Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Imprecisões sobre um serviço esquisitão

Quando a gente imaginava que, após ter se retratado sobre as inverdades em tom de exaltação sobre o Serviço de Comunicações Digitais publicadas no artigo ‘SCD, uma mudança e tanto’, no dia 2 de fevereiro deste ano, o jornal O Globo apuraria melhor os fatos envolvendo a invenção deste serviço de telecom esquisitão, para informar decentemente aos seus leitores, eis que o nosso prezado jornalão decide prestar novamente um desserviço ao país. Publicou, no dia 14 de junho de 2004, o artigo ‘Inclusão digital turbinada na periferia do DF’, que consegue ser ainda pior do que o primeiro.

E com uma agravante: a exaltação, desta vez, é dirigida à Lucent – justamente uma das maiores interessadas em ver sua quase ultrapassada tecnologia ser transformada em monopólio graças ao SCD, atropelando os direitos de diversas pequenas e médias empresas de telecomunicações que, por prestarem atualmente os mesmos serviços previstos para o SCD, estarão sujeitas ao encerramento de suas atividades por causa da incrível invenção de um novo monopólio em pleno ano de 2004.

Obviamente, além das empresas-nanicas de telecom, as outras grandes vítimas desta mega-armação serão os usuários de conexões sem-fio (wireless), que terão de comprar equipamentos compatíveis com a ‘nova’ tecnologia adotada pelo SCD, caso pretendam continuar acessando a rede internet. Pois, com o ‘novo’ serviço de telecom sendo prestado em regime de monopólio ao público em geral, não será possível a utilização das tecnologias atualmente em uso, como o Wi-Fi e, futuramente, o WI-Max.

Farsa desmascarada

No entanto, apesar de todo o puxa-saquismo, o artigo do Globo também tem seu lado bom, por confirmar muitas das denúncias publicadas aqui no OI e no site username:Brasil, principalmente quanto ao acórdão do TCU ter sido utilizado na maior cara-de-pau pelos doutores da Anatel como pretexto para emplacar a maracutaia do SCD – conforme atesta a declaração do Sr. Luiz Cláudio Rosa, vice-presidente de desenvolvimento de negócios da Lucent no Brasil:

– Não queremos entrar com o CDMA 450 nos grandes centros, não se quer fomentar mais competição – frisa Rosa. – Este é um modelo com lógica de governo, não de mercado. E nem estamos pensando no dinheiro do Fust (Fundo de Universalização de Serviços de Telecomunicações). Até porque a idéia é que o serviço seja sustentado através de parceiros comerciais nas áreas de inclusão (o que na verdade geraria receita para o Fust). Com isso, as escolas e bibliotecas contempladas em áreas distantes não precisariam pagar um tostão.

Baseado-nos na declaração do Sr. Rosa, podemos deduzir que:

1) Ao abrir mão da competição, o SCD pretende preservar os oligopólios das concessionárias de telefonia nos serviços de rede internet em banda larga, que estão concentrados justamente nos grandes centros, batendo de frente com o artigo 2º da Lei Geral das Telecomunicações (LGT):

Art. 2º. O Poder Público tem o dever de:

III – adotar medidas que promovam a competição e a diversidade dos serviços, incrementem sua oferta e propiciem padrões de qualidade compatíveis com a exigência dos usuários;

2) Na condição de executivo de uma multinacional de telecom, ficou meio estranha a autoridade com que o Sr. Rosa refere-se ao modelo inventado pela Anatel para privilegiar a tecnologia utilizada nos equipamentos fabricados pela empresa dele. Certamente deve estar havendo algum engano, pois a lógica democrática de governo do PT jamais endossaria um modelo obscuro e monopolista como este que foi proposto para o SCD. Uma coisa é a lógica de governo, que deve manter-se estritamente dentro dos limites da lei e outra, completamente diferente, é a inexplicável lógica da Anatel, que além de não ser de governo, também não pode ser considerada como de mercado.

3) É bom que a Lucent não esteja nem pensando no dinheiro do Fust, pois um suposto serviço de telecomunicações cuja única finalidade é conectar os computadores dos usuários às redes de comunicação de dados fornecidas por um outro serviço de telecomunicações, mantendo com ele uma relação simbiótica, jamais veria mesmo a cor da grana do fundo.

