No dia em que o presidente americano Barack Obama faria o seu mais importante discurso no ano, os Estados Unidos pararam para assistir à apresentação de Steve Jobs, presidente da Apple, no lançamento do já considerado revolucionário iPad – uma espécie de mistura de um laptop com um celular inteligente – em cerimônia na cidade de San Francisco.
Ainda magro em consequência de problemas de saúde, Jobs, com sua tradicional camisa de gola alta preta, subiu ao palco e, depois de contar um pouco da história e dos lucros de produtos da Apple como o iPod, exibiu pela primeira vez o iPad, que vinha sendo aguardado desde o fim do ano passado.
‘Nós queremos iniciar 2010 com a introdução de um produto verdadeiramente mágico e revolucionário. É muito mais intimista do que um laptop e bem mais capaz do que um celular inteligente’, afirmou o carismático presidente da Apple para uma audiência de dezenas de jornalistas, em evento que ofuscou completamente o lançamento do celular Nexus One pelo Google semanas atrás. Canais de TV pararam as suas programações normais para mostrar o novo produto, enquanto os jornais fizeram cobertura instantânea por meio de blogs.
Como no caso do iPod, o produto se difere de praticamente tudo o que existe no mercado. Fisicamente, o iPad lembra um iPhone gigante. Sua tela sensível ao toque terá cerca de dez polegadas. O aparelho pesará 680 gramas. Não haverá teclado físico, apenas virtual.
Segundo Jobs, a bateria será econômica, sendo possível assistir a um filme de ‘San Francisco a Tóquio’ – esse foi o principal obstáculo para o desenvolvimento do produto. O modelo mais avançado, com 64 gigabytes de memória, custará US$ 829, enquanto o mais simples poderá ser adquirido por US$ 499. Os dois devem estar à venda nas lojas da Apple nos Estados Unidos em dois meses. Não há previsão de quando será lançado no Brasil.
A conexão à internet deverá ser fornecida por meio de um plano de US$ 30 mensais com a AT&T, companhia já responsável pelo iPhone no território americano.
Apesar de não fazer chamadas convencionais, o iPad poderá usar softwares de telefonia via internet. O aparelho inova por ter a vantagem de poder utilizar 140 mil aplicativos criados para o iPhone inexistentes nos seus competidores na categoria tablet. Além disso, supera os netbooks (computadores menores para navegar na internet) por ter uma tela com resolução bem maior e um design mais simples, típico da Apple, com apenas um botão.
‘Os netbooks não são melhores em nada. Eles possuem telas de baixa qualidade’, disse Jobs, tentando mostrar a superioridade de seu produto.
E-reader
Antes do lançamento, muitos analistas diziam que o iPad poderia ser para os livros e jornais o que o iPod conseguiu ser para a música. Jobs disse já estar em contato com editoras para vender livros virtuais.
O problema é que já existem aparelhos de leitura avançados, como o Kindle, da Amazon, e o Nook, da Barnes&Noble. E os dois se diferem do iPad. Ambos são direcionados apenas para a leitura, sem a preocupação com a internet ou comunicação. A luminosidade da tela também é diferente, cansando bem menos a vista. O Kindle e o Nook, para serem lidos, precisam de iluminação externa, como se fosse um livro. O iPad terá uma luminosidade igual à de um computador comum, vinda da tela, cansando a vista da mesma forma.
A leitura de publicações grandes, como livros, não deve sofrer grandes alterações. Analistas já diziam ontem que iPad não será um concorrente direto do Kindle ou do Nook.
A expectativa, porém, se dá na imprensa. Jornais e revistas, por terem textos menores, diferentemente de livros, podem ser lidos com mais facilidade em telas de computadores e tablets, sem o problema do cansaço da vista. Alguns jornais e revistas, como o New York Times e as publicações da Condé Nast, já começaram a desenvolver formatos para serem adaptados ao iPad.
Martin Nisenholtz, do New York Times, subiu ao palco durante a apresentação de Jobs e comentou sobre o desenvolvimento de um aplicativo especialmente para o iPad. ‘Queremos misturar o melhor da edição impressa com a edição digital’, disse. Jennifer Brook, também do jornal de Nova York, acrescentou que eles conseguiram ‘capturar a essência da leitura de um jornal’.
O aplicativo, de acordo com o New York Times, permitirá aos leitores gravar artigos no iPad, alterar as dimensões do texto, mudando o número de colunas, arrastando fotos e exibindo vídeos. ‘Será tudo o que você sempre amou em um jornal, tudo o que você sempre amou da internet e tudo o que você pode esperar do New York Times‘, afirmou Brook.
Televisão
E, segundo se comentava ontem nas TVs americanas, o iPad pode afetar ainda mais a indústria da TV. Com a alta resolução da imagem, programas e séries poderão ser assistidos de qualquer lugar com boa qualidade, bem acima da existente atualmente em sites como o YouTube e o Hulu. O Los Angeles Times também lembrou que a tela sensível ao toque de tamanho grande, como a do iPad, permitirá que aplicativos de artistas sejam usados até mesmo para a produção de obras de arte.
