‘Há algo de podre. E não é na Dinamarca.
Pressão do governo espanhol sobre jornais locais e estrangeiros mostra que havia expectativa de derrota na eleição que se avizinhava
A denúncia de que o governo espanhol conservador, através de seu primeiro-ministro, José Maria Aznar, fez pressões sobre os jornais para que responsabilizassem o ETA pelos atentados de Madri, quando as evidências apontavam para a Al Qaeda, só confirma a situação de desespero em que se encontrava o PP em vista da eleição próxima, em que perderam para os socialistas.
Aznar telefonou para o El País, jornal mais importante da Espanha, garantindo que a autoria do atentado era do ETA. Telefonou também para outros jornais, inclusive do exterior, manifestando a mesma opinião. Só a expectativa de uma derrota, ao contrário do que tinham apontado as pesquisas de opinião, poderia levar um dirigente tarimbado a cometer um gesto tão aloucado.
Mas é importante também considerar que o motivo do telefonema, além do desespero em causa, só pode ter sido a expectativa de em tais jornais encontrar não só interlocutores, mas amigos e aliados. E encontrou! O próprio El País publicou edição especial responsabilizando o ETA: ‘Massacre do ETA em Madri’ era a manchete, em letras garrafais.
O diretor do jornal disse que o primeiro-ministro era uma fonte confiável. Caramba! Devemos, se o critério do jornal for esse, recomendar a todos os governantes do mundo que liguem para o El País e digam o que quiserem: são fontes confiáveis.
Já vimos o filme. Em 1989, às vésperas do segundo turno, um grupo político algo inverossímil seqüestrou o empresário Abílio Diniz. A polícia estourou o cárcere privado, libertando o empresário, mas depois fez estrepolias, chegando a vestir camisetas do PT nos seqüestradores. A armação era evidente. Mas muitos jornais pelo país afora estamparam as fotos e culparam o PT pelo seqüestro, isso sem falar em outras manipulações, como a da Rede Globo sobre o último debate entre Lula e Collor.
Repito o que afirmei na coluna anterior: a atitude de Aznar e do PP só pode ter sido ditada pelo conhecimento de algo que as pesquisas não tinham apontado, ou por não captarem ou por ocultarem.
Há algo de podre. E não é na Dinamarca.
P. S. – Leitores me lembraram de que o verso citado em meu artigo anterior (‘A Espanha de Franco, não!’) é do Manuel Bandeira. Obrigado.
Kátia Mello
‘Reação cidadã’, copyright IstoÉ, 22/03/04
‘Existem algumas lições emblemáticas da cultura democrática. Certamente a vitória do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) sobre o Partido Popular (PP) nas eleições gerais do domingo 14 será lembrada como uma delas: um eleitorado civilizado suporta cada vez menos a mentira e a manipulação. Três dias depois dos atentados que mataram 202 pessoas, entre elas o brasileiro Sérgio dos Santos Silva, e feriram mais de 1.600 nas estações de trem de Madri, a população foi às urnas para rechaçar a conduta do governo nas investigações sobre os responsáveis pelas atrocidades. Os espanhóis se sentiram vítimas de uma manobra política do primeiro-ministro Jose María Aznar, que se apressou em responsabilizar o grupo terrorista basco ETA pelos ataques. Se fosse a ETA, como anunciaram precipitadamente as autoridades espanholas, as políticas do PP de forte repressão à organização basca, como o banimento de seu braço político, o Batasuna, e a série de encarceramentos de membros da ETA seriam aplaudidas nas urnas. Se fosse a Al-Qaeda, como já apontavam os indícios da investigação na véspera da votação, o governo sairia derrotado porque a política de alinhamento com o presidente americano, George W. Bush, e seus falcões na guerra contra o Iraque, era malvista pela maioria esmagadora dos espanhóis.
Uma semana antes das eleições, os espanhóis estavam dispostos a renovar o mandato do PP. Mas, depois do engodo, os eleitores não perdoaram os governantes. O que mais irritou o eleitorado foi o fato de Aznar ter ocultado informações disponíveis pelo governo, que indicavam o envolvimento de um grupo islâmico nos atentados. Entre elas, uma fita de vídeo encontrada em uma lata de lixo em que a Al-Qaeda reivindica o atentado. A virada eleitoral veio então de forma inesperada, pegando de surpresa até o próprio candidato vencedor, o socialista José Luis Rodríguez Zapatero, que bateu o candidato de Aznar, Mariano Rayoa, com 42,64% a 37,64% dos votos.
