Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Falhas de segurança nas urnas eletrônicas

O autor deste artigo atua como representante técnico de alguns partidos políticos junto a Justiça Eleitoral brasileira, onde teve acesso a informações sobre o projeto interno das urnas eletrônicas. Para tanto teve que assinar um termo de compromisso de manutenção de sigilo de maneira que não pode divulgar informações que obteve dentro daquele órgão oficial.

Desta forma, as informações sobre o projeto das urnas-e brasileiras aqui apresentadas são apenas aquelas que podem ser obtidas em documentos e em procedimentos públicos como:

** Resoluções e Instruções do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)

** Descritivos técnicos incluídos nos editais de concorrência para o fornecimento de urnas eletrônicas

** Relatórios técnicos oficiais apresentados por entidades acadêmicas (UNICAMP, SBC e COPPE-UFRJ)

** Artigos técnicos de terceiros apresentados em congressos e na Internet

** Cerimônias públicas de carga, teste e lacração de urnas eletrônicas

** Laudos de Perícias em processos públicos na Justiça Eleitoral

Introdução

No dia 11 de maio de 2006, foi tornado público pela ONG Black Box Voting (BBV) a segunda parte do relatório do especialista em informática Harri Hursti contendo análise e testes livres desenvolvidos sobre as maquinas eletrônicas de votar modelos TSx fabricadas pela empresa Diebold e vendidas nos EUA e no Canadá, onde cobrem em torno de 30% daqueles mercados.

Estes tipos de testes livres de ataque são tecnicamente denominados ‘Teste de Penetração’ e o Relatório Hursti foi separado em duas partes que descrevem testes diferentes.

A conclusão básica destes relatórios é que existem falhas de segurança nos projetos e construção das máquinas de votar americana-canadenses da Diebold que permitem que o programa de votação possa ser adulterado para modificar o resultado da apuração dos votos.

A primeira parte do Relatório Hursti, de dezembro de 2005, descrevia como foi possível adulterar os programas das máquinas de votar de Diebold utilizadas no município de Leon, na Flórida, de forma a fraudar uma votação. A conseqüência imediata da publicação deste relatório foi a demissão do presidente da Diebold que, até então, afirmava ser impossível se fraudar suas máquinas de votar.

A repercussão do segundo relatório na imprensa americana foi rápida e intensa como pode ser visto no The New York Times, no The Register e no The Beacon Journal.

Como a empresa Diebold possui quase 90% do mercado brasileiro de urnas eletrônicas, onde com a marca Diebold-Procomp produziu 375 mil das 426 mil urnas eletrônicas que serão utilizadas nas eleições presidenciais brasileiras de outubro de 2006, se faz necessário analisar se as falhas de segurança apontadas nos Relatórios Hursti também existem nos modelos de urnas eletrônicas fornecidas no Brasil.

A Análise Hursti – parte 2

A segunda parte do Relatório Hursti foi desenvolvida sobre máquinas de votar TSx da Diebold, fornecidas para o município de Emery, no estado de Utah. Foi tornado público com quase 50 expressões censuradas (substituídos pela expressão ‘redacted‘) pelos responsáveis da BBV, em virtude de conterem informações que, porventura, poderiam facilitar o uso escuso por terceiros em eleições futuras.

O relatório conclui pela existência de graves falhas de segurança que permitem a adulteração dos programas de votação de forma a fraudarem uma eleição futura.

Os porta-vozes do fabricante estão se defendendo afirmando que:

** não existem provas de fraudes já ocorridas em eleições regulares;

** as vulnerabilidades encontradas são ‘teóricas’ e são baixas a probabilidade de virem a ser exploradas;

** e a ‘pérola’ das tergiversações onde se disse que: ‘Está se supondo que funcionários eleitorais diabólicos introduziriam software malicioso nos equipamentos. Eu não acredito que estes funcionários eleitorais diabólicos existam!’

Pode parecer trivial afirmar que um programa de computador possa ser adulterado com finalidades maliciosas, mas a análise do Sr. Hursti é mais rigorosa e completa, afirmando além disso que as falhas de segurança encontradas nas urnas-e modelos TSx da Diebold:

a) permitem que as alterações possíveis não só desviem os votos como também enganem os testes de verificação de integridade regularmente desenvolvidos como as simulações de votação e as verificações de assinaturas digitais e resumos ‘Hash‘;

b) foram introduzidas, em parte, de forma intencional pelos projetistas para facilitarem os serviços de atualização do software;

c) possibilita a modificação dos programas em três níveis de controle diferentes (sistema inicializador, sistema operacional e programas aplicativos) de forma que as adulterações possam até sobre-existir a futuras atualizações, recontaminando automaticamente as máquinas.

A possibilidade de modificação dos programas de computador das urnas eletrônicas não seria problema grave se estas máquinas propiciassem alguma forma de se auditar o resultado final da contagem dos votos. Por exemplo, o voto impresso conferido pelo eleitor emitido pelas urnas modelo SAES3000 da empresa Smartmatic, que foram utilizadas nas eleições de 2004 e 2005 na Venezuela, permitiu a auditoria da apuração eletrônica dos votos solicitada pela OEA e pela Fundação Carter e, se houvesse adulteração dos programas de votação, a fraude teria sido detectada.

