Em muitos países (especialmente nos mais desenvolvidos) e mesmo no âmbito dos principais organismos internacionais, há um consenso que perder a corrida pelo acesso universal às novas tecnologias de informação e comunicação (as ‘TICs’), em especial o acesso à rede Internet e a todos os seus serviços, significa também perder a corrida pelo desenvolvimento humano.
Há também um consenso de que não basta o acesso. É preciso formar as pessoas para dominarem esse poderoso instrumento de comunicação, troca de informações e aprendizado. É preciso dar condições para que iniciativas de apropriação dessas tecnologias para o benefício de toda a comunidade possam florescer de modo sustentável, com o apoio de políticas públicas. É disso que deveria tratar uma estratégia nacional de inclusão digital.
Isso é particularmente importante para o Brasil, um dos países mais injustos do mundo na distribuição das benesses do desenvolvimento econômico – não é por acaso que finalmente conseguimos eleger um governo centralmente preocupado com a exclusão social.
O Brasil continua sem uma estratégia nacional de inclusão digital, que de algum modo junte entidades civis, governos, empresas e a comunidade de pesquisa em um esforço comum para mudar um quadro em que menos de 8% da população (em sua imensa maioria os que podem pagar pelos serviços comerciais de acesso e podem adquirir computador) pode contar com esses recursos de informação e comunicação. Um país em que menos de 8% de nossas cidades ou vilas (para não falar na população rural) têm meios locais eficazes de acesso à Internet – uma minoria fundamentalmente concentrada no Sudeste e nas grandes cidades.
O governo federal continua sem uma estratégia nacional para isso, mas faz esforços nessa direção – um exemplo é a criação do Comitê Técnico para a Inclusão Digital, que envolve representantes de vários ministérios sob a coordenação da Secretaria de Logística de Tecnologia de Informação (SLTI) do Ministério do Planejamento.
Além disso, o que está acontecendo no Brasil que possa afetar (para o bem ou para o mal) um processo de inclusão digital? Vejamos alguns movimentos.
Uma herança: o GESAC
No governo anterior foi estabelecido um programa com o nome ‘Governo Eletrônico – Serviço de Atendimento ao Cidadão’ (GESAC), cujo objetivo era instalar milhares de terminais de acesso público para que o cidadão pudesse, com o uso de um cartão, ter acesso aos serviços que o governo oferece via Internet. Cada terminal – um totem sofisticado – custava muito caro (em torno de R$ 15 mil) e a conexão era feita via satélite, a um custo mensal estimado em R$ 800 por terminal.
O plano era instalar cerca de quatro mil desses terminais. Para isso seria criado um teleporto (uma estação de controle e retransmissão de sinais) para conectar cada terminal via satélite à Internet.
O novo governo encontrou o GESAC em início de operação, com o teleporto já instalado e contrato assinado com uma empresa israelense (a Gilat), com um investimento já realizado de mais de R$ 20 milhões.
Para o novo governo (e para o senso comum) ficava evidente que era um projeto muito caro e mal orientado. Afinal, com os mesmos recursos (financeiros e técnicos) era possível conectar redes de computadores em escolas públicas e em telecentros comunitários, por meio dos quais o atendimento ao cidadão poderia ser feito de forma muito mais ampla, com o bônus adicional do acesso a Internet como um todo e não apenas a sítios do governo. Com o dinheiro gasto em um único totem é possível equipar com uma rede local de computadores um pequeno telecentro ou escola pública.
Considerando o estágio em que já estava o projeto e o dinheiro já aplicado, o novo governo decidiu reorientá-lo radicalmente, para que fizesse exatamente isso: conectar pequenas redes de computadores à Internet via satélite em escolas públicas e telecentros comunitários, além de usar parte dos recursos de comunicação para projetos específicos do Ministério da Defesa.
O contrato GESAC reformulado (que deve durar 22 meses, terminando, em tese, no início de 2005) está na escala aproximada de quatro mil estações terrestres (ETs). Uma tentativa recente de setores do governo federal de utilizar pelo menos mil dessas ETs para conectar telecentros comunitários ainda não foi realizada. Apenas alguns telecentros foram instalados e estão conectados via GESAC (31 deles devem entrar em operação durante janeiro e fevereiro, segundo anúncio oficial).
O plano de maior escala contemplava a instalação de cerca de 1.200 telecentros comunitários em localidades de maior incidência de pobreza extrema, no contexto do Programa Fome Zero (PFZ). Todos serviriam para a gerência remota do PFZ e funcionariam como centros de acesso coletivo à Internet, geridos pela comunidade local e funcionando como locais de capacitação no uso dessas tecnologias.
