A Justiça italiana condenou ontem três executivos do Google por violação de privacidade. O processo foi iniciado a pedido de uma organização e do pai de um garoto com autismo que aparecia em gravação, divulgada no Google Videos em 2006, sendo humilhado por colegas.
A empresa, que vai recorrer, definiu como um ataque ‘assombroso’ à liberdade de expressão na internet. O governo americano reagiu e alertou, em um comunicado da Embaixada dos EUA em Roma, que ‘internet livre é um direito humano inalienável’.
Em setembro de 2006, estudantes disponibilizaram no Google Videos – semelhante ao YouTube – uma gravação de celular de um garoto com autismo sendo humilhado pelos colegas. Nas cenas, a associação Vivi Down (que auxilia pessoas com síndrome de Down) foi citada.
O pai do garoto e a instituição resolveram processar a empresa por difamação e violação de privacidade. Um tribunal de Turim absolveu quatro funcionários do Google pela primeira acusação, mas condenou três deles pela segunda. A pena estipulada são seis anos de prisão, mas a empresa vai recorrer. A ação deve continuar por alguns anos e os três condenados permanecerão em liberdade – nenhum deles vive na Itália.
Mercado difícil
O Google argumenta que retirou imediatamente o vídeo quando foi notificado do seu conteúdo e cooperou com as autoridades italianas para identificar os agressores e levá-los à Justiça. ‘Se empregados como eu podem ser responsabilizados criminalmente por qualquer vídeo em uma plataforma de hospedagem, mesmo sem nenhuma relação pessoal com seu conteúdo, então nossa imputabilidade é infinita’, afirmou Peter Fleischer, um dos executivos condenados, chefe do conselho de privacidade do Google. ‘A decisão levanta questões mais amplas como a continuidade de muitas plataformas de internet que são os alicerces essenciais da liberdade de expressão na era digital.’
Serviços para compartilhar vídeos na internet – como Google Videos e YouTube – costumam confiar nos usuários para notificar conteúdos potencialmente problemáticos, que são retirados quando violam os termos de adesão ao serviço. A empresa argumenta que seria impossível analisar ou editar todos os filmes antes de disponibilizá-los na internet, pois o volume de imagens é imenso.
‘Estamos muito satisfeitos que alguém tenha assumido a responsabilidade’, disse o advogado da Associação Vivi Down, Guido Camera. A instituição também divulgou nota em que afirma que o objetivo da ação ‘não era censurar a internet, mas obter uma sentença que reconhecesse a tutela dos direitos fundamentais das pessoas, entre eles o direito à privacidade’.
Paolo Brini, do Movimento ScambioEtico, grupo italiano que defende a internet livre, afirmou que a decisão é injusta. ‘Nunca na história alguém pensou em prender um carteiro porque carregava um pacote com conteúdo ilegal.’
‘O direito de uma empresa não pode prevalecer sobre a dignidade de uma pessoa. Esta sentença deixa isso claro’, afirmou o promotor Alfredo Robledo.
A Europa tem sido um mercado difícil para o Google. A empresa argumenta que a legislação local isenta os sites de responsabilidade pelo conteúdo enviado pelos usuários. Mas alguns especialistas acreditam que se trata de uma área nebulosa. A lei em vigor foi adotada há dez anos.
Cientistas chineses
O gigante das buscas na internet também mantém um permanente conflito com o governo chinês – que patrocinou um ataque de hackers à empresa e mantém um sofisticado sistema de censura na internet.
Mas um levantamento divulgado na quinta-feira (25/2) pela revista Nature mostra que 84% dos pesquisadores consultados no país consideram que a proibição do acesso à página do Google prejudicaria ‘de alguma maneira ou significativamente’ seu trabalho. Cerca de 75% afirmaram usar a ferramenta como primeira opção na busca de informações. Um cientista chinês comparou a realização de pesquisas sem o Google à ‘vida sem eletricidade’. [Com informações do New York Times, Reuters e Efe]
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Caneta de juiz não controla atitude na rede
Pedro Dória
A derrota do Google nas cortes italianas não pode ser vista de forma isolada: há um cerco se formando contra a empresa na União Europeia.
No início da semana, a UE abriu uma investigação antitruste. Alegam que o Google tem controle sobre quem aparece ou some da internet – e isto seria poder demais para uma empresa só.
No fim do ano passado, a derrota foi na França. Um tribunal afirmou que o Google não pode, como deseja, digitalizar livros que já saíram dos catálogos das editoras. Em outros países, os juízes têm tido o cuidado de equilibrar o dilema: o interesse do leitor de ter acesso a um livro que não está no mercado contra a lei de direitos autorais, mesmo quando o autor não é localizável.
A internet em geral, o Google em particular, está fazendo o mundo reavaliar velhas convicções. Novas possibilidades tecnológicas permitem acesso a mais e mais informação – o que às vezes é bom, mas nem sempre.
Cortes distintas encaram os novos dilemas de formas diferentes. Na Europa a opção tem sido conservadora. O problema é que a caneta de juiz não controla o comportamento na rede.
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Decisão contraria jurisprudência, diz advogado
Karina Toledo
O advogado especializado em direito eletrônico Renato Opice Blum afirma que a decisão da corte italiana contraria a jurisprudência mundial. ‘O entendimento é que o provedor e seus executivos só passam a ter responsabilidade civil e penal a partir do momento que tomam conhecimento do caso e não agem. O Google retirou o vídeo.’
Para Blum, não se trata de um crime de violação de privacidade, e sim de difamação, praticado pelos colegas de escola que gravaram as imagens.
Augusto Marcacini, da Comissão de Informática da OAB, também fez críticas. ‘Sou contra penalizar quem fornece a tecnologia pelos desvios de quem a usa. Esse tipo de serviço amplia a liberdade de expressão.’