Nessas eleições espanholas, a política venceu a economia. Isso porque, sob o timão dos conservadores, o navio econômico navegava em águas tranquilas. Em oito anos de governo conservador, o desemprego caiu de 22% para 11% e foram criados 4,5 milhões de empregos. A inflação se estabilizou em 2,6% anuais e a casa foi colocada em ordem, com o acerto das contas públicas. Mas o interesse em viver com segurança passou a ser a maior prioridade dos cidadãos espanhóis. E hoje isso independe de quem está no poder, até porque o terrorismo do Al-Qaeda não é apenas um reflexo da guerra contra o Iraque, mas também da espiral crescente do fundamentalismo islâmico. ‘A invasão do Iraque não tem nada a ver com o terror. Os EUA lideraram uma invasão a um país islâmico que não tem armas de destruição em massa nem vínculos importantes com a Al-Qaeda. Creio que os espanhóis se deram conta de que Bush os enganou para que o país entrasse na guerra sob o falso pretexto e isso os tornou alvo do terror’, disse Peter Singer, professor catedrático de Ética da Universidade de Princeton.
É certo que as trapalhadas de Bush no Iraque caíram como uma luva para os extremistas islâmicos. Em seus primeiros discursos, o futuro primeiro-ministro Zapatero reforçou sua promessa de campanha ao afirmar que irá retirar os 1,3 mil soldados do Iraque até 30 de junho – a não ser que as Nações Unidas assumam o controle do país. Os soldados espanhóis formam apenas 1% do efetivo das tropas estrangeiras no Iraque, mas é um gesto político significativo porque determina o novo rumo da política externa da Espanha. ‘O terrorismo se combate com o Estado de Direito, com a legalidade internacional, com os serviços de inteligência’, disse o futuro premiê. Acusando Aznar de ações ‘unilaterais, tomadas de costas para os cidadãos’, Zapatero afirmou que estará mais inclinado ao ‘diálogo’ para apresentar soluções de combate ao terror. Depois dos atentados, Bush perdeu o fiel aliado Aznar e, para tentar recuperar sua posição, condenou a atuação do governo espanhol ao dizer que este manipulou as informações sobre os ataques. ‘A votação que levou os socialistas ao poder foi um protesto do povo contra a manipulação do evento terrorista pelo governo’, afirmou o subsecretário de Estado americano, Richard Armitage. O que os EUA temem é que haja um efeito dominó de retirada de tropas do Iraque. Com as barbas de molho, o primeiro-ministro da Itália, Silvio Berlusconi, que assim como Aznar enviou tropas ao território iraquiano sem a aprovação da população, ameaçou retirar os três mil soldados italianos do Iraque.
A União Européia, que se mostrou cindida durante a guerra do Iraque, tenta agora se unir em volta de métodos mais eficientes para combater o terrorismo. Itália, Espanha, Polônia e Reino Unido foram aliados dos EUA, enquanto França e Alemanha lideravam o coro dos descontentes.
Mas a cisão no seio da família européia não foi causada pela guerra. Desde a queda do Muro de Berlim, quando o Ocidente deixou de ter um inimigo comum, os países europeus não falam nem no mesmo tom nem no mesmo ritmo. São vozes em desafino que se reúnem dependendo da ocasião. Mas agora, com a ameaça terrorista batendo à porta, os europeus deverão deixar de lado algumas divergências. Zapatero terá que encarar, em conjunto com os demais países europeus, um terrorismo muito mais sofisticado e letal do que o da ETA. ‘É prioritário criar um novo modelo de segurança muito mais firme ante o desafio do terrorismo’, afirmou o futuro primeiro-ministro. Acrescentou ainda que ‘o modelo atual é deficiente em matéria de coordenação policial.’
