‘Pierre Verger (1902-1996) era um personagem lendário em toda a costa brasileira. Todo mundo falava dele, principalmente os que nunca estiveram com ele. Atribuíam-lhe uma vida extraordinária, uma espécie de personagem ao estilo de Somerset Maugham ou Joseph Conrad, enfeitiçado pela África, participante de ritos secretos, andarilho que percorreu recantos inacessíveis do planeta. Considerando que não existe fumaça sem fogo, fui conhecer Verger e encontrei um curioso personagem. Um homem pequeno, seco, ossudo, os olhos azuis um pouco esgazeados, mãos longas e andar um pouco torto, impaciente, como se vivesse eternamente em estado de desconforto.
O texto acima, perdoem-me a desfaçatez e a ousadia, é cópia ligeiramente modificada de uma introdução escrita pelo próprio Pierre Verger a propósito do escultor francês Charles Combes, que viveu em Bingerville, perto de Abidjian, no início do século 20. O fotógrafo brasileiro questionava a figura de Combes e dizia não ter certeza se ele estaria mesmo ‘enfeitiçado’ pela África ou se caíra de encantos pela imagem que criou para si mesmo de uma África lendária, sentimental, poética e sensual.
A questão poderia ser proposta ao próprio Pierre Fatumbi Verger – o segundo nome é africano, incorporado ao nome de batismo do etnólogo na Bahia, aonde chegou em 1946 e se dedicou a estudos de costumes e religiões afro-brasileiras. ‘Sou apenas um francês racionalista idiota’, diria Verger mais tarde, dada a impossibilidade que enxergava de aproximar sua alma da alma das culturas negras que cortejava.
Eu mesmo, repórter que narra, encontrei Verger apenas uma vez na vida, como ele encontrou a Charles Combes. No final dos anos 80, foca ainda, tinha sido incumbido de entrevistá-lo num hotel fabuloso de São Paulo, na região da Avenida Paulista. Encontrei-o por acaso arrastando a mala no estacionamento, dizendo que estava mudando de hotel porque achava aquele ali opressivo e impróprio à sua condição.
O que procurava Verger pelo mundo? Muitas respostas existem para essa pergunta, e o próprio fotógrafo e pesquisador respondeu a muitas delas num documentário precioso, realizado pela Conspiração Filmes pouco antes da morte dele. Mas há muitas mais. Acaba de sair, pela editora Bertrand Brasil, o livro Pierre Verger, Repórter Fotográfico (248 páginas, R$ 34,00), que reúne textos e fotografias inéditos de conteúdo jornalístico do etnólogo.
Verger trabalhou para a revista O Cruzeiro nos anos 40, tendo feito um contrato 10 anos depois para uma série de viagens pelo Caribe e pela África.
Essas viagens foram estendidas para as Filipinas, a Argentina e a Bolívia.
Ele examinou personagens, como o pintor de elefantes Camara Alana, da Guiné, como também aspectos econômicos do continente. Reportou a exuberância de Dacar na ocasião do seu centenário. Encontrou Roger Bastide, a artista austríaca Susanne Wenger, conversou com Agostinho Tigre de Souza, mapeou o cultivo da banana e do café na Costa do Marfim e espantou-se com o festival de Ejigbo.
Ele não era do tipo de repórter que tratava seus entrevistados apenas como interlocutores circunstanciais. Tornava-se amigo deles, mostrava-lhes o resultado do seu trabalho, reunia-se de tempos em tempos. Esse aspecto humanista do trabalho de Verger também está registrado – ao final desse processo, ele tentaria fazer sua própria assimilação da cultura que reconhecia.
Conhece-se muitas das fotos de Verger como registros clássicos do Brasil, como seus foliões pongando de bondes e pescadores enfunando velas em praias antigas. Hoje em dia, pode-se comprar até camisetas com as fotos mais conhecidas do artista, vendidas na vitrine ali na Fundação Pierre Verger, nas imediações do Pelourinho. Aqui no livro Pierre Verger, Repórter Fotográfico, outras tantas surgem em profusão (com qualidade de reprodução um pouco descuidada, ressalte-se).
A organização dos textos e imagens do livro são da etnomusicóloga Angela Lühning, professora da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia.
Ela anota que muitos dos personagens escolhidos pelo etnólogo francês tinham algum envolvimento com as lutas de independência, por exemplo, na África.
‘Poderíamos, e até precisamos, chamar esta atitude de Verger de engajada pelos assuntos escolhidos, embora sutil na sua forma de colocação e abordagem’, salienta Angela.
