Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Falta memória aos editores

Talvez a falta de editores que conservavam a memória viva do jornal possa ter levado O Estado de S.Paulo a se esquecer das suas próprias reportagens. O editorial ‘Advertência do cacique caiapó’ (30/5) menciona um protesto indígena em Cuiabá, argumentando que ‘pouco se falava’ das etnias irantxe e mynky.

Se consultar arquivos da casa, o editorialista irá constatar que os münkü – e não mynky – habitavam inicialmente o Vale do Rio Juruena, próximo à barra do Rio Papagaio, na altura do Paralelo 12. Usavam machados de pedra quando foram respeitosamente contatados em 1971, na Amazônia Mato-Grossense, pelo sacerdote jesuíta Thomaz de Aquino Lisbôa.

Ao mesmo tempo se surpreenderia ao constatar que na manhã do dia 7 de maio de 1974 lá estava entre os münkü o jornalista Mário Chimanovitch, na época correspondente em Cuiabá. No dia seguinte, o Estadão trouxe a primeira de uma série de denúncias sobre o ato de violência do fazendeiro Mauro Tenuta contra a demarcação do território indígena.

Logo, o ‘pouco se falava’ do editorial provavelmente talvez retrate o limitado mundo paulistano do editorialista – que nunca pisara o nortão de Mato Grosso, tampouco conhecera quem trabalhou para o centenário jornal na época em que Raul Martins Bastos chefiava o Departamento de Produção, junto com Ademar Orichio, Moacir Carmo, Ariovaldo Bonas e equipe.

Influência do Concílio Vaticano II

Isso foi nos anos 1970, alegaria. Mas a história do jornal é eterna e por obrigação profissional e respeito aos leitores ele tem de conhecê-la, antes de escrever a sua principal opinião, na nobre página três. Obrigatoriamente, deve também se lembrar das noções elementares de história e geografia aprendida nos bancos escolares.

A missão dos jesuítas começou juntamente com a Prelazia de Diamantino, em 29 de março de 1929. Em 1979, oito anos após o contato, Thomaz de Aquino lembrava que a mentalidade tradicional da missão jesuíta era ‘amansar’ os índios ‘bravios’ e ‘ferozes’, ‘civilizá-los’ e ‘cristianizá-los’, fundando um posto missionário entre eles e levando as crianças a passar pelo internato no posto central de Utiariti, no Rio Papagaio.

Em 1969, a missão já contava com duas ‘pacificações’: a dos índios Kayabi, do Rio Tatuí (anônimo, 1959), e a dos índios Rikbátsa (João Evangelista Dornstauder, 1955). Mal terminara essas ‘pacificações’, Utiariti recebeu crianças desses dois povos indígenas. O posto missionário Tatuí funcionava para os Kayabi e o posto missionário Barranco Vermelho para os índios Rikbaktsa, no Rio Juruena.

Anteriormente, conforme relatou o sacerdote, houve duas tentativas de ‘pacificar’ os índios então desconhecidos do Paralelo 12: uma em 1960 e outra em 1961, iniciadas sem êxito pela missão. Nem encontraram as aldeias. Ainda o relato de Thomaz de Aquino: ‘A partir de 1964, a missão experimentava uma mudança de mentalidade: os missionários recém-chegados traziam agora princípios de antropologia e na formação, a influência decisiva do Concílio Vaticano II, e se esforçavam por mudar as bases missionárias tradicionais, visando a uma valorização decidida da vida indígena, do homem índio.’

Mito dos ‘índios gigantes’

Em meados da década de 1970, os padres Adalberto Holanda Pereira e Antônio Iasi Júnior (fundador do Conselho Indigenista Missionário), Ivar Luís Busatto, Aldir Mariano da Costa e o irmão Vicente Cañas colaboraram decisivamente no contato e na demarcação das terras dos índios münkü e salumã. Para contribuir com a memória dos editorialistas do Estadão, acrescento que Oscar Ramos Gaspar, outro correspondente do jornal, também escreveu matérias a respeito dos münkü, salumãs e rikbátsas.

Outro contacto esquecido nas páginas: o dos índios Kreen-akarore (na verdade, Panará), em 1973, cuja cobertura se tornou fonte indispensável de consulta. Há quase seis anos, ao lembrar os feitos dos sertanistas e irmãos Villas-Bôas, o Estadão mencionou-o em seu portal na internet. O contato ocorreu na bacia do rio Peixoto, de Peixoto de Azevedo, perto da BR-163 (rodovia Cuiabá-Santarém). As primeiras fotos foram feitas pelo lendário Orlando Villas-Bôas, então na Funai.

Logo no início da descoberta começaram a chamar os Panarás de ‘índios gigantes’. Constatou-se em seguida que poucos eram altos e o mito, disseminado pelo próprio Estadão, caiu por terra.

A ‘conquista amazônica’

Segundo o jornalista Lúcio Flávio Pinto, que trabalhou no jornal durante quase duas décadas, o primeiro repórter a ser enviado à selva mato-grossense foi José Marqueiz, da sucursal do jornal no ABC. Lúcio estava na redação em São Paulo e o estimulou a manter a cobertura. Em seguida, foi escalado Luiz Salgado Ribeiro, da editoria de País.

Iria Lúcio, mas o Estadão precisou dele na capital paulista. ‘Só fui bem depois. Lembrei o episódio um pouco antes da morte de Orlando. Nós nos encontramos num seminário promovido pelo Instituto Socioambiental, em São Paulo’. Orlando morreu em 2003, aos 88 anos, no Hospital Albert Einstein.

A expedição, chefiada pelos irmãos Orlando e Cláudio Villas-Bôas, foi a responsável pelo contato com os Panarás. Estavam doentes, febris e só então se deixaram vacinar. Os dois irmãos de Orlando, Leonardo e Cláudio, morreram em 1961 e 1998. Durante anos, foram notícia no Estadão. O site do jornal colocou a história dos Villas-Bôas no ar, mas o jornal e a recém-lançada revista de reportagens estão devendo uma edição especial sobre esse aspecto da ‘conquista amazônica’ na qual o índio sempre levou a pior.

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Repórter e editor da Agência Amazônia em Brasília, DF