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Equipamento criou expectativas altas demais
Renato Cruz
O iPad foi bem recebido, mas o entusiasmo veio temperado com uma certa dose de decepção. A avalanche de rumores criada antes do anúncio criou expectativas impossíveis de serem alcançadas. Era como se Steve Jobs fosse anunciar o lançamento comercial de um sistema de teletransporte.
Um comentário bastante comum, que apareceu, entre outros lugares, na cobertura em tempo real do New York Times, foi de que o iPad é um iPhone gigante (apesar de não fazer chamadas convencionais). ‘Apple Tablet’ foi um dos temas mais populares ontem no Twitter, serviço de microblogs. Matt Gemmell, um desenvolvedor de software para produtos da Apple, escreveu no Twitter: ‘O iPad é o maior avanço na tecnologia de leitura de banheiro da história da humanidade.’
‘Simplesmente não entendi’, foi um comentário publicado pelo TechCrunch, um dos blogs mais influentes de tecnologia. ‘Não é um substituto do iPhone, porque não é um telefone; não é um substituto do iPod Touch porque não é portátil; e eu tenho vários computadores ‘verdadeiros’ para não precisar de um tablet.’
A reação do Gizmodo, outro blog de tecnologia, também não foi boa: ‘Meu Deus, eu estou bem desapontado com o iPad. Ele é a tradução de um produto não-essencial e além disso tem algumas falhas críticas, absolutamente terríveis, que me farão olhar torto para qualquer pessoa que resolva comprar um.’ Ele reclama, entre outras coisas, da falta de câmera e de capacidade de multitarefa.
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Grupo já mudou completamente três mercados
A Apple já revolucionou três mercados: o de microcomputadores, o de música e o da telefonia. Dependendo da reação dos consumidores ao iPad, a empresa de Steve Jobs pode mudar os rumos da indústria de PCs pela terceira vez. O Apple II, lançado no começo de 1977, foi o responsável por tornar o computador pessoal um bem de consumo. Modelos concorrentes, como o TRS-80, eram restritos a aficionados por tecnologia.
Além disso, o Apple II transformou os microcomputadores, que eram vistos até então como hobby, em ferramenta de trabalho, com o lançamento do software de planilhas VisiCalc, que permitia usar a máquina para cálculos. Ela trazia como novidades a capacidade de mostrar imagens em cores e a arquitetura aberta, que permitia aos usuários expandirem a capacidade das máquinas, com placas desenvolvidas até por outros fabricantes. O Apple II acabou sendo deixado para trás pelo IBM PC, lançado em 1981.
A segunda vez em que a Apple mudou o rumo do mercado de microcomputadores foi em 1984, com o lançamento do Macintosh. Esse computador tornou acessível a um público amplo a interface gráfica do usuário. O que é isso? Antes do Mac, as pessoas precisavam digitar os comandos. Ele foi o primeiro computador com um preço acessível a permitir a interação com imagens que podem ser clicadas e arrastadas, com o uso de um mouse. Recursos que se tornaram corriqueiros com o Windows, da Microsoft, chegaram ao mercado pela primeira vez com o Mac. Dependendo da resposta ao iPad, pode ser a terceira guinada do mercado de PCs liderada pela Apple.
A Apple revolucionou o mercado de música com o iPod, em outubro de 2001. Apesar de não ser o pioneiro, foi o equipamento que desenvolveu o mercado de tocadores digitais. Num momento em que a indústria fonográfica combatia o crescimento do MP3 com ações judiciais contra consumidores, a Apple criou um modelo viável que combinava um aparelho fácil de usar, com um software instalado nos computadores e uma loja virtual. Graças ao sucesso do iPod, a Apple se tornou o maior varejista de música do mundo.
A revolução do mercado de telefonia aconteceu em janeiro de 2007. A empresa não inaugurou o segmento de smartphones (telefones inteligentes), mas lançou um produto para pessoas comuns. Modelos de outros fabricantes, além de mais feios, eram difíceis. Pareciam feitos de engenheiros para engenheiros. Desde o seu lançamento, o iPhone se tornou o produto a ser batido pela concorrência.
Mas nem sempre a mágica dá certo. Em 1998, a Apple lançou o computador de mão Newton, um ‘assistente pessoal digital’. Ele trazia uma tecnologia revolucionária de reconhecimento de escrita, mas não obteve sucesso. Outra empresa, a Palm, acabou desenvolvendo esse mercado. O Newton foi lançado na época em que Steve Jobs estava fora da companhia, o que pode ser parte da explicação de seu fracasso.
Mesmo sob a administração de Jobs, no entanto, houve revoluções anunciadas que não se concretizaram. É o caso da Apple TV, um equipamento que serve para assistir vídeos da internet e do computador na televisão de alta definição. Muitos consumidores gostaram, mas o impacto foi muito menor que do iPod ou do iPhone. (Renato Cruz)
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Correspondente do Estado de S.Paulo em Nova York