Porém, as máquinas da Diebold, tanto as disponíveis nos EUA como as brasileiras, não fornecem esta alternativa de auditoria da apuração dos votos de forma que a confiabilidade do seu software é tudo que poderiam dar como garantia de uma justa apuração.

Assim, se nestas máquinas o software das máquinas pode ser modificado à revelia do fabricante, cai por terra qualquer possibilidade de se afirmar a confiabilidade de tais equipamentos.

Entre as falhas de segurança do modelo TSx da Diebold estão:

** o sistema de inicialização (boot) pode ser modificado por software;

** é possível se modificar os programas internos por meios digitais externos;

** o Sistema Operacional (Windows CE) não possui recursos de segurança fortes;

** o sistema de lacres físicos são ineficientes e o gabinete é fácil de abrir sem nada destruir;

** é possível se reconfigurar os recursos de segurança por meio de ‘jumpers‘ na placa-mãe;

** existe um conector interno para cartões de memória multimedia;

** o botão externo de teste de bateria pode ser explorado em ataques disparados pelo eleitor;

resultando que são necessários menos de cinco minutos para se contaminar uma máquina sadia.

O modelo das urnas-e brasileiras

O projeto dos modelos 1998, 2000, 2002, 2004 e 2006 das urnas-e brasileiras são totalmente controlados pelo corpo técnico do TSE de forma que as 51 mil fornecidas pela Unisys (modelo 2002) e as 375 mil urnas fornecidas pela Diebold (demais modelos) possuem exatamente as mesmas características de funcionamento, de usabilidade e de segurança.

Diferente dos modelos TSx americanos que, para interação com o eleitor, possuem tela e teclado integrados (touch-screen), os modelos brasileiros possuem um teclado numérico fixo e uma tela de cristal líquido separados e dispostos num mesmo desenho patenteado pelo seu primeiro projetista, o Eng. Carlos Rocha.

Os modelos 1998 e 2000, que representam 2/3 das urnas-e brasileiras, possuem Sistema Operacional VirtuOS, semelhante ao antigo DOS ampliado com funções multitarefa, e os modelos seguintes possuem o mesmo Windows CE dos modelos TSx americanos.

Por uma questão de padronização da interface com o eleitor e como o VirtuOS tem recursos visuais muito limitados, todas as urnas brasileiras trabalham com tela totalmente em formato de texto (DOS-like) sem os recursos de ‘janelas’ do Windows.

Esta impossibilidade de configuração da tela como teclado é que provocou as dificuldades durante a votação do Referendo de 2005 porque o teclado fixo não possui as teclas ‘SIM’ e ‘NÃO’ que seriam necessárias.

As características de segurança das urnas-e brasileiras

No Brasil, o TSE acumula funções como a regulamentação da fiscalização, a administração do processo eleitoral e o julgamento que qualquer recurso em matéria eleitoral até mesmo aqueles que sejam contra seus próprios atos administrativos.

Devido à natureza humana, este acúmulo de poderes, inexistente em regimes democráticos maduros, naturalmente leva ao autoritarismo e a falta de transparência. Por este motivo, pedidos oficiais de Testes Livres de Penetração, apresentados repetidas vezes por alguns partidos políticos, têm sido sistematicamente indeferidos por este superórgão eleitoral pelo simples fato de que ele tem poder de centralizar a decisão e impedir tais testes.

Assim, inexistem relatórios no Brasil que sejam similares aos Relatórios Hursti, mas ainda é possível se descobrir as fragilidades das urnas-e brasileiras pela análise de documentos oficiais públicos como as especificações técnicas em concorrências para o fornecimento de urnas e laudos de perícias técnicas ocorridas dentro de processos judiciais.

Desta forma, se pode afirmar que são muito similares os recursos de segurança (e de insegurança) das urnas eletrônicas brasileiras quando comparadas com o descrito do Relatório Hursti sobre o modelo TSx da Diebold, pois:

** não emitem o voto impresso conferido pelo eleitor que permita auditoria da contagem dos votos, de forma que são altamente dependentes da confiabilidade do software;

** possuem chip da BIOS (com inicializador) preso em soquete e regravável por software, como especificado nos editais de concorrência;

** possuem ‘extensão de BIOS‘ habilitada por jumper na placa-mãe (informação obtida na perícia das urnas-e utilizadas no recadastramento no município de Camaçari, BA, onde a extensão da BIOS estava desabilitada) que permitem a inicialização (boot) a partir do soquete externo para cartão de memória flash-card;

** é possível a execução de software ‘batch file‘ gravado em disquete conforme descrito no Relatório Unicamp;

** o programa aplicativo que verifica a integridade interna do sistema é extremamente vulnerável a adulterações como revelado na análise do Prof. Pedro Rezende;

** o sistema de lacres e de fechamento do gabinete são simples e permitem acesso ao soquete do cartão de memória interno, conforme descrito nolaudo da perícia no município de Sto. Estevão, BA;

** possuem o mesmo botão externo de ‘teste de bateria‘ dos modelos americanos.

Este conjunto de características de (in)segurança das urnas brasileiras as tornam tão passíveis de fraudes quanto suas similares americanas.