Apesar de esse projeto de 1.200 telecentros ter sido mencionado como um projeto já realizado no discurso (3 de fevereiro) do presidente Lula no aniversário do PFZ , ele não saiu do papel e na verdade foi cancelado pela administração anterior do Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar (MESA).
Por outro lado, o governo federal aparentemente decidiu que o GESAC, em sua nova forma, deve continuar e possivelmente ampliar-se, para alcançar mais escolas e telecentros comunitários em regiões em que não há conectividade local adequada (mais de 90% dos municípios do país, com prioridade para áreas como o Semi-Árido, Vale do Jequitinhonha e outras de menor Índice de Desenvolvimento Humano – IDH).
Fica pelo menos uma questão das várias a serem respondidas por uma estratégia nacional de inclusão digital: quantos telecentros, em parceria com quem, e exatamente onde?
O edital do Serviço de Comunicações Digitais (SCD)
O SCD está em consulta pública até 1 de março. Inclui as consultas públicas 480 (Regulamento), 493 (Plano Geral de Outorgas) e 494 (Plano Geral de Metas de Universalização). Estão sendo feitas audiências públicas como segue: Recife, 23/1; P. Alegre, 26/1; Rio de Janeiro, 28/1; S.Paulo, 30/1; B. Horizonte, 2/2; Brasília, 5/2; Manaus, 18/2. Manifestações podem ser feitas no sítio da Anatel (http://www.anatel.gov.br) até 1/3, por meio de carta até 26/2 (SAUS, Quadra 6, bloco F, Biblioteca, Brasília DF, 70070-940), ou ainda por e-mail (biblioteca@anatel.gov.br) e fax (61) 312-2002.
Procurando criar condições para que empresas ofereçam serviços de acesso à Internet em áreas hoje não adequadamente cobertas pelas operadoras de telefonia fixa e também estimular o desenvolvimento de serviços de acesso que não dependam da rede de telefonia fixa (STFC, no jargão da Anatel), o SCD propõe a criação de onze empresas de serviços de Internet que terão a obrigação contratual de universalizar os meios de acesso em todas as regiões do país. Através do SCD, recursos do Fundo de Universalização de Serviços de Telecomunicações (FUST) seriam utilizados para conectar atividades de interesse social de acordo com regulamentos já aprovados para o Fundo.
Na prática, essas onze empresas poderiam deter o monopólio desses serviços (autenticação de usuários, camada de transporte de dados até as espinhas dorsais) em suas respectivas áreas de atuação até 2009. Nada impede no edital atual que essas empresas não acabem também monopolizando as outras camadas de serviços: sediamento, correio eletrônico, serviços Web etc.
A essas empresas seria, portanto, dada a oportunidade de consolidar posições por quatro anos, de tal modo que o cenário de monopólio por áreas dificilmente mudaria depois de 2009. Tal como está hoje no edital em consulta pública, o plano de metas proposto para o SCD é muito longo em relação às necessidades urgentes de inclusão digital. A operação só começaria mesmo em 2006.
Por outro lado, o SCD não deixa claro se iniciativas ‘paralelas’ como as que ocorrem hoje (por exemplo, redes sem fio e/ou de fibra utilizando espectro aberto provendo serviços comerciais ou não em âmbito local ou mesmo municipal) serão reprimidas ou se continuará permitido esse espaço – fundamental, por exemplo, para que governos locais e a comunidade criem suas próprias redes físicas de serviços administrativos e sociais (exemplo: Porto Alegre) e negociem em melhores termos a conexão no atacado com a Internet.
Em outras palavras: com o SCD as redes comunitárias serão reprimidas? A hipótese (otimista) aqui é que não serão, mas isso não está assegurado pelo edital atual.
Por fim, espera-se que a Anatel colabore decisivamente para obrigar as operadoras de telefonia fixa a desagregar sua infra-estrutura no chamado ‘último quilômetro’ (a linha telefônica entre a central e o usuário). Isso significa permitir que outras fornecedoras de serviços de comunicações digitais possam instalar seus equipamentos nas centrais telefônicas e oferecer serviços através das linhas telefônicas já instaladas (é o que se chama no jargão técnico de ‘unbundling’).
Na França, por exemplo, quem tem uma linha telefônica em casa pode escolher entre seis provedores de banda larga em muitas cidades (serviço conhecido como ADSL, como o Velox, o Speedy ou o BRTurbo no Brasil). No Brasil só existe o serviço ADSL do monopólio regional de telefonia fixa. Essa situação de monopólio deixa nas mãos de uma única empresa a disseminação da banda larga no Brasil, o que na prática significa oferta desse serviço apenas nas maiores cidades a preços elevados. Hoje o custo mensal do serviço ADSL no Brasil é em média o dobro do preço da França, se compararmos serviços de mesma velocidade.