Enquanto isso, o agonizante governo Aznar tenta mostrar serviço. Além dos cinco (quatro árabes e um espanhol) detidos no dia do atentado, foram presos mais três marroquinos e dois indianos, elevando o número de suspeitos detidos para dez. Os marroquinos Jamal Zugam, Mohamed Bekkali e Mohammed Chaui são acusados de pertencer a uma organização terrorista e de ter envolvimento em 90 assassinatos e 1.400 tentativas. Zugam, dono de uma loja de celulares, é suspeito de ser ligado a Abu Dahdah, considerado o líder do Al-Qaeda na Espanha e acusado de ser o responsável pelo atentado em Casablanca em maio passado.
Enquanto a investigação prossegue, o Velho Continente tenta evitar novas tragédias. Reino Unido, Itália e até França e Alemanha temem possíveis atentados e reforçam seus esquemas de segurança. A Comissão Européia afirmou que, das dez medidas de segurança aprovadas depois do 11 de setembro de 2001, muitas ainda não foram implementadas na maior parte dos 15 países-membros. Entre as novas ações do bloco europeu deverá estar um banco de dados com informações sobre os principais terroristas procurados e os tipos de armas e explosivos usados nos últimos atentados. A França – que foi contra a guerra do Iraque, mas baniu o véu das escolas irritando a comunidade muçulmana – traça um plano de segurança nacional envolvendo 2.500 policiais e 600 soldados para patrulhar as estações de metrô e trem de Paris.
É a Al-Qaeda , estúpido!
Os atentados de Madri vêm mostrar que os terroristas da Al-Qaeda foragidos do Afeganistão continuam aptos a realizar as piores atrocidades. A verdade é que, neste aniversário de um ano da invasão do Iraque, os EUA estão longe de combater os verdadeiros terroristas que atacaram seu território. Dos 20 mil a 70 mil homens treinados pela organização nos anos de Taleban, apenas três mil foram presos. ‘Os americanos têm todos os relógios, mas nós temos o tempo’, ironizaram certa vez os seguidores de Osama bin Laden. Como disse o analista britânico Michael Clark, do King’s College em Londres, ‘a Al-Qaeda é disciplinada, coesa e seletiva na admissão da organização’. Nem mesmo o anúncio do Paquistão de que teria cercado o segundo homem do Al-Qaeda, o egípcio Ayman al-Zawahri, aliviou as tensões. Para piorar ainda a situação, as operações terroristas de grande impacto custam pouco. O ataque ao navio USS Cole, em 2000, e a Bali, em 2002, custaram cerca de US$ 70 mil. O horror de 11 de setembro requereu meio milhão de dólares, mas deixou um prejuízo de US$ 40 bilhões, para as seguradoras, e US$ 160 bilhões em perdas comerciais.’
Mario Sergio Conti
’14 de março: o fim de Aznar’, copyright No Mínimo (http://nominimo.ibest.com.br), 20/03/04
‘Na terça-feira, 9 de março, o ‘Monde’ publicou uma entrevista extraordinária com o chefe do governo espanhol, José Maria Aznar. Ela era tão interessante que servia de manchete principal da primeira página, e ocupava quase duas páginas internas, o que é raro no ‘Monde’. Impressionado com o que Aznar dizia, com o retrato que ele pintava de si mesmo, mandei a entrevista para um amigo jornalista, um dos mais respeitados colunistas brasileiros. O amigo também se impressionou, e muito: avisou que escreveria sua próxima coluna sobre Aznar.
O mote da entrevista era a estranha decisão do chefe de governo: abandonar definitivamente a política dali a cinco dias, logo depois das eleições. Estranhíssima, na verdade. Com 51 anos, Aznar era um político relativamente jovem e decididamente vitorioso. Durante seus oito anos no governo, a Espanha teve um surto de desenvolvimento que provocou a criação de quatro milhões de empregos. (No Brasil, equivaleria a criar quinze milhões de novos postos de trabalho).
Aznar explicava também por que, contra 90% da opinião pública espanhola, apoiou a ocupação do Iraque. E se mostrava como um político reto e seguro, que não ligava para o marketing nem fazia demagogia.
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Alguns trechos:
‘Sou jovem, mas penso primeiro no meu país e no meu partido. Deixar o poder voluntariamente é o que posso fazer de melhor no momento. Minha decisão é fruto de uma reflexão política e de um engajamento moral.’