Sobre o Carnaval brasileiro, são incluídos dois textos: Carnaval no Brasil durante os anos 1940-1950 e Filhos de Ghandi. No Rio de Janeiro, sua observação o fazia citar Bastide: ‘O branco dança sozinho e em casal, o negro em blocos, refazendo o coletivo’.
Filhos de Ghandi é um pequeno verbete histórico, dando conta do surgimento e popularização do bloco de Salvador. ‘Não se podia sonhar com roupa mais simples e mais espetacular, ressaltada pela sua sobriedade em meio aos abusos dos disfarces multicoloridos e as fantasias dos outros blocos, cordões e batucadas’.’
APRESENTAÇÕES
DE MILLÔRUbiratan Brasil
‘As Apresentações De Millôr’, copyright O Estado de S. Paulo, 9/05/04
‘Em seu confortável estúdio, no bairro carioca de Ipanema, o desenhista, humorista e dramaturgo Millôr Fernandes exercita um hábito singular: enquanto trabalha, deixa um enorme aparelho de TV ligado em um canal de filmes, mas sem nenhum som. ‘Fico do outro lado, em minha prancheta’, explica. ‘Quando venho tomar um cafezinho, dou uma espiada. Faço o mesmo quando leio jornal e, mesmo vendo aos pedaços, consigo ver tudo.
Afinal, o cinema é feito assim: pela montagem.’ Millôr sempre gostou de paradoxos, o que explica o lançamento de Apresentações, livro que a editora Record lança até o fim do mês e que reúne mais de 70 textos introdutórios feitos pelo ‘guru do Meyer’ ao longo de mais de 40 anos. Justamente ele, que sempre preservou o individualismo e tem, como primeira reação, rejeitar todas as introduções que lhe são pedidas.
‘Esse livro tem a função básica de encerrar definitivamente minha carreira de apresentador’, afirma Millôr que, apesar do impulso inicial, sempre foi muito generoso ao homenagear os vários amigos, como Ivan Lessa, Jaguar, Ziraldo e outros. Lógico que jamais economizou críticas, ironias e farpas que sobram para todo lado, revitalizando sua fama de iconoclasta. ‘Sempre achei Machado de Assis um bobo’, comenta ele que, na conversa com o Estado, não se esqueceu nem de figuras a quem jamais fez uma apresentação como o atual presidente (‘A ignorância lhe subiu a cabeça’) e seu antecessor (‘É o Sarney barroco’).
Estado – Quem escolheu as apresentações?
Millôr Fernandes – Fui eu. Faço tudo sempre sozinho. Minha experiência de trabalho coletivo sempre foi muito ruim, talvez pretensiosamente pela minha exigência: só não faço melhor porque não posso. Se tiver de mudar uma frase, alguma coisa, eu mudo internamente. Tenho agora uns quinhentos livros para fazer, mas de repente pensei: por que não fazer um livro de apresentações, algo original por conta das personalidades e o que cada uma sugere? Em seguida, pedi para as pessoas me mandarem fotos da época e eu faço uma brincadeira com cada um.
Estado – Além de recuperar estes textos, você recupera vidas e histórias das pessoas?
Millôr – Sim, são várias vidas e histórias. Entre todas, há três ou quatro pessoas que não são conhecidas mas estão ali por carinho. Todas apresentações são elogiosas, mesmo de um ou dois que, com o passar do tempo, estabeleceram algumas restrições. Mas a maior parte são pessoas que eu realmente admiro através da minha vida. Eu, que comecei a trabalhar com 14 anos, tive o privilégio de não ter conhecido alguém que se destacasse dos outros por ser famoso. Por quê? Ora, todo mundo que conheci já era famoso.
Basta ver a lista das pessoas.
Estado – Houve algum texto que teve um sabor de redescoberta por conta do esquecimento?
Millôr – Não tenho idéia, pois acredito que deve ter escapado muita coisa.
Sabe, fui o primeiro da minha turma a ter um computador – foi em 1986 e, desde então, tenho tudo arquivado. Assim, o trabalho foi só de buscar um texto aqui, outro ali, até chegar a aproximadamente 80. Fiquei tentado em fazer algo: no fim do livro, depois de tantos elogios, pensei em botar uma carta, que é um artigo do Paulo Francis, de 1979, a propósito de uma peça.
Ele me faz um elogio de ponta a ponta, um elogio humano, de uma pessoa que sabe o que está fazendo, que não se mete, que não tem corriola, que não afrouxa, mesmo com todas as brigas que tivemos. O Francis sempre foi meu amigo, a vida inteira. 50% das pessoas têm ódio dele (e até com razão), mas pensei: essa é a glória que fica e leva o homem ao sol. É um exemplo do ambiente em que vivi, ou seja, ser profissional entre profissionais. Você era capaz de dar um artigo para alguém ler e saber que, quando diziam ‘tira essa palavra aqui e põe essa’, vinha de alguém com conhecimento e competência.