Outra herança: o FUST
Na situação atual, o SCD está proposto como o caminho para que se viabilize a conexão subsidiada (parcial ou totalmente) de todas as escolas públicas, postos de saúde, bibliotecas públicas e comunitárias. Ao amarrar o desembolso do FUST ao SCD e mantendo as restrições atuais do Fundo, não há e não vai haver como apoiar projetos de telecentros comunitários via FUST.
Estava em andamento no Congresso uma proposta de reformulação da Lei do FUST. A versão mais recente inclui mudanças significativas, como a criação de um Conselho Gestor representativo dos vários setores e uma maior flexibilidade na aplicação dos recursos (incluindo o apoio a telecentros comunitários, que nem são mencionados na lei atual). Ainda no ano passado essa tramitação foi suspensa, e não há indicação de modificações significativas na lei ou regulamentação a curto prazo.
Qualquer mudança, em todo caso, só se refletiria em desembolsos concretos em um prazo mínimo de dois anos, segundo as avaliações menos pessimistas. Alguns acreditam que, pelo fato de o FUST ter acumulado mais de R$ 3 bilhões, esse dinheiro possa ser simplesmente absorvido pelo orçamento geral da União para necessidades consideradas ‘mais urgentes’.
Uma infra-estrutura de redes do Estado?
Recentemente o governo federal viu-se às voltas com um potencial ‘mico’ de algumas centenas de milhões de dólares: a rede de fibra óptica Eletronet. Trata-se de uma rede de fibra de grande capacidade (utilizada atualmente em menos de 3% de sua capacidade), de mais de 16 mil quilômetros, instalada nas linhas de transmissão elétrica de alta tensão. A empresa responsável faliu, deixando uma dívida alta, sendo um dos credores o BNDES.
Uma das alternativas é simplesmente deixar a rede ir a leilão (o que deveria acontecer em março de 2004), perdendo-se um investimento grande do governo e da iniciativa privada, e aceitando o ‘mico’. Outra alternativa, sendo seriamente contemplada pelo governo, é a absorção dessa rede por um empreendimento nacional que prioritariamente seria utilizado pelas grandes redes do governo federal. Se isso acontecer, o governo pretende reservar canais para uma estratégia nacional de inclusão digital.
Não está feita ainda a ‘ponte’ entre essa espinha dorsal e a ‘última milha’. O SCD poderá ser um caminho para conectar os componentes da infra-estrutura social já definidos no FUST, mas o atendimento ao público geral através de meios coletivos de acesso não está definido e de qualquer modo só começaria em 2006.
Algumas conclusões
Se as hipóteses e fatos acima estão essencialmente corretos, e com a constatação que não podemos esperar para iniciar uma estratégia de inclusão digital no país somente a partir de 2006 (e limitada apenas aos componentes do FUST), há que formular uma estratégia de menor prazo aproveitando o que temos e o que podemos construir sem depender desses recursos (que de qualquer modo sequer se assegura que poderão ser gastos conforme a regulamentação atual).
No paradigma atual do acesso às redes, há duas alternativas: ou cada família tem seu computador em casa, com conexão e contrato com um provedor, ou há um espaço coletivo de acesso na sua comunidade. Os custos de aquisição e manutenção tornam a primeira alternativa impossível para a imensa maioria das famílias brasileiras. Por isso mundialmente (mesmo em países mais desenvolvidos) se buscam soluções de acesso coletivo.
Até agora, o projeto mais significativo desse tipo no Brasil tem sido o programa de telecentros comunitários promovido pela Prefeitura de São Paulo. São 107 telecentros atendendo mais de 300 mil pessoas (cerca de três mil pessoas por telecentro), nas áreas de maior pobreza do município. Há também o exemplo similar de Porto Alegre, atualmente com 20 telecentros.
O projeto de São Paulo pode ser considerado um experimento muito significativo de parceria entre o poder público e a comunidade. A prefeitura aporta recursos para a instalação e manutenção da infra-estrutura (incluindo a conexão) e cobre os custos de pessoal (instrutores, operadores, pessoal auxiliar). Os telecentros utilizam exclusivamente software livre em uma configuração básica de 20 máquinas por telecentro, com espaço ainda para cursos e reuniões comunitárias.
