Uma semana antes do Natal, o Instagram, o popular website de fotos compartilhadas da mídia social, com 100 milhões de membros, anunciou uma mudança nos Termos de Serviço. Um parágrafo provocou uma revolta viral. Dizia: o usuário concorda em autorizar uma empresa ou outra entidade a pagar ao Instagram para exibir o nome e imagens do usuário sem qualquer compensação. Tradução: você não é dono da foto que tirou e compartilhou com amigos; a carinha do seu bebê pode vender sabonete e você não ganha nada.
Diante da reação, o cofundador do Instagram Kevin Systrom cumpriu um conhecido ritual: a penitência do CEO online. Mas a gritaria não perdeu ímpeto e, no dia 20/12, o Instagram voltou atrás. Systrom tentou acalmar seu rebanho digital dizendo que os usuários são donos absolutos das imagens que postaram e elas não serão vendidas. Bem que ele tentou distrair atenção do público para o fato de que há termos mais graves na lista, relativos ao acesso de menores (se são membros, conclui-se que os pais autorizaram) e à blindagem contra ações judiciais coletivas. Especialistas em direito digital examinaram o contorcionismo retórico e declararam que nem o Google nem o Twitter impuseram termos tão draconianos para ficar a salvo de ações legais. A opção oferecida é a seguinte: aceite as regras do Instagram como foram apresentadas ou se desligue do serviço a partir de 16 de janeiro.
Está difícil concluir o que insulta mais: a audácia do texto original, o pedido de desculpas que descreve as mudanças como “confusas” ou a explicação final de Systrom que trazia pérolas como, “estou orgulhoso de saber que vocês sentem que têm o poder de reclamar e nos dar feedback construtivo.”
Podem me apresentar um pós-adolescente de bermudas, criando uma promissora companhia start up no sótão da casa dos pais, e já começo a contagem regressiva para o dia em que ele subestimará a inteligência do consumidor e fingirá ignorar seus direitos, sempre com ar de querubim. Quem será o Frank Capra do século 21, o diretor que vai atualizar a iconografia do abuso de poder imortalizada por personagens como o banqueiro gordo, que fuma charuto e esbraveja ordens, no filme Do Mundo Nada de Leva?
George Orwell teria que penar para causar impacto hoje em dia. O Big Brother que ele imaginou no romance 1984 perdeu a conotação irônica, virou marca de sucesso. E a privacidade ameaçada na distopia de Orwell não precisa ser invadida por um governo maligno, ela é cedida voluntariamente a corporações digitais.
Bronca justa
A percepção de especialistas em defesa do consumidor é que Mark Zuckerberg, o dono do Faceboook que comprou o Instagram em setembro por US$ 1 bilhão, está usando este caso como balão de ensaio. Quer testar os limites do tolerável para os usuários. Essa tem sido a tática do Facebook: mudar as regras do jogo, esperar a reação e voltar atrás se a gritaria aliena excessivamente o público. Mas o governo americano e a União Europeia não dão mais moleza aos gigantes como o Facebook e o Google. Em 2011, o Facebook concordou, sob pressão da FTC, a Comissão Federal de Comércio americana, a não alterar as regras de privacidade sem alertar os usuários.
As corporações contam com a chamada fadiga dos termos de uso. Quantas vezes você já clicou “eu concordo”, vencido pelo labirinto interminável de legalês em letras minúsculas? É preciso reconhecer que nós, consumidores, passamos a esperar o grátis. Ninguém nos força a frequentar o Facebook, o Twitter ou o Instagram. As empresas que começaram como um arrufo criativo e se tornaram planetárias têm que criar modelos de negócio. Na indústria da mídia social, é inevitável: as horas que passamos acordados precisam ser vendidas a anunciantes. O cliente é o anunciante. O clichê sobre o grátis continua válido: você é o produto, não o consumidor.
A Comissão Federal de Comércio, que, nos últimos quatro anos, merece ser curtida muito mais do que Mark Zuckerberg, acaba de abrir inquérito sobre o comportamento de nove empresas de uma indústria orwelliana e pouco conhecida: a dos corretores de informação, ou data brokers. São as corporações especializadas em coletar e analisar cada grão de informação sobre você. Sua religião, seu time de futebol, sua pasta de dentes preferida. Elas vendem esses dados para vários tipos de cliente. Um caso comum é o anunciante que quer fazer propaganda customizada, como, por exemplo, aqueles anúncios que pipocam na sua tela quando você acessa o seu email no Google ou no Yahoo.
O que há de mal nisso, dirá o jovem que não quer levantar os olhos da tela do game “Call of Duty”? Se tantos existem online antes mesmo de vir ao mundo, quando os pais postaram a ultrassonografia no Instagram, e continuam a ser seguidos pela vida afora, o que impede um seguro saúde de recusar serviço ou cobrar mensalidade mais alta de pessoas cujos hábitos acompanha? Afinal, a companhia de seguro tem acesso a vários anos de compras com cartão de crédito ou smartphone.Compras regulares de bebida alcoólica e cigarros podem formar o perfil do cliente indesejado. Não há, no momento, leis que regulem o uso e armazenamento da informação em posse dos data brokers.
A bronca com o Instagram é mais do que justificada. Mas por motivos além do que a maioria imagina.
***
[Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York]