‘Desde que cheguei aqui, a Moncloa (o palácio do governo), nunca deixei de pensar, cada dia, cada instante, no momento em que eu partiria. Jamais tive uma decisão tão difícil. O fácil teria sido ceder à tentação de continuar; de escutar aqueles que dizem que você é insubstituível, e eles são muitos.’
‘Se essa fosse a minha intenção (a de retornar à política no futuro, num momento de crise), eu não teria abandonado a direção do partido. Não creio em salvadores. Quando eles aparecem, é porque o país vai mal. Prefiro as democracias estáveis aos homens providenciais.’
‘Faço o que acredito que deva ser feito, pensando estritamente no interesse geral e no interesse do meu país. Agi ao mesmo tempo por realismo e convicção. Minha escolha foi pelo bem da Espanha. Vejo o mundo como ele é. Prefiro isso às grandes construções intelectuais, que podem se revelar ilusórias’ – sobre o alinhamento com George W. Bush.
‘Para dirigir bem um país há duas condições indispensáveis: a capacidade de decisão e convicção. Não se pode se deixar influenciar por todos os ventos ou flutuar como uma rolha, ao sabor das marés. Os que seguem os ventos e marés não são líderes, são cata-ventos’ – sobre a decisão de afrontar a opinião pública e apoiar a guerra no Iraque.
(A ausência de carisma) ‘não tem importância. Seria como criticar Zidane por ele não ter cabelo. Os líderes necessários são aqueles que têm idéias e convicções. Quanto à simpatia, isso é uma tolice. Não há nada pior que um líder simpático que seja um mau dirigente.’
‘Quando cheguei, há oito anos, me chamavam de ‘o bigodudo’. Um conselheiro de imagem me disse: ‘raspe o bigode e com certeza você ganhará quatro ou cinco pontos de popularidade’. Eu disse não. Constato hoje que os espanhóis me deram duas vezes o seu voto de confiança, e é isso que conta. E meu partido está em condições de ganhar pela terceira vez.’
‘Se estamos no poder, é por duas razões: primeiro porque se gosta disso – se um dia um dirigente disser o contrário, não acredite nele – e sobretudo porque os cidadãos votaram em você. É uma experiência pessoal que não pode ser transferida. Estamos sozinhos. Olhe esse telefone… eu estou no fim da linha, sou o último recurso. É lá que um líder se revela bom ou ruim. Todo o resto é retórica.’
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Dois dias depois da entrevista ser publicada, houve os atentados de Madrid. Passaram outros dois dias e Aznar sofria a sua primeira e, possivelmente, última derrota eleitoral. A sua queda foi formidável e acachapante. E a concentração dos acontecimentos no tempo (48 horas) e no espaço (Madrid) dá-lhes dimensões trágicas, shakesperianas mesmo. Nesses acontecimentos, Aznar é em boa medida o artífice do seu próprio destino, de sua morte política.
***
A cronologia dos fatos mostra o que aconteceu.
Quinta-feira, 7h34-7h37: dez bombas explodem em Madrid.
10h30: Arnaldo Otegi, líder do partido (ilegal) Batasuna, braço político do terrorismo basco: ‘O ETA não é o autor dos atentados).
9h55: Aznar pega o telefone. Ele é o último recurso, para usar a expressão de sua entrevista. É ali que ele se deve revelar um líder bom ou ruim. Ele fala com Jorge Luiz Zapatero, o candidato socialista, e lhe garante que o ETA é o autor dos atentados. Não havia nenhum indício material que confirmasse a afirmação.
10h50: a polícia encontra uma camionete suspeita.
13h: Aznar pega o telefone novamente. Liga para o diretor do maior e mais prestigiado jornal espanhol, ‘El País’. O chefe do governo detesta o jornal. Em seus oito anos de governo, nunca lhe deu uma entrevista. Ele garante ao diretor que foi o ETA quem colocou as bombas nos trens. Aznar repete o telefonema ao jornal ‘El Periódico’. Por que? Porque os jornais preparavam edições extras para aquela tarde. Ambos responsabilizaram o ETA em suas manchetes de primeira página.