Estado – Uma das apresentações que mais se destacam é a do livro Garotos da Fuzarca, do Ivan Lessa. Como é a relação de vocês?
Millôr – O Ivan é uma personalidade extraordinária. Na apresentação, digo que ele nem precisava disso para ser um grande escritor. Ele já era assim aqui no Brasil, um exilado do tempo, sempre moderníssimo, até hoje. Sabe, eu nunca mais falei com ele. A vida nos separou. Mas um dia, durante uma entrevista online pela internet, surgiram de repente três perguntas que tinham o estilo dele. Dava para perceber que era ele, mas não se apresentou.
Nosso último encontro aconteceu há dois ou três anos. Foi no hotel Estoril, em Lisboa, Portugal. Era um dia quente de primavera e eu estava no enorme (gigante mesmo, muito ‘Marienbad’, a perder de vista) hall do hotel. Comigo estavam Eliana Caruso (mulher do Chico), José Lewgoy (que era adorador do Ivan) e mais três amigos. De repente, surge o Ivan, caminhando pelo mármore, acompanhado de um primo também escudeiro. Ele nos cumprimenta a todos com seu sorriso sempre triste mas zombeteiro e diz agressivamente: ‘Vim ver minha mãe que está morrendo e vou embora’. Falamos durante uma hora – na verdade, mais ele do que eu, os outros ouvindo sempre. De repente, disse:
‘Vou lá dentro e depois vou embora.’ Foi, voltou, despediu-se de todos e me deu um abraço comovido. ‘Vinte e três anos’, disse, lembrando o tempo que não nos víamos.’
***
‘O grande legado do ‘Pasquim’ ficou no passado’’, copyright O Estado de S. Paulo, 9/05/04
‘Na continuação da entrevista, Millôr Fernandes relembra de amigos fraternos, como Sérgio Porto, e comenta o legado deixado pelo Pasquim.
Estado – Você ainda mantém contato com as pessoas homenageadas pelas apresentações?
Millôr Fernandes – Sim. São velhos amigos. Só o Ziraldo se afastou um pouco porque não tem mais onde botar tanto dinheiro e esse desejo continua, não sei por quê, depois de tanto tempo. Eu vivo do meu trabalho, faço tradução, peça de teatro, desenho, programa, coluna no UOL, tudo para pagar minhas contas. Se meu livro vende cinco, dez, cem mil exemplares, fico feliz, da mesma forma quando uma peça fica em cartaz durante cinco anos. Mas não sou de correr atrás do dinheiro.
Estado – Ziraldo faz lembrar do Pasquim. Que legado o jornal deixou?
Millôr – O Pasquim deixou um legado muito forte mas que vai se esvaecendo e hoje não tem mais nenhum: o que ficou, ficou no passado. Pela minha experiência, posso dizer que o sucesso sempre veio sem nenhum planejamento.
A revista O Cruzeiro, por exemplo, não teve nenhum: começamos a fazer e, de repente, o negócio estava pronto. Era a TV Globo da época, chegando a vender 750 mil exemplares. E, claro, tinha o Assis Chateaubriand no comando, um tipo de empresário que não existe mais, sem escrúpulos e que não se intimidava. Uma vez, ele mandou-me um cartão, em que estava escrito embaixo ‘Place Vendôme’. Então, eu botei embaixo: ‘Vendo-me na Praça’ (risos). Mas o Pasquim foi o órgão mais importante em que trabalhei. Tinha um caráter marginal, pois não pretendia vender mais que 20 mil exemplares, mas, em menos de um ano, vendia mais de 200 mil.
Estado – Poucos sabem que Vão Gôgo era Millôr Fernandes, Suzana Flag era Nelson Rodrigues, Antônio Crispim era Carlos Drummond de Andrade. Mas todo mundo sabia que Stanislaw Ponte Preta era Sérgio Porto. Que falta ele faz?
Millôr – Muita falta, mas todo mundo faz falta. O Sérgio escrevia um humor fino e realmente iconoclasta. É impossível comparar o trabalho dele com o dos que hoje se dizem destruidores como o Casseta e Planeta. E o que dizer do Cazuza que foi rebelde o tempo todo dentro da rede Globo? Nada comparado à rebeldia do Sérgio Porto, que foi ainda uma figura muito, muito engraçada.
E também era um homem bonito, uma pessoa agradável, espirituosa, mais culto do que aparentava. Misturava cultura brasileira com a americana e gostava de ir para a praia com um cestinho cheio de papel em que fazia anotações. Mas, assim como o Antônio Maria, era um homem predestinado a viver pouco.
