‘Um dossiê sobre os 40 anos do Golpe Militar de 1964 é um dos assuntos debatidos na Revista Nossa História (Biblioteca Nacional, 98 págs., R$ 6,80). Além de um detalhado retrospecto do período, a publicação apresenta um interessante artigo sobre o lado cômico da crise e uma entrevista com Maria Yedda Linhares. Como recheio, a curiosa história da capoeira.
O dossiê traz interessantes artigos que interpretam por diferentes ângulos o período de 20 anos de ditadura militar. Os textos traçam um panorama histórico, cronológico e analítico da situação política do País, sem deixar de lado a imprensa e pressões internacionais.
A começar por Lucília de Almeida Neves Delgado, que analisa as articulações para derrubar o governo de João Goulart antes mesmo de o vice de Jânio Quadros tomar posse. Ela descreve detalhadamente o conturbado cenário político nacional e internacional, que tinha como pano de fundo as disputas entre Estados Unidos e União Soviética.
Um passo à frente, Jorge Ferreira aborda questões ligadas à radicalização do governo de João Goulart a partir do fatídico comício na Central do Brasil em 13 de março de 1964. Ferreira avalia como o governo procurou fazer alianças para colocar em prática as reformas de base, costura a atitude da esquerda – pronta para fazer a ‘reforma agrária na lei ou na marra’ – e da direita – absolutamente contra o programa reformista.
As caricaturas sobre o regime João Goulart demonstram como a mídia estava dividida. Um dos aspectos fortes, como demonstra Rodrigo Patto Sá Motta, era o medo do comunismo. Como observa o autor, o apelo anticomunista foi fator-chave na arregimentação contra Goulart, até mesmo interpretando a crise brasileira pela ótica da guerra fria.
Como a força do riso é um instrumento na luta política, um recurso para enfraquecer os adversários é ridicularizá-lo, desacreditá-lo e até mesmo desmoralizá-lo perante a opinião pública. No geral, Jango foi representado como um político demagogo, ligado à esquerda, que não queria largar o poder.
As caricaturas, como avalia Motta, não derrubaram o governo, mas auxiliaram no enfraquecimento do apoio dado pela população e disseminaram a insegurança na sociedade.
A mobilização da sociedade não passou despercebida, como as famosas marchas da ‘família, com Deus, pela liberdade’ e o importante papel que tiveram para desestabilizar o governo Jango. Para fechar, Celso Castro mostra a falta de um projeto claro por parte dos militares que tomaram o poder.
Em uma longa entrevista, a historiadora Maria Yedda Linhares fala de sua infância, das dificuldades que enfrentou ao lado dos pais, sua educação e a passagem pelos Estados Unidos. A historiadora faz um balanço de sua carreira, reafirma a importância da pesquisa nos documentos históricos e fala da situação do ensino universitário no Brasil.
Outro aspecto curioso da Nossa História é a capoeira. Uma luta dançada vinda com os escravos acende polêmica quanto à origem e nome. A capoeira ganhou força e adeptos no Rio após a Guerra do Paraguai e o seu uso político se transformou em um instrumento de coação. Quem espera heróis da população escrava vai se surpreender com sua história.’
Daniela Dariano
‘Araguaia: uma paulada no silêncio’, copyright Jornal do Brasil, 12/04/04
‘Uma parte obscura da história brasileira iluminou-se de detalhes arrepiantes na voz do militar que mais matou no combate à guerrilha do Araguaia, Lício Augusto Ribeiro Maciel, major-adjunto do Centro de Informações do Exército quando atuou na linha de frente do combate ao movimento revolucionário organizado no interior do país pelo PCdoB de 1972 a 1975. As quase doze horas de entrevista inédita do coronel reformado ao jornalista Luiz Maklouf Carvalho, além de novos depoimentos e pesquisas, estão no livro O coronel rompe o silêncio (Editora Objetiva), que chega hoje às livrarias.
Trinta anos depois do embate entre o Exército e os rebeldes à ditadura, o relato do coronel é uma ‘paulada no silêncio oficial sobre o assunto’, considera Maklouf, que ainda se arrepia ao lembrar de trechos da conversa:
– Sem sombra de dúvida, me impressionaram a frieza e a crueza com que ele relata os episódios que resultaram nas mortes. O momento em que ele conta como os cadáveres enrijecidos eram transportados em burros no meio da mata, por exemplo – recorda o autor.
Pormenores do dia-a-dia do confronto enriquecem as revelações de páginas até então suprimidas da história brasileira – até hoje, só um dos 59 corpos dos guerrilheiros assassinados foi encontrado e, oficialmente, afirma-se que os documentos sobre a ação militar no Araguaia foram queimados.
Lício, cujo nome de guerra era Dr. Asdrúbal, conta, pela primeira vez, que o general Nilton Cerqueira – famoso comandante da operação que matou Carlos Lamarca – participou de uma das fases mais radicais do Araguaia, onde teve atuação definitiva na repressão aos guerrilheiros.