15h30: a polícia descobre na camionete detonadores e uma fita-cassete em árabe, com trechos do Corão. Assistentes diretos de Aznar ligam para correspondentes internacionais em Madrid e garantem que os terroristas bascos foram os autores do massacre.
17h30: o ministério das Relações Exteriores distribui uma nota a todos embaixadores espanhóis, os orientando a afirmarem ao redor do mundo que extremistas bascos promoveram o atentado.
19h: o ministério do Interior distribui fotos de nove terroristas do ETA suspeitos de terem explodido os trens.
20h20: mais de dez horas depois da polícia ter descoberto a camionete, e cinco horas depois de estar com a fita-cassete, o ministro do Interior divulga a sua existência. Mas insiste que o ETA continua a ser o maior suspeito.
20h45: desa vez é o diretor do ‘El País’ telefona para Aznar. Quer saber como fica a suposta autoria do ETA frente à fita com trechos do Corão. O chefe do governo novamente lhe garante que o ETA colocou as bombas. Mesmo diálogo com o diretor do ‘El Periódico’. Os dois jornais responsabilizaram o extremismo basco nas suas edições do dia seguinte.
21h: A Al Quaida envia um comunicado a um jornal árabe de Londres reivindicando o atentado.
Sexta-feira, 11h30: Aznar responsabiliza o ETA em público pelas bombas.
18h30: um dirigente do ETA avisa um jornal basco que não cometeu os atentados. O ministro do Interior, Ángel Acebes, declara: ‘Não acreditamos nisso’.
20h: Onze milhões de espanhóis na rua em passeatas contra o terrorismo. Aznar lidera a de Madrid, com duas milhões de pessoas. Desfila ao lado do filho do rei Juan Carlos, dos primeiros ministros Jean Pierre Raffarin e Silvio Berlusconi, e do candidato socialista, Zapatero.
Sábado, 16h: a polícia prende três marroquinos e dois indianos suspeitos de realizar os atentados.
18h: Cinco mil pessoas se concentram na frente da sede do Partido Popular em Madrid. Gritam: ‘antes de votar, queremos a verdade’. As manifestações se espalham pela Espanha. Numa cidade do interior, a sede do PP é queimada.
20h: as estações comerciais de TV transmitem as manifestações ao vivo. A rede estatal passa um documentário sobre o terrorismo basco.
22h: o ministério do Interior divulga a prisão dos suspeitos, mas só na manhã de domingo reconhece que eles estavam ligados ao grupo radical islâmico que atacou um restaurante espanhol em Casablanca, no Marrocos, em maio passado, matando trinta pessoas.
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No domingo, José Maria Aznar perdeu a eleição.
É exercício fútil, por inconclusivo, querer especular sobre a influência última dos atentados no resultado das eleições espanholas. Mas há alguns dados interessantes. Na última pesquisa eleitoral, divulgada na véspera do atentado, o PP de Aznar estava seis pontos percentuais à frente do PSOE de Zapatero. A diferença vinha diminuindo, já que cinco dias antes a diferença era de dez pontos percentuais. Ou seja, poderia (ou não) estar ocorrendo uma virada no eleitorado.
Uma virada que deveria ser atribuída não a qualquer fato específico, mas à proximidade das eleições – pois é na véspera das urnas que uma parte considerável do eleitorado, a dos menos politizados (os indecisos), finalmente decide. E essa porção do eleitorado estaria se posicionando a Aznar por três fatores: cansaço do governo do PP; problemas regionais; o Iraque.
Cansaço: oito anos é muito tempo; Aznar era um governante frio e distante; mostrara uma face até cruel quando o petroleiro ‘Prestige’ naufragou e arruinou uma boa parte do litoral do Atlântico Norte: nem foi à região atingida.
Problemas regionais: Aznar se recusou sempre a dialogar com o extremismo basco e não obteve resultados palpáveis: o terrorismo continuava ameaçando; duas semanas antes uma camionete com 500 quilos de explosivos, dirigida por dois militantes do ETA, fora detida a caminho de Madrid; uma nova geração de nacionalistas surgira na Catalunha e na Galícia, e fez crescer o movimento pela independência; Aznar era visto por eles como um ‘castelhano’, um ‘madrilenho’, um representante da Espanha centralista, conservadora e católica.
