Está mais do que na hora das cabeças pensantes de nossa ‘grande imprensa especializada em informática’ começarem a passar por um processo de arejar seus conceitos e despir-se de seus pré-conceitos. É infernal, para dizer o mínimo, deparar-se diariamente com uma profusão de banalidades no tratamento desse tema.
Talvez para uns a informática seja apenas meio de negócio, vender serviços, softwares, soluções, hardware, e não sei mais o quê. Mas, para uma grande legião, informática passa a ser um elemento vital na consolidação da sociedade contemporânea, como um meio mais amplo e eficiente de acesso ao conhecimento, ao saber, à difusão de idéias, troca de informações, além de simplesmente negócio.
No caso dos encartes especializados em informática que rolam semanalmente em jornais como o Estado de S.Paulo e a Folha de S.Paulo (só para citar estes dois) nota-se claramente esta visão estreita do universo informático. Quero acreditar que esta ‘visão estreita’ seja resultado da falta de informação somada a anos e mais anos de exposição ao marketing do grande irmão da indústria de software proprietário. Sim, prefiro acreditar nisso, pois pensar que há um movimento intencional no sentindo de desprezar qualquer coisa que não seja o ‘status quo informático’ me levaria então a desacreditar totalmente neste segmento do universo jornalístico.
Legião de voluntários
As páginas que compõem estes suplementos (as poucas páginas, para ser mais preciso), são destinadas a temas superficiais do tipo: como salvar os dados de seu MS-Windows antes do próximo ‘format c:/’, as belezuras da última Cebit, como transformar seu pendrive em acendedor de cigarros, a importância de reciclar embalagens de batatas-fritas com seu uso em revestimento de telefones celulares, e mais coisas absurdas. (claro que estou exagerando, mas é esta mesmo a intenção, para que assim possa enfatizar mais a superficialidade das abordagens).
Não se procura aproveitar as poucas páginas que as empresas jornalísticas destinam aos leitores interessados em informática para compartimentar, sendo que deve haver espaço para as banalidades, para as análises, para os ‘tutoriais’ (sim, na web existem às pencas, mas os bons são poucos), e também para promover debates, apresentar tendências, provocações etc. Pois da imprensa se espera isto. Não se espera que esta imprensa nos dê somente conteúdo norteado por suposições a respeito de um tal ‘público-alvo’. Público-alvo é qualquer um que ache algo interessante para ser lido em uma publicação dessas, e que tenha até vontade de recortar (recortar, falando em mídia impressa, ou salvar, em mídia eletrônica) tutoriais e análises interessantes e o que mais for, para consultas futuras.
A carência de publicações decentes em nosso meio, que tratem seriamente informática, é gritante. É um nicho enorme a ser bem explorado, mas as ‘cabeças pensantes’ vão no óbvio, no copiar e colar das informações das agências noticiosas.
Fico muito admirado quando entro na seção de informática do site da Agência Estado, por exemplo, e me deparo com notícias do tipo ‘MS-Windows Starter Edition vendeu vinte e cinco mil cópias desde seu lançamento em território nacional’. Qual a finalidade disso? A quem interessa saber quantas cópias do produto foram vendidas além da empresa que o comercializa?
Um dos exemplos mais gritantes de como é formado o entendimento da informática nas ‘cabeças pensantes’ do jornalismo nacional é o caderno ‘Link’ (circula às segundas-feiras no Estado de S.Paulo e às quintas, no Jornal da Tarde).
O pessoal da Agência Estado teve uma ótima idéia ao criar uma rede de relacionamentos (tipo do Orkut, Yahoo! 360º, entre outros) vinculada ao caderno ‘Link’ (pelo menos creio que esta era a idéia inicial). Assuntos abordados no ‘Link’ poderiam ser gerados (incubados) naquelas comunidades virtuais e, posteriormente, aproveitados pelos jornalistas como temas a serem explorados para fazer parte do conteúdo semanal do encarte.
