Parece que a imprensa tradicional está percebendo que a internet é muito mais do que um meio de comunicação, mas também uma fonte para notícias. As manifestações sociais que ocorrem na rede, quando justas e sensatas, ganham (e precisam ganhar) eco no mundo offline. Foi assim com os blogs norte-americanos que denunciaram uma fraude em reportagem da CBS, há algumas semanas [ver remissão abaixo].
O exemplo mais recente veio do jornal O Globo. Em sua edição de quarta-feira, 6 de outubro, a principal notícia da editoria Rio foi ‘Eles odeiam o 485’, sobre a insatisfação de estudantes da Universidade Federal do Rio de Janeiro em relação à linha de ônibus 485, praticamente a única disponível para uma boa parcela dos alunos se locomoverem de casa à Cidade Universitária e vice-versa. E quem pautou essa matéria? A comunidade do Orkut ‘Eu odeio o 485’ (ver abaixo), formada por, até a tarde de quinta-feira (7/10), 1.661 universitários.
Essa foi uma das raras matérias sobre um movimento social e comunitário realizado via internet direcionadas a um público mais genérico e amplo, formado em sua maioria por pessoas que não têm o hábito de acessar a web. Essas reportagens costumam ser publicadas nos cadernos e seções de tecnologia dos jornais ou em veículos online, cujos leitores são formados por adeptos da rede, cansados de conhecer blogs, orkuts, icqs etc.
É importante que esse tipo de matéria ganhe espaço na imprensa tradicional. Primeiro, porque a web é movimentada por gente, por seres humanos. E, nela, ocorrem vários acontecimentos que refletem aspectos sociais e culturais da humanidade e que, no ‘mundo offline’, seriam dignas de notícia. Por exemplo, o blog Imprensa Marrom foi tirado do ar por decisão judicial originada na queixa de uma pessoa que se sentiu ofendida por um comentário deixado na página – ou seja, não escrito pelo autor do blog, o maior prejudicado no fim das contas. Não se viu esse caso reproduzido na grande imprensa, a mesma que ataca o proposto Conselho Federal de Jornalismo por considerá-lo um mecanismo de controle e cerceamento à liberdade de expressão.
Segundo, a divulgação mais ampla de notícias sobre as atividades digitais é essencial porque só assim as pessoas desacostumadas com a rede – e, não raro, cheias de preconceitos – podem entender que a internet oferece muito mais recursos do que simples e-mails, chat para jovens em busca de namoro e blogs de adolescentes.
Eles odeiam o 485
O Globo, 6/10/2004
Mais de 1.600 alunos da UFRJ se reúnem na internet para criticar linha de ônibus
Ao menos para quem mora na Zona Sul e estuda no Fundão, já existe um coletivo de ódio. Singelamente definido em três números e seis rodas. Desde junho, alunos da UFRJ mantêm um grupo na internet, através do site de relacionamentos Orkut, somente para falar das mazelas de uma linha de ônibus: o ‘Eu odeio o 485’ (Penha-Praça General Osório). Não bastassem problemas como falta de segurança e infra-estrutura na universidade, a comunidade retrata a indignação de estudantes com sua única opção de transporte. São nada menos do que 1.602 membros cadastrados desde a criação, em 7 de junho deste ano.
– A situação de quem mora na Tijuca ou na Zona Sul e depende de ônibus é muito precária. O 485 é a única opção, tirando as vans. A conseqüência são horas esperando para entrar num veículo que, principalmente nas horas de pico, fica lotado – conta o coordenador de comunicação do Diretório Central de Estudantes (DCE) da UFRJ, Pedro Martins.
A apresentação do grupo indica: felicidade e 485 parecem mesmo não combinar. O texto usado para convocar os novos membros pergunta: ‘Quem já estudou na UFRJ e morava na Zona Sul ou na Tijuca e nunca encarou esse ônibus com seus motoristas insanos e, muitas vezes, suicidas?’ E complementa: ‘Ah, sem esquecer que sempre era possível caber mais um quando ele já estava mais do que lotado! Se você sente raiva desse ônibus tanto quanto eu sinto, essa comunidade é para você.’
Preocupação com assaltos é constante
Na página, é possível ver as mais diversas discussões sobre um mesmo tema, é claro. O 485. Há dezenas de relatos de quem já sofreu com a violência: ‘Aconselho a todos que pegam esse ônibus que andem com o mínimo de dinheiro e prestem atenção principalmente nos pontos de ônibus do Fundão’. Ou até um serviço com telefone para reclamações à empresa Breda, dona da concessão da linha: ‘Já cansamos de reclamar com esse telefone e com esse e-mail’, diz um internauta resignado.
Uma visita a um dos pontos de ônibus da Cidade Universitária no fim da manhã de ontem confirmou que a indignação virtual é mais do que real. O sorriso irônico da estudante de pedagogia Mariana Bernardo quando perguntada sobre o 485 já dizia tudo:
– É terrível mesmo ter que depender desse ônibus. Demora que é um absurdo, vem cheio. Quando passa, na maioria das vezes, é aquele com ar-condicionado. Ou seja, custa dois reais. Se já está difícil pagar R$1,60.
Uma pesquisa mais cuidadosa mostra que a comunidade não é a única e já ganhou dois discípulos: o ‘485, a linha da desgraça’, com pouco mais de 20 membros, e o ‘Eu odeio o 634’, com 92 participantes. O último grupo, também formado basicamente por alunos dos cursos de biologia, arquitetura e letras da UFRJ, é dedicado aos ônibus da linha que liga a Saens Peña à Freguesia, passando pelos arredores da Ilha do Fundão.
Para quem vai à Zona Sul, há uma opção gratuita, que é o ônibus da própria UFRJ que liga o Fundão ao campus da Praia Vermelha. Há duas opções: pegá-lo às 6h30m ou às 17h. Mas o prefeito da Cidade Universitária, Hélio de Mattos, garante que a universidade está atenta a mais esse problema. Segundo ele, um convênio recente trará a linha de integração metrô-ônibus para ligar o Fundão ao metrô de Del Castilho.
– Além disso, temos os ônibus internos, de dez em dez minutos. Mas já informamos a empresa do 485 do problema – acrescenta.
A Breda Rio informou que apenas com um abaixo-assinado de alunos pode tentar colocar mais ônibus para operar no trecho, já que é impedida pela Secretaria Municipal de Transportes Urbanos de fazer qualquer mudança. Já a SMTU informou que uma comissão está reavaliando todas as linhas de ônibus da cidade e que, somente após o fim dos estudos, previstos para dezembro, algo poderá ser feito.
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Jornalista e mestre em Informática pelo NCE/UFRJ