Iraque: o envio de 1.200 soldados espanhóis ao Iraque era impopular. E Zapatero prometia trazê-los de volta.
Em suma, havia um processo subterrâneo em andamento, que os atentados de Madrid podem ter acelerado. Ou então a maneira como Aznar tentou manipular os atentados fez com que as eleições se transformassem subitamente em revolta aberta.
(Não vou nem entrar na discussão sobre se a Al Quaida venceu as eleições na Espanha: isso é uma bobagem sem tamanho.)
***
Meu ponto é outro. É a entrevista de Aznar ao ‘Monde’. Nela, vê-se um político de direita que se apresenta como moderno, racional, inovador, bem sucedido. Ele fala em ‘engajamento moral’, descrê dos ‘salvadores’ e ‘homens providenciais’, advoga ‘realismo e convicção’, ‘capacidade de decisão’. Ele é quase um técnico, que busca friamente o ‘interesse geral’, o ‘interesse da Espanha’, e por isso se aliou a Bush. Ele despreza a opinião pública, pois não é um ‘catavento’, uma ‘rolha’ sujeita a ‘ventos e marés’. Ele é o homem de idéias pragmático e sem ilusões, e não o velho político carismático e demagogo. Supremo requinte, ele se apresenta como o líder de verdade, que não se curvou aos marqueteiros e manteve o bigode.
Como ele estava prestes a abandonar o poder voluntariamente, no ápice da carreira, ficava mais difícil ver o que há de presunção, de vaidade e até de loucura no retrato que Aznar fazia de si mesmo. Depois da queda, essas características são ofuscantes.
O trecho em que Aznar fala do telefone é o mais curioso: ele parece uma profecia. O chefe de governo o associa ao último recurso, ao fim da linha e o situa como o instrumento por meio do qual o líder deve provar a que veio. Pois foi com o telefone, na sexta-feira 11 de março, que Aznar se perdeu. Por meio dele, o político ‘racional’ se transformou num monstro de irracionalidade: passou a garantir, a jurar, que o atentado fora obra do ETA – sem que não existisse nenhuma prova ou indício material.
Em termos psicanalíticos, foi como se o Superego de Aznar se dissolvesse e desse finalmente espaço ao Id. A questão, ao fim e ao cabo, não se resume a que Aznar quis manipular os eleitores. Isso é evidente: a cronologia fala por si. A questão é que ele, o racional, acreditou no que não via, no que não existia, em bruxas, terroristas bascos.
Poderia ter atacado bascos e islâmicos com o mesmo vigor. Poderia ter dito que não sabia quem colocou as bombas. Poderia ter pedido respeito às vítimas. Aznar poderia ter feito várias coisas, racionais e políticas. Preferiu apostar, arriscar.
Por que fez isso? Difícil responder. Arrisco um palpite. Na entrevista, ele dá uma importância inexcedível ao abandono do poder. Ele conta que pensou na questão todos os dias, ‘a cada instante’. A sua grande obra política seria coroada quando ele ultrapassasse a própria dimensão da política. Teria então o controle de si mesmo, de sua história. Seria uma estátua em vida.
As bombas do fanatismo islâmico explodiram a ilusão que ele tinha em si mesmo.’
O Estado de S. Paulo
‘O 11 de março e a luta antiterror’, Editorial, copyright O Estado de S. Paulo, 18/03/04
‘A matança de Madri fez mais do que substituir no governo espanhol o partido que apoiou integralmente a invasão americana do Iraque pelo partido que se opôs a esse apoio com a mesma veemência, em sintonia, de resto, com a esmagadora maioria da população do país. A chacina também fez mais do que conferir ao terror islâmico uma enorme vitória – pelo medo que disseminou entre os governos dos principais países ocidentais /e por exibir, de forma clamorosa, o fracasso da estratégia antiterrorista de Bush.
No entanto, é falso que uma parte substancial do eleitorado espanhol ou mudou o seu voto ou foi votar num ato de rendição aos seus algozes. A virada eleitoral resultou sobretudo do fato de que o governo do primeiro-ministro José María Aznar foi apanhado na mentira de insistir em que a ETA cometera a atrocidade, quando já sabia que os prováveis autores eram outros.