Cada telecentro, com vinte estações e um servidor, é gerido localmente por entidades da própria comunidade, buscando priorizar as necessidades expressas daquela comunidade. Como não há uma proteção legal que garanta a continuidade dos recursos (como um fundo local de inclusão digital ou algo assim) e que torne o projeto imune a mudanças de governo, ainda é cedo para considerá-lo um êxito a longo prazo. Mas, se for possível garantir esses recursos de forma estrutural, será uma referência fundamental para o resto do país.
Como poderia dar-se a reprodução de um projeto como esse para o resto do país? Em primeiro lugar, o projeto de São Paulo não está concluído – para alcançar de modo significativo a maioria da população pobre do município seria necessário um projeto que alcançasse de dois a três milhões de pessoas de uma população total de 11 milhões. O projeto não se resolve apenas com recursos para a conectividade – é preciso pensar também na manutenção do prédio, dos equipamentos, dos recursos humanos (instrutores, operadores, pessoal auxiliar).
O Brasil tem, segundo os dados preliminares do Censo de 2001, cerca de 52% de sua população vivendo em cidades com 100 mil habitantes ou mais (são 231 cidades de um total de 5566 municipalidades).
Pensando grande: estender o projeto a todo o Brasil com a escala de atendimento específica (usuários por telecentro da ordem de dois a três mil) de São Paulo hoje significaria pensar em um programa de cerca de 15 mil telecentros para 40 a 50 milhões de pessoas nas áreas mais pobres. O interesse e necessidade de uso são provavelmente maiores nas cidades maiores (onde já se acaba tendo um contato mesmo indireto com essas novas tecnologias).
Assim, uma primeira aproximação poderia ser a implantação de sete a oito mil telecentros nas cidades de 100 mil habitantes ou mais (notando que as cidades de milhões de habitantes poderão ter centenas de telecentros e as menores apenas alguns telecentros, sempre localizados em áreas de menor IDH local).
Nas outras localidades, se buscaria uma distribuição similar de modo que nas menores haja pelo menos um telecentro para cada cinco a 10 mil pessoas entre os mais pobres.
Esse modelo de localização precisa ser muito refinado, com uma metodologia bem mais precisa de distribuição, com base nos dados do PFZ, tabelas de IDH e outros dados, e sobretudo em parceria com outros setores da sociedade. Como a implantação real pode dar-se de várias formas (há cidades que podem assumir todos os custos e outras que precisarão de significativo apoio do estado ou do governo federal), uma estratégia nacional precisa ser extensa e intensamente discutida, principalmente com a participação de governos locais e representantes das entidades civis.
Como financiar a instalação e manutenção, por um lado, e como garantir a conexão, por outro, de cerca de 15 mil telecentros? O gasto total bruto de implantação, se considerarmos que cada telecentro será sediado em espaço cedido por uma entidade local, prefeitura etc (e portanto não computando o custo de aquisição de imóvel), seria de mais de R$ 400 milhões – muito difícil de se conseguir esse volume de recursos sem parcerias com os governos estaduais e locais, ou mesmo com entidades privadas nacionais ou agências internacionais.
Além disso, há que considerar o custo operacional, que pode ser solucionado por parcerias com a comunidade e o poder local, combinado com subsídios federais. Projetos como o de São Paulo (ou o de Porto Alegre) podem mostrar o caminho e estimular prefeituras das cidades maiores a se engajarem nessa iniciativa.
Do lado da conexão, dadas as hipóteses acima, uma solução seria combinar a expansão do GESAC com iniciativas locais (como redes comunitárias, distribuição de curta e média distância via redes sem fio etc). Em vez das quatro mil ETs do GESAC hoje, teríamos de oito a dez mil ETs, e se buscaria em cada caso a forma ótima de conexão do telecentro comunitário, via GESAC na maioria dos casos pelo menos enquanto outras formas de conectividade não surgem em cada localidade.
Nos casos em que há como conectar uma rede comunitária a uma espinha dorsal nacional de fibra (como poderia vir a ser a atual Eletronet), o acesso estaria resolvido. Um esforço de política pública pode ser feito para que, nas maiores cidades, passe a existir uma rede metropolitana gerida pelo poder local provendo também acesso a telecentros comunitários. O exemplo da rede de fibra de Porto Alegre é ilustrativo.
Viabilizar um projeto como esse a curto prazo é acelerar o processo de inclusão digital no país, sem termos que esperar por ‘grandes esquemas’ que só maturarão em quatro a seis anos. A inclusão digital não pode esperar tanto.
Há muito mais que se deriva de uma iniciativa como essa, envolvendo praticamente todos os setores de governo e sociedade. Mas fica para outros documentos e discussões…
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Diretor de planejamento e estratégias da RITS.