4) Se a idéia é que o SCD seja sustentado por parceiros comerciais nas áreas de inclusão, para que escolas e bibliotecas contempladas em áreas distantes não precisem pagar um tostão, isto caracterizará prática de subsídio cruzado, pela qual os usuários dos serviços prestados pelos parceiros comerciais dos concessionários de SCD (provavelmente as concessionárias de telefonia) deverão absorver os custos devidos por escolas e bibliotecas, batendo de frente com o artigo 103 da LGT:

Art. 103. Compete à Agência estabelecer a estrutura tarifária para cada modalidade de serviço.

§ 2° São vedados os subsídios entre modalidades de serviços e segmentos de usuários, ressalvado o disposto no parágrafo único do art. 81 desta Lei.

Para desmascarar de vez a farsa do SCD, o nosso boa-praça doutor Edmundo Matarazzo ainda arrematou:

– Isso sem falar que o Fust não é para pagar os terminais, mas o uso do serviço – completa Edmundo Matarazzo, superintendente de Universalização da Anatel. – O SCD não foi desenhado pensando no Fust, e acesso à informação não é sinônimo de acesso à internet (uma rede que, afinal, não é controlada pelo Brasil).

Versão fantasiosa

E assim, graças à infinita criatividade da nossa agência reguladora, passaremos a contar com um ‘novo’ serviço de telecomunicações que, por não ter sido desenhado pensando no Fust, precisará recorrer a subsídios cruzados para instalar computadores com conexão internet em bibliotecas e escolas públicas, em vez de utilizar os recursos bilionários do fundo.

Só que isso embola completamente o meio-de-campo, pois todo mundo que acompanha o desenvolvimento desta armação lembra direitinho que o motivo alegado pelos doutores para a invenção do SCD, prestado em regime público e ainda por cima com direito a monopólio até 2009, era justamente instalar computadores com conexão internet nas escolas e bibliotecas utilizando recursos do Fust. Pô! Se o SCD não vai (e nem pode) utilizar os recursos do fundo, pra que então ele está sendo inventado?

Pena que os leitores do Globo não ficarão sabendo de nada disso, devido à versão fantasiosa dos fatos que foi publicada. No entanto, nada impede que, para manter a credibilidade, o jornal investigue alguns fatos absurdos envolvendo a invenção do SCD que jamais foram destacados na grande imprensa, como:

a) Qual será o motivo da total alienação demonstrada pelo governo Lula em relação a este assunto que envolve bilhões de reais? Será que ainda falta muito pra ficha cair e o governo perceber que existe algo estranho por trás da invenção do SCD que precisa ser investigado?

b) Por que a Anatel não cria logo uma modalidade do SCM para ser prestada em regime público, conforme foi endossado recentemente pelo TCU? Se ela tivesse feito isso, a instalação dos computadores com conexão à internet nas escolas públicas, bancada com os recursos do Fust, já poderia ter sido iniciada ainda em 2002.

c) Por que o mandato do ouvidor da Anatel não foi renovado? Por que a Anatel está sem ouvidor desde março, justamente na época em que seria necessário um acompanhamento mais rígido dos atos da agência por causa das armações envolvendo o SCD?

d) Por que, apesar das flagrantes irregularidades cometidas pela Anatel para emplacar o SCD, o ministro Eunício Oliveira ainda não abriu processos administrativos contra os conselheiros da agência?

e) Por que o Congresso Nacional ainda não pediu a abertura de uma CPI para investigar a Anatel?

f) É verdade que o doutor Antônio Valente, pai do SCD, já foi nomeado presidente da Embratel, e está apenas esperando terminar a quarentena administrativa para tomar posse no novo emprego?

g) Não seria muita coincidência o pai do SCD se tornar presidente da empresa que, por deter quase 70% das redes de comunicação de dados em nosso país, será uma das principais beneficiárias do ‘novo’ serviço de telecom inventado por ele?

h) Por que o Sr. Luiz Cláudio Rosa trata o SCD como se fosse uma propriedade da empresa dele?

O Globo bem que podia tentar responder, não é mesmo? Afinal, os leitores também merecem ficar bem-informados.

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