Ocorre que o gerenciamento da rede de relacionamentos foi tão malfeito que permitiu o surgimento de ‘n’ comunidades que falam de tudo, mas pouco falam de informática – além do que, existem muitas comunidades lá criadas cujos assuntos, com certeza, não são seriam permitidos em qualquer veículo jornalístico. Não falo que isso é bom ou mal, mas não vejo lógica alguma na associação feita entre o caderno ‘Link’ e a rede de relacionamentos Link. Isto não é questão de censura, mas questão de ausência de foco. Este é um exemplo claríssimo de uma ótima idéia jogada fora, por falta se estabelecer objetivos e regras claras.
Qualquer dos fórums na web (destes baseados em php, por exemplo, e que existem aos milhares, exemplos: fórum gdh e fórum da opera software, que abordam informática, têm regras e objetivos delimitados. São zelosamente controlados por uma legião (voluntários em sua esmagadora maioria) de moderadores e administradores, para garantir que os temas abordados não saiam do foco daquele fórum específico. Em suma, amadorismo total daqueles que pensaram, desenvolveram e mantêm a comunidade de relacionamentos do ‘Link’.
Motivos reais
Não basta saber ligar as coisas, mas é preciso formar um cultura a respeito do que se está tratando. E isto não se encontra em geral no jornalismo especializado em informática, pelo menos no Brasil. A internet facilita muito essa ‘formação de cultura’, na medida que disponibiliza uma variedade enorme de informação, a qual encontra-se acessível de maneira relativamente fácil. Para tanto, basta usar um mecanismo de buscas qualquer: Yahoo! Search, A9, Google e outros. Mas há que se saber o que pesquisar, pois por si só os mecanismos de buscas não resolvem problema algum. Na verdade, se você entra de gaiato sem saber o que quer, é capaz de piorar mais a situação – com tanta informação disponível, o sujeito desanima. Então há que se estabelecer um objetivo claro para começar as pesquisas.
A seguir dou alguns exemplos dessa falta de imersão no universo informático, só para que sirva como uma provocação, uma maneira de atiçar as mentes, tirar o mofo, desvincular a influência do grande irmão. Há que se tentar de tudo, pelo bem geral. É sempre bom procurar ir além do horizonte visível, e assim descobrir novos mares e continentes.
Um assunto que está sendo muito mal explorado é a questão da mudança radical da Apple Computers ao tornar pública sua intenção de mover seus produtos baseados nos processadores PowerPC da IBM, para os processadores IA-64, da Intel.
E a IBM, como fica perdendo um cliente de peso? Quais serão os possíveis resultados neste mercado de computadores pessoais, em que afeta a atual situação? Qual será o futuro da Apple com esta mudança de rumo? Serão seus produtos mais acessíveis, melhores, piores, etc? Teremos MS-Windows rodando em computadores Apple? Teremos OS X rodando qualquer computador x86?
Para o Linux, por exemplo, qual o impacto, o que representa? Veja que o polêmico colunista estadounidense John C. Dvorak já proclama, logo de cara, que o Linux é quem perde. Claro que isso é opinião dele, visto que, sabidamente, este senhor não é muito afeto à causa do software livre (ou open source, como queiram). Quais os reais motivos por trás desta estratégia de Jobs? São tantas as possibilidades, mas o que se vê são somente notas aqui e ali, nada que realmente vá fundo na questão.
Fato estimulante
Os leitores não estão muito habituados com o tema Apple Computers, sendo assim, que tal informar que o sistema operacional dos atuais computadores pessoais da Apple chama-se OS X (sendo o Tiger, a mais nova versão deste sistema), e este é baseado em um projeto livre chamado Darwin, o qual, por sua vez, usa o kernel do FreeBSD (http://www.freebsd.org/), e este último é uma variante livre do Unix 4.4BSD (desenvolvido na Universidade da Califórnia, em Berkeley, por isto BSD, de Berkeley Software Distribution).
Por que esta opção da Apple em usar um projeto baseado em BSD? Creio que basicamente porque o licenciamento BSD não obriga o desenvolvedor a manter o código aberto (o GPL obriga: uma vez livre, sempre livre). Melhorias podem ser realizadas, além de novas adições, e o código passar a ser fechado. Vai do gosto do autor.