Tampouco a decisão do futuro primeiro-ministro José Luis Rodríguez Zapatero de retirar os 1.300 soldados espanhóis enviados ao Iraque, se não houver acordo para a criação de uma força internacional de paz sob o comando da ONU, visa a apaziguar o terror muçulmano que ensanguentou o seu país: isso ele já prometera na campanha. O novo governo espanhol combaterá o terrorismo com o mesmo rigor deste. De todo modo, as conseqüências mais importantes do 11 de março se projetam para muito além do cenário político espanhol. O seu principal efeito é reabrir a questão dos métodos para combater o terrorismo ao qual país algum pode se imaginar imune. Na Europa, o assunto voltou à ordem do dia.
Desde que, em 2002, o governo Bush anunciou que a luta contra a Al-Qaeda exigia uma ‘mudança de regime’ no Iraque começaram a ruir os pressupostos políticos de uma ação concertada contra o terror, a que o 11 de setembro dera impulso. A aliança para destruir o Talebã no Afeganistão se fez acompanhar de um inédito esforço conjunto para descobrir como as organizações terroristas recrutam e treinam os seus quadros, como escolhem os seus alvos e concebem as suas operações – e como são financiadas. Ou seja, buscava-se um sistema internacional de cooperação no âmbito policial e da segurança, no sentido mais amplo.
Mas a soberba e o supremacismo do governo Bush, a sua insistência na militarização da campanha antiterror – para legitimar a tomada do Iraque -, criaram um abismo entre os EUA e muitos dos seus tradicionais aliados, impedindo a definição de uma estratégia coletiva, eficaz e permanente contra a barbárie. A guerra fez o resto. Cumpriram-se as previsões de que ela ‘não erradicará a ameaça do terror, mas, perversamente, deverá lhe dar alento’, como escreveu na véspera da invasão, há um ano, o juiz espanhol Baltasar Garzón, um incansável caçador de terroristas, agora oportunamente lembrado pelo diário israelense Haaretz.
Bush, que nunca conseguiu provar que Saddam se aliara aos terroristas, conseguiu tornar o Iraque o país mais infestado deles. A sua guerra – à qual se aplica o clássico dito de que, pior do que um crime, foi um erro – decerto formou mais homicidas fanáticos do que os que foram eliminados ou presos no mundo inteiro. O desafio, portanto, não é só ir além do pouco que se pôde fazer para diminuir a vulnerabilidade das sociedades abertas por onde se movem os assassinos, na impossibilidade de erradicá-los, mas ainda recuperar os prejuízos causados pelo desvario de Bush – o que dependerá do desfecho da sucessão nos Estados Unidos.
‘A guerra no Iraque energizou tantos grupos diferentes que o terrorismo global está mais preparado do que nunca para continuar sem Bin Laden’, sustenta o especialista Scott Atran, em artigo para o New York Times, transcrito ontem no Estado.
Se o inimigo é uma ‘rede’, que, aliás, é o que Qaeda significa em árabe, de bandos relativamente autônomos e frouxamente conectados, enfrentá-la requer ‘uma espécie de teia global – uma série de alianças internacionais e entre convicções unidas pela confiança e objetivos mútuos’, argumenta Atran.
O problema é que a atual elite dirigente americana até agora se recusa a admitir que os EUA dependem do mundo para combater o extremismo islâmico.
Quem sabe o 11 de março a leve a entender que – como diz o jornalista David Brooks, do N.Y. Times, em artigo também reproduzido no Estado de ontem – ‘esse evento mudará a maneira como a Al-Qaeda pensa o mundo. Mudará a maneira como os europeus vêem o mundo. E imporá restrições à política americana daqui em diante’.’
O Globo
‘Peter Singer: ‘Aplaudo os espanhóis’’, copyright O Globo La Vanguardia, 19/03/04
‘Catedrático de ética da Universidade de Princeton e autor de ‘The President of Good and Evil’, Peter Singer falou sobre a atitude dos eleitores espanhóis diante do 11 de Março.
O que achou do voto dos espanhóis?
