Existem hoje inúmeros provedores de serviços de internet (PSIs). Vários deles oferecem alguns serviços gratuitos, como acesso discado à rede, contas de e-mail e hospedagem de sítios. Mas o que exigem dos usuários como contrapartida nem sempre está claro e justo. Algumas formas de retorno na verdade são bem conhecidas, como inclusão de anúncios publicitários nas mensagens de e-mail e nas páginas hospedadas, e a promoção desse serviço publicitário através do aumento do número de acessos/visitantes/usuários. Mas em certos casos parece que os usuários pagam ainda de outras maneiras por esses serviços.
O conhecimento de dados pessoais e do comportamento dos usuários comuns de internet (ou seja, seu perfil) passou a ser, ao que consta, um dos principais focos de interesse dos serviços online. Se assim não fosse, porque tantos cookies, programas discadores especiais (alguns, estranhamente, de uso compulsório), toolbars para navegadores e recursos similares? Acontece que a coleta das informações muitas vezes é realizada de forma que põe em risco a privacidade, a segurança e os direitos civis dos usuários, e os coloca em posição desfavorável na balança do poder, poder que está cada vez mais ligado ao controle sobre a informação.
Para exemplificar minhas preocupações quanto a serviços desse tipo, apresento aqui minhas observações com relação ao GMail, serviço gratuito de e-mails fornecido por Google. (Note-se que vários dos problemas aqui referidos não são exclusivos do GMail ou de serviços gratuitos: há PSIs bem pagos que não demonstram muito respeito pela privacidade de seus clientes.)
Embora tenha sido lançado ainda em 1º de abril do ano passado, vim saber da existência do GMail apenas no fim do ano (acho que foi em novembro), quando um colega me enviou curta e entusiasmada mensagem na qual oferecia, se eu quisesse, um de seus últimos convites para o GMail. Minha ação imediata foi pesquisar na internet por ‘gmail’, e o que li do próprio sítio do serviço me fez declinar o convite: 1.000 MB (praticamente 1GB) de dados pessoais inapagáveis em poder de terceiros.
No início de fevereiro recebi, de outro conhecido, um convite para me subscrever no GMail (vários outros convites me foram remetidos até o presente). Então enviei a esse conhecido uma breve mensagem, na qual deixei claro que acho o GMail uma péssima idéia, e ele ficou muito surpreso com minha opinião, me pedindo para explicá-la.
Vi-me motivado a pesquisar novamente e com mais profundidade o assunto, e terminei chocado com o que encontrei (http://gmail.google.com/gmail/help/privacy.html e http://gmail.google.com/gmail/help/terms_of_use.html):
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O usuário de GMail não tem o direito de deletar as mensagens (pode apenas ocultá-las de si próprio, mas Google continua arquivando-as por tempo indeterminado). As mensagens continuam arquivadas mesmo que o usuário cancele o serviço.**
Todas as mensagens recebidas são percorridas pelo Google em busca de palavras-chave, para inclusão de publicidade sensível ao conteúdo. Quando o destinatário (usuário do GMail) abre a mensagem, vê também propaganda relacionada ao assunto do e-mail. Isso implica que um usuário do GMail abre mão não (apenas) de sua privacidade, mas também (e especialmente) da privacidade dos seus remetentes, que podem nem mesmo ter ciência disso. Tais questões levaram nada menos que 31 organizações civis dos Estados Unidos a pedir a suspensão do GMail (http://dynamics.org/Altenberg/CURRENT_AFFAIRS/GMAIL/GmailLetter.htm).**
Google reserva-se o direito de alterar as condições ‘contratuais’ unilateralmente. Planeja criar um banco de dados com perfis dos usuários e de seus contatos. Isso não está declarado na sua política de uso, que se refere apenas à monitoração das ações executadas sobre a interface do GMail (que somente é acessado por meio de um navegador), mas pode ser deduzido de suas patentes (www.epic.org/privacy/gmail/faq.html e www.epic.org/privacy/gmail/patents/20040059712.pdf). Se – tal como o texto da patente pode levar a pensar – Google fizer cruzamento dos dados coletados com GMail, Orkut e cookies do serviço de buscas Google, o resultado viria a constituir um gigantesco banco de dados sobre o ecossistema da grande rede.**
