consentir o uso de suas imagens. As autoridades alemãs estão irredutíveis e não vão ceder um milímetro sequer.
Liberdades e direitos individuais
No mesmo dia, mais tarde, The Guardian apresentou seu artigo, sem muitas diferenças do periódico alemão. Fez um resumo do protesto de Johanes Caspar e lembrou o caso do Google, que também teve problemas na Alemanha quando tentou filmar suas ruas para o Google Street View (outro programa perigoso e invasivo) e foi repelido pelas autoridades locais. Nada mais distingue a reportagem do que já havia sido dito no jornal alemão e nas outras publicações.
A revista PCMag, no dia 4 de agosto, apresentou seu ponto de vista. Nada de novo, outra vez. Informou que o reconhecimento facial havia sido implantado em dezembro e introduzido na Europa em junho deste ano. Apontou para o furor que sua introdução no continente causou, despertando o interesse de vários países, como já havia informado o Financial Times. Mas sua contribuição mais importante foi trazer a posição da legislação norte-americana, no que diz respeito à proteção de dados. “A diretiva de 1995”, publicou a revista, “ requer o consentimento da pessoa no uso de seus dados. Companhias que processam dados pessoais devem avisar seus usuários como esta informação está sendo usada e se é passada para outros indivíduos ou companhias.”
A revista também lembrou que o Grupo de Trabalho Artigo 29 (Article 29 Working Party) está a estudar uma reforma para proteção de dados na Europa ainda este ano. “Os desafios na proteção de dados resultante das novas tecnologias, como computação em nuvem e sites de redes sociais, são uma das razões centrais para a reforma”, informou o porta-voz do grupo.
Dos cinco periódicos, o Hamburger Abendblattapresentou a cobertura mais aprofundada. Caracterizou melhor o perigo do “inocente” recurso do Facebook. Talvez por seu passado doloroso, em que a invasão à privacidade era norma, os alemães desenvolveram um senso de proteção muito forte no que concerne o direito à vida privada. Qualquer tentativa de violar os atuais parâmetros legais de proteção de dados e a privacidade dos cidadãos alemães será enfrentada em todos os níveis: sociais, estatais e legais.
Se a internet, para muitos, borra ou mesmo apaga as fronteiras nacionais, o caso da identificação facial do Facebook indica que as tradições históricas locais ainda serão, por muito tempo, determinantes no que diz respeito à proteção das liberdades e direitos individuais. E que identificação social é um tema importante demais para ficar nas mãos do mercado.
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[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, concultor e tradutor]