A possibilidade de inicializar (boot) as urnas-e brasileiras através de cartão de memória instalado no soquete externo é uma enorme falha de segurança pois o programa que comanda o boot pode fazer o que se quiser a seguir, inclusive adulterar todo o software interno anteriormente instalado. Agravando esta situação, este recurso foi implementado propositadamente pelos projetistas do sistema para se poder fazer a atualização simplificada do programa de votação nas urnas-e, como se conclui analisando-se os procedimentos (públicos) de carga e recarga do software, como a seguir descrito:



i) Procedimentos de carga normal das urnas:

** É feito por meio de um cartão flash-card ‘de carga’ que é colocado no conector externo das urnas-e. Ao se ligar as urnas com este dispositivo de memória instalado se pode ver que o boot é dado pelo drive D: (conector externo para flash-cards), que então copia todo o software oficial para o flash interna das urnas-e;

** durante esta instalação é apagado tudo que tinha no flash-card interno, exceto (a partir de 2004) o arquivo de log com eventual carga anterior do mesmo sistema;

** neste arquivo de log são lançadas as informações da carga atual pelo próprio programa de instalação (que está gravado no flash-card externo) como se pode deduzir no item (ii) seguinte;

** depois da carga, o flash-card externo é substituído por outro sem sistema de inicialização de forma que, durante a eleição/votação, a inicialização passa a ser controlada pelo software instalado no flash-card interno.



ii) Procedimentos de carga excepcional utilizado em 2002:

** Em 2002, o software de votação utilizado no 1º turno apresentou falhas intermitentes que levaram a modificações para a votação do 2º turno. A instalação deste novo software foi feita de uma forma diferente da instalação normal. Um novo flash-card de carga foi preparado e, quando colocado no soquete externo das urnas-e, apenas trocava o software de votação defeituoso pela nova versão, ‘preservando-se’ todos os demais dados e arquivos gravados no flash-card interno durante o primeiro turno, e lançando no arquivo de log uns eventos diferentes do programa de carga normal.

Observação: o destaque na palavra preservando-se foi dado porque, naturalmente, os fiscais externos não tinham como saber se os dados anteriores eram mesmo sendo preservados ou não, especialmente depois do caso das Dança dos Hashs denunciada por um membro do Fórum do Voto-e, quando se descobriu que havia diferenças entre as assinaturas hashs no sistema final instalado nas urnas e o que fora apresentado aos fiscais na sede do TSE antes da nova carga.

Estes dois procedimentos, normal e excepcional, de carga das urnas-e brasileiras demonstram que é perfeitamente possível se instalar software integral ou parcialmente nas urnas-e pelo uso de um flash card externo devidamente preparado e que os registros no tal arquivo de log é totalmente controlado pelo próprio programa no soquete externo.

Para piorar, é este mesmo software externo, que é passado para a memória interma, que comandará a máquina durante a votação, durante a apuração e, pasmem, durante os testes de verificação da assinatura digital permitido aos fiscais externos.

Quer dizer, um programa ‘bem preparado’ instalado via flash-card externo poderá burlar tanto a apuração dos votos como os testes de confiabilidade também…

Conclusões

Parece mais que simples coincidência as semelhanças entre as falhas de segurança nas urnas-e brasileiras e americanas da Diebold, que por um lado são tão dependentes da segurança do software mas por outro lado permitem que este software seja adulterado por agentes externos.

No Brasil se desenvolveu uma imagem positiva das urnas eletrônicas, apesar destas não permitirem auditoria da apuração dos votos. Os recursos de segurança aqui aplicados, mesmo não sendo suficientes do ponto de vista estritamente técnico, foram suficientes para convencer os eleitores por meio de publicidade que repetia insistentemente utilizar ‘avançados recursos tecnológicos de assinatura digital e de criptografia’.

O público leigo não entende direito para o que isto serve mas acreditou nos chavões de que as urnas eletrônicas ‘são 100% seguras’ e que ‘acabaram as fraudes eleitorais’.

A Diebold conhecia o sucesso, até o momento, desta experiência social, onde recursos de segurança eram usados não com eficácia mas apenas como meio de publicidade ilusória. É natural que tentasse a mesma ‘estratégia’ nos EUA.

Mas a inexistência, nos EUA, de um órgão central com superpoderes como a Justiça Eleitoral brasileira parece estar criando dificuldades à estratégia que aqui vingou.

No Brasil, o TSE conseguiu, desde 2000 até hoje, impedir por meio de decisões obscuras e autoritárias que fosse feita qualquer tipo de análise livre se suas urnas, como a análise do Sr. Hursti, e continua escondendo, dos eleitores desatentos, as fragilidades de seu sistema eletrônico de votação.

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Engenheiro especializado em segurança de dados, especialmente em auditoria do sistema eletrônico de votação. É representante técnico junto ao TSE de diversos partidos políticos e é fundador e atual supervisor do Fórum do Voto Eletrônico.