Estado – Seu trabalho no teatro é muito elogiado. Quem são os dramaturgos que você mais admira, que tenham te influenciado?
Millôr (pensativo) – Não tenho prazer em traduzir, engraçado. Mas, sobre grandes dramaturgos, sempre Brecht é apontado, embora ele é maior na mitologia: qualquer aluno de escola diz que é o Brecht e acabou. O melhor para mim é o Tom Stoppard. Ele é um poeta, de uma inventividade extraordinária e autor de um filme magnífico, Rosencrantz e Guildenstern estão Mortos. Basta escutar seus diálogos para constatar que ele não erra.
Estado – Por que não gosta de traduzir?
Millôr – Sou um profissional. Sempre escrevi para ganhar dinheiro e a minha idéia é essa. Mas, quando escrevo essas coisas e, passado um tempo, volto a ler, falo ‘Deus me livre!’. Agora o meu prazer é desenhar. Mexer com a tinta me provoca um prazer formidável. Por aí trilhei o caminho que é meu. Quando fiz minha última exposição (já faz 30 anos, pois nunca mais quis fazer), botei na porta o seguinte aviso: dedico esta exposição a Van Gogh que pintava com a própria bisnaga e, de vez em quando, cortava uma orelha, e acima de tudo aos sem-talento que ajudaram com a sua loucura a estender a terceira arte.’
CONVERGÊNCIA DE MÍDIAS
‘A convergência por trás do News24.com’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 5/05/04
‘Recentemente, a publicação online sul africana News24.com – uma das principais da região, com notícias locais e internacionais em ‘tempo real’ -, decidiu apostar na convergência e lançou uma versão de seu site para a TV. Indo contra o usual, o site é transmitido via satélite localmente para o canal 59 da DStv (que opera em Banda KU), especializada em canais interativos. O feito permite aos espectadores navegar pelo novo canal de TV e interagir a partir de seus controles remotos.
A companhia responsável por tornar tal convergência real é a Multichoice Africa, uma empresa local de televisão via satélite. Segundo a News24.com, o canal de TV é rodado via Internet para estar sempre em sincronismo com o site. As notícias do canal são atualizadas pelo mesmo sistema de gerenciamento de conteúdo do site, o que, de acordo com eles, representa um alívio nos custos. Com esse procedimento, quando um redator da News24 publica algum conteúdo no site, a mudança ocorre simultâneamente no canal de TV.
Para a jornalista portuguesa Elisabete Barbosa – que escreveu, em conjunto com o jornalista António Granado, o livro ‘Weblogs – Diário de Bordo’ -, uma das vantagens do canal interativo da News24.com seja a possibilidade de se ter um público mais abrangente: ‘Eu vejo esta iniciativa com muito interesse. Parece-me que, no futuro, surgirão outros exemplos semelhantes. Esta empresa, sem grande esforço ao nível do trabalho diário, consegue levar a internet e as suas características a um público mais abrangente. O nível de utilização de computadores é muito inferior ao da televisão, já o número de potenciais utilizadores deste serviço deve ser maior.’, diz.
Já para a equipe da News24, uma das vantagens desse, digamos, tipo de mídia, no caso da África do Sul é que os veículos se beneficiam nos fins de semana, quando a audiência televisiva é alta e o o tráfego da Internet, baixo. Segundo dados do Poynter Institute, na África do Sul, a maior parte do tráfefo da Web ocorre durante o horário comercial.
‘Esta integração poderá também servir para uma desmistificação da internet junto de certos públicos. Por outro lado, para os habituais utilizadores da Internet será uma mais valia, dado que poderão ter acesso ao tipo de conteúdo a que estão habituados a partir de um outro meio. Por fim, este tipo de serviços poderá contribuir para o desenvolvimento da televisão digital que ainda parece um bocado longe para alguns.’, completa Elisabete.
Um preview da aparência do News24.com na TV, assim como um pequeno FAQ, foram criados para informar sobre o funcionamento do canal interativo para quem não pode ter acesso a ele.
Em tempo:
– A Banda KU é uma faixa de frequência utilizada nas comunicações com satélites. É utilizada, entre outras coisas, para aplicações espaciais e nos serviços de DTH (Direct to Home), que distribui sinais do satélite diretamente para a casa do assinante. Fonte: Globosat.
– A News24.com está realizando uma enquete com seus leitores para saber qual a mídia mais independente e livre no mundo (internet, jornais, rádio, revistas ou TV). Até agora foram contabilizados cerca de 1100 votos e o resultado parcial aponta a Internet em primeiro lugar, com 76%, seguido do rádio (10%); jornais (7%); magazines (4%) e TV (4%)’