Outro ponto é a característica do kernel do FreeBSD que permite uma transição relativamente pacífica entre arquiteturas [vejam que o projeto NetBSD, outra variante do 4.4BSD, roda em uma variedade enorme de arquiteturas, um verdadeiro camaleão]. Esta característica de transição relativamente tranqüila entre arquiteturas diversas faz ligação com algo que existe há cerca de cinco anos no interior do projeto Darwin, ou seja, uma versão destinada a arquitetura Intel. Em suma, parece que a Apple Computers procurou segurar um galho (o Power da IBM), enquanto trabalhava para se firmar também em outro galho (a arquitetura IA-64 da Intel). Talvez a velha máxima ‘seguro morreu de velho’, caiba aqui.
Outro assunto que permitiria ir além do que se vê é uma notícia veiculada pela Folha de S.Paulo em seu site de internet, na qual era informado que o filme de computação gráfica Madagascar, do estúdio Dream Works, havia superado no primeiro final de semana de junho a bilheteria do filme Star Wars Episode III- The Revenge of the Sith, da Lucasfilms, naquele mesmo final de semana.
Isto por si não diz muita coisa em relação ao tema informática. Mas, se procuramos saber um pouco mais sobre o filme de animação gráfica Madagascar, descobriremos que os modelos das personagem componentes da animação, os cenários – em suma todo o ambiente da criação – foram renderizados em estações gráficas multiprocessadas da HP rodando Linux – a exemplo de Shrek2 e Shark Tale. Este já seria um tema interessante para o pessoal da seção de informática da Folha explorar. Mas isso não acontece. E por que não acontece? Simplesmente porque não há uma cultura informática que permita fazer a ligação entre fatos aparentemente sem conexão – o novo sucesso da Dream Works, mais HP e Linux (fora o talento dos criadores, obviamente, mas este assunto é para os especialistas em animação, cinema, etc).
Este é um fato estimulante. Um sistema operacional desenvolvido colaborativamente (segundo o modelo de software livre) participando ativamente nos bastidores de uma superprodução de computação gráfica, gerenciando poderosas e exigentes estações de trabalho especializadas da HP. Por que não oferecer ao leitor mais informações sobre esta associação vitoriosa no ramo da computação gráfica? Analisar qual distribuição Linux está gerenciando as estações HP, as características destas estações propriamente, entre outras coisas que podem ser espremidas para gerar informação útil.
Análise de produtos
A maior aberração acontece quando o tema é software livre. É como o Conde Drácula fugindo da água benta, a salada é total, misturando Linux, software livre e sem nunca faltar a tradicional ‘palavra de algum especialista pró-Microsoft’.
Não se pode falar em software livre sem citar Microsoft? São necessariamente participantes de uma mesma festa? Claro que não. Analisar, por exemplo, uma distribuição Linux [existem diversas, pois Linux é desenvolvido para cada necessidade específica – veja aqui], seja do ponto de vista técnico ou do ponto de vista prático, e até mesmo do ponto de vista do usuário, apresentar seus pontos positivos e negativos, sugerir melhorias. Qual o problema nisto?
Pode-se também comparar as características de usabilidade e desempenho entre distribuições Linux e BSD [BSD também é software livre, apesar de seu licenciamento ser BSD, ao invés do GPL usado para o Linux], por que não? Comparar imparcialmente distribuições Linux com a respectiva versão da Microsoft, por que não? O que não se deve fazer é chocar modelos de desenvolvimento (no caso, colaborativo versus proprietário) no meio destes comparativos, pois isso seria misturar alhos com bugalhos.
Primeiro, porque software livre é um universo muito mais amplo do que o Linux em si (o Linux está contido neste universo, assim como o BSD, e não o contrário), e segundo porque não há uma lógica direta em você comparar modelo de desenvolvimento com o sistema operacional em si. Esta questão mais elevada é para ser tema de sua seção específica, em debates, provocações, tendências, ou sei lá mais o quê.
Quando se compara os sistemas em si, por suas características técnicas, usabilidade etc, o faz baseado tão-somente em análise técnica imparcial. É nessas comparações sem sentido que tenho notado que os jornalistas especializados em informática têm caído na armadilha e acabam, mesmo sem querer, denunciando sua falta de conhecimento em relação ao tema, sua falta de cultura informática.