Observando o fato de os CMIs (Centros de Mídia Independente) serem de tempos em tempos alvo de serviços como FBI – o que os levou a não armazenar os IPs dos seus visitantes (http://prod.brasil.indymedia.org/pt/blue//2004/11/293546.shtml), o que se percebe é que grandes bancos de informações pessoais como o do GMail (e do Orkut, seu ‘grande irmão’) representam uma ameaça aos direitos civis e criam uma estrutura favorável a abusos de poder.Diante do quadro apresentado, lanço então algumas questões:
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Deveria o destinatário de uma mensagem de e-mail ter o direito de fazer o que quiser com uma mensagem recebida, em especial, ter o direito de torná-la acessível a terceiros? Teria um usuário do GMail o direito de autorizar a varredura pelo Google do ‘conteúdo’ de mensagens enviadas por ‘não-gmailers’?**
Qual é o status legal de varreduras antivírus e anti-spam em mensagens eletrônicas? Elas poderiam constituir violação de correspondência? Em que casos? Quais são as diferenças técnicas e éticas desse tipo de varredura em relação à varredura de ‘conteúdo’ do GMail?**
Como uma pessoa comum pode se proteger de abusos de informação numa época na qual para ser cidadão do ciberespaço é necessário acessar um PSI e ter uma conta de e-mail, ou seja, confiar dados privados a terceiros cujos interesses podem ser ocultados atrás de ‘máquinas sem interesses próprios’?Apesar de ainda existir polêmica quanto à adoção preferencial de software livre para uso governamental (polêmica gerada por uma minoria interesseira), especialmente se disposta em lei, fico imaginando como o software livre e protocolos abertos poderiam ajudar a minimizar os problemas de privacidade no meio digital:
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Acredito que, para atender às necessidades e direitos de seus usuários, provedores de serviços de internet deveriam ser obrigados a usar, para a prestação dos serviços, somente software livre (ou no mínimo de código aberto) e estar sujeitos a auditoria por instituições de defesa de direitos civis. Isso aumentaria a confiabilidade e segurança com relação ao que é feito dos dados de usuários.**
Poderia haver padronização (através de protocolos abertos) para encriptação de mensagens eletrônicas, de forma que somente remetente e destinatário tenham acesso a seu conteúdo.Gostaria de terminar este artigo com uma comparação. No início da década de 1980, poucas pessoas dariam e deram importância ao então novo modo de comercialização de software, com código-fonte secreto, hoje conhecido como ‘software proprietário’: ele não parecia danoso aos usuários. Mas ‘Saint IGNUcius’ tinha visão ampla, e graças a Richard Stallman e seu projeto GNU (www.gnu.org) podemos hoje gozar, usando software livre, de relativa liberdade e autonomia no uso de computadores, no momento em que as garras do software proprietário se tornaram mais cortantes. De fato, software proprietário tornou-se agora (talvez com raríssimas exceções) uma maneira indigna e degradante de usar computadores.
De maneira similar, questões como essas suscitadas pelo GMail talvez ainda não pareçam alarmantes a boa parte dos usuários de e-mails (quiçá, até, a situação não esteja perigosa demais ainda). Mas, se não nos mantivermos em alerta, como poderemos defender nossos direitos num mundo em que a informação é cada vez mais importante e está cada vez mais centralizada, tornando-se um meio de detenção de poder?
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Músico, formado em Música (Violão) pela UFMG, pós-graduado em Música Brasileira (Universidade do Estado de Minas Gerais) e professor da Escola de Música da UEMG e da Fundação de Educação Artística (FEA)