PETER SINGER: O neoconservador David Brooks escreveu no ‘New York Times’ que os espanhóis, ao tirarem o PP do poder, se renderam de forma vergonhosa ao terrorismo. Não creio. Aplaudo a sabedoria do povo espanhol. O que Brooks disse é um disparate porque a invasão do Iraque não tem nada a ver com a guerra ao terror. A invasão deu à al-Qaeda um instrumento para recrutar adeptos. Os EUA lideraram uma invasão a um país islâmico que não tem armas de destruição em massa nem vínculos importantes com a al-Qaeda. Creio que os espanhóis se deram conta que Bush os enganou para que o país entrasse na guerra sob falso pretexto e que isso os tornou alvo do terror.
A virada ocorreu três dias depois do 11 de Março. Isso não indica que o terror pode atingir seu objetivo?
SINGER: Não tenho certeza se os eleitores reagiram ao ataque terrorista ou ao empenho do governo de enganá-los, responsabilizando o ETA, e não a al-Qaeda. Se foi a última hipótese, a lição é clara: os governos devem dizer a verdade. Se foi a primeira e os espanhóis votaram para se proteger, deve ter a seguinte interpretação: desastres como este nos tornam mais críticos a respeito do uso da força militar quando não dirigida contra terroristas.
Por que nos EUA acusam os espanhóis de darem aos terroristas a primeira vitória?
SINGER: Os americanos adoram acusar os europeus de traição e covardia. Foi o que aconteceu com os franceses antes da guerra no Iraque. Fui uma vez ao programa de Bill O’Reilly, na Fox, e antes de me apresentar ele se referiu a Jacques Chirac como ‘o odioso Chirac’. Agora ficou claro que Chirac tinha razão. Talvez percebam que os espanhóis também têm.’
***
‘Jornais acusam Aznar de tentar culpar ETA’, copyright O Globo, 17/03/04
‘A polêmica sobre a acusação ao atual governo espanhol de José María Aznar de tentar manipular a informação sobre os atentados – desviando para o terror basco os indícios que apontavam para extremistas islâmicos – aumentou ontem. O editor-chefe do jornal catalão ‘El Periódico’ disse ter recebido dois telefonemas de Aznar, que teria tentado persuadir o diário de que a culpa dos atentados era do grupo basco ETA. ‘Em duas ocasiões Aznar polidamente me advertiu para que não me deixasse enganar. O ETA era o responsável’, escreveu o editor do ‘El Periódico’.
Além disso, o Clube da Imprensa Estrangeira em Madri reclamou que funcionários do governo tentaram enganar os correspondentes insistindo na culpa do ETA. O jornal ‘El Pais’ já havia acusado o governo Aznar de pressioná-lo para responsabilizar o ETA. Os sindicatos ligados à agência de notícias EFE e à rede de rádio e TV RTVE, ambas estatais, também acusaram o governo de esconder a verdade para evitar uma derrota nas urnas.
O temor de Aznar era que o Partido Popular pagasse por sua decisão de levar a Espanha à guerra no Iraque mesmo contra a vontade de 90% da população, caso ganhasse corpo a informação de que extremistas árabes fizeram os ataques. No sábado, milhares de pessoas fizeram manifestações em frente a sedes do PP em várias cidades para exigir que o governo contasse a verdade sobre os atentados. Naquela hora, a TVE, que levou ao ar uma cobertura ampla dos ataques, transmitiu desenhos animados.
– Estamos convencidos de que (a tentativa de manipulação) foi a gota d’água para a população – disse Francisco Andújar, dirigente da União Geral de Trabalhadores na RTVE.
O ministro do Interior, Ángel Acebes, disse que o governo contou a verdade.
Zapatero diz que ‘era da TV de partido’ vai acabar
O Comitê Intercentros da EFE disse que a agência sabia desde o início que havia provas apontando para o terror islâmico – o furgão com um detonador e uma fita em árabe e um celular configurado nessa língua – mas assim mesmo insistiu em culpar o ETA. O Comitê quer a demissão do diretor de informação da EFE, Miguel Platón.
O líder socialista José Luis Rodríguez Zapatero, vencedor nas eleições de domingo, sempre acusou a imprensa estatal de parcialidade e anunciou que vai por fim à situação.
– É preciso acabar com a era da TV de partido.’
RODAPÉ