Ao pegar uma distribuição Linux para ser comparada tecnicamente em relação, por exemplo, ao sistema operacional da Microsoft, então espera-se que o jornalista tenha consciência destas nuances do Linux e, tendo isto claro em sua mente, procure por distros Linux que estão aí para utilização em desktops, no dia-a-dia. Algo como um SuSE, algo como um Mandriva, algo como um Ubuntu, até mesmo um Kurumin, um Big-Linux etc. Distribuições testadas e consagradas pelas comunidades de usuários.
Mas como saber disso se o jornalista não participar deste universo? Não adianta encarar um Gentoo Linux, por exemplo, sendo que esta distro é indicada para usuários experientes, que querem sistema personalizado, de acordo com as características de seu hardware. Isto vale também para Lunar Linux e por aí vai. Sem esta imersão (e aqui me torno repetitivo) nenhuma avaliação será válida.
Parece que não há costume de analisar os produtos – hábito muito difundido nos sites internacionais especializados em informática. No caso mais específico, tratando aqui do tema Linux, um exemplo é o site Mad Penguin. Notem que há uma seção exclusiva para abrigar análises das mais variadas distribuições. Este tipo de atuação, em nossa imprensa especializada, simplesmente não existe e, quando existe, é puramente superficial.
Analfabetismo digital
Está difícil aceitar que um sistema operacional seja oferecido como brinde em uma revista dedicada ao tema? [Assim que tudo começou para este usuário] Pois então, as coisas mudam. Só a imprensa que não está vendo. Fanzines feitos por integrantes da comunidade e distribuídos em formato PDF [gerados em OpenOffice.org] estão se mostrando muito mais informativos e produtivos do que os tais ‘encartes de informática’ que acompanham grandes jornais.
Exemplos como o SlackwareZine e o DebianZine estão aí para quem quiser ver e aproveitar seu conteúdo. Para isto, basta fazer o download e abrir em um leitor de documentos PDF, sem truques.
Exemplos dados, este verdadeiro saco de gatos no qual estão transformando a abordagem da informática não pode mais continuar. Há que se parar e pensar. Não vou dizer repensar, porque pelo jeito nada ainda foi pensado.
É preciso que aquele que se presta a ser um jornalista especializado em informática beba desta fonte, mergulhe neste oceano, sinta este aroma, delicie-se este prato, enfim, viva este universo. Sem isto não há como fazer cognição, não há como dar liga. Já foi a época das dicas de World e Excel. Isto é passado, não cola mais. Nem venham me falar de ‘site da Barbie’, por favor. Se estão a fim de ‘privilegiar’ a meia dúzia que está interessada em saber sobre smartphone de mil dólares americanos, então que não se ouse a chamar ‘caderno de informática’ uma publicação que traz este tipo de coisa, pois, certamente, não o é. Talvez apenas um encarte de lojinha virtual, aí seria mais coerente. Informática é coisa séria, não dá mais para aturar tanto descaso.
Espero que este texto sirva como uma contribuição para que novos rumos sejam delineados (e quem sabe efetivamente traçados) no que se refere à abordagem da informática pela imprensa especializada. O leitor agradecerá certamente, a empresa jornalística obterá seu retorno e o jornalista seu merecido reconhecimento.
O movimento pelo fim do analfabetismo digital precisa ter início, e a imprensa também precisa se reciclar, pois não está imune ao efeito desta praga, muito pelo contrário: nota-se que ela se mostra uma das principais vítimas, mais especificamente por sua falta de interesse e lerdeza em se aprofundar mais no universo chamado Informática.
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Só para fazer justiça, registro aqui que a seção de informática do site da Folha de S.Paulo trouxe informação a respeito da produção da animação Madagascar. Nesta notícia o leitor pôde ter uma idéia mais abrangente da tecnologia usada na produção deste sucesso do estúdio Dream Works. A matéria foi disponibilizada hoje sob o título ‘´Madagascar´ tem a tecnologia mais complexa da DreamWorks’
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Analista de sistemas