– O Cerqueira é que acabou com a guerrilha. Ele montou esse posto de comando lá e começou a agir como eu sempre agi – contou Lício a Maklouf.
O autor foi a Cerqueira, que confirmou as declarações do coronel, um dos 5 mil militares movimentados pelo Exército durante a guerrilha. Lício contou também ter comandado o grupo que prendeu o presidente nacional do PT, José Genoino. Revelou que Genoino não sofreu tortura na mata, o que foi confirmado pelo político.
Os tiros do então major e de seu grupo mataram quatro guerrilheiros. As impressões e a memória do militar são marcantes no detalhamento do violento episódio em que enfrenta a guerrilheira Lúcia Maria de Souza, a Sônia, militante do PCdoB que cursava o quarto ano da Escola de Medicina e Cirurgia do Rio e destacou-se na guerrilha como parteira.
– Quando eu cheguei num arbusto, escutei uns assovios. Olhei, me abaixei, e vi um cara do lado de lá do arbusto. Rapidamente peguei a pistola Browning que eu usava e meti o dedo no gatilho. ‘Vou prender esse cara.’ Depois é que eu vi que era mulher – conta o coronel.
Lúcia chegou a atirar no rosto de Lício, que ainda carrega a marca, e logo foi fuzilada a sangue frio.
– O coronel, durante a entrevista, parecia ter voltado no tempo. Contou um flash-back muito vivo – diz Maklouf.
Caçador de ‘boas histórias’, o jornalista percebeu o orgulho estampado nas confissões de Lício, hoje um ‘pacato senhor de 74 anos’. O coronel parece não compreender por que o Exército decretou silêncio sobre o assunto. Acha que o mistério não se justifica. Rejeita o termo ‘extermínio’ e entende ter cumprido uma missão oficial.
– Arrependido, não, de forma nenhuma. Ele tem orgulho de ter participado. Eles (os militares que atuaram no combate à guerrilha) estão morrendo, pela idade. Muitos já se foram – lembra o autor, que atribui a iniciativa de Lício de romper o silêncio à vaidade: contou os momentos mais marcantes que viveu e teve mais coragem do que outros generais que participaram da ação, mas ficaram ‘em cima do muro’.
Foi o livro A ditadura escancarada, de Elio Gaspari, onde o nome completo do coronel apareceu pela primeira vez, que levou Maklouf a Lício.
– Achei que tinha ali uma boa história. Encontrei o número de telefone do coronel na lista telefônica, na internet. Ele não queria falar muito sobre o Araguaia. Trocamos vários telefonemas. Na primeira oportunidade, ele me recebeu – conta o jornalista.
Apesar da recusa inicial, Lício falou. E queria tanto falar, conta o autor, que a última entrevista, na casa do militar, foi na noite de 25 de dezembro, Natal. Começou no fim da tarde, por volta das 18h, e terminou perto da meia-noite.
Foram ao todo três entrevistas na casa do coronel, no Rio de Janeiro, interrompidas apenas para tomar água e café.
– Não se recusou a responder nenhuma pergunta. Ele queria falar. Ele falou. O coronel se abriu para dizer mesmo as coisas que ele não queria dizer. Falou até contra os próprios militares. Numa matéria de jornal, não daria para contar com a riqueza de detalhes de um livro. Tive paciência. Foram dezenas de ligações, meia centena de e-mails trocados, checando detalhes – conta o autor.
Apesar da riqueza de pormenores do relato, Maklouf e Lício acreditam ser pequena a possibilidade de o livro levar aos corpos dos guerrilheiros mortos.
– Ele diz que os cadáveres foram deixados por eles em determinados locais. Mas já se passaram muitos anos.
O jornalista, de 51 anos, 30 de reportagem, e autor de vários livros, entre eles o premiado Mulheres que foram à luta armada e Cobras criadas – David Nasser e o Cruzeiro, conta que O coronel rompe o silêncio surgiu de seu gosto, desenvolvido desde a década de 90, por boas histórias, com abundância de detalhes, impossíveis de ficarem contidos em páginas de jornal.
O silêncio rompido por Lício estimulou novos depoimentos de militares que nunca haviam contado sobre sua participação no Araguaia. Também falaram sobre o episódio ao autor o coronel Aluízio Madruga e os generais Álvaro Pinheiro e Arnaldo Braga. No livro, são apontados nomes de vários oficiais que atuaram na guerrilha, entre eles Wilson Romão, diretor da Polícia Federal no governo Itamar Franco, e Taumaturgo Sotero Vaz, ex-comandante militar da Amazônia.
***
Violência e morte segundo o coronel
‘- Quando eu cheguei lá, não deu tempo pra nada. Bum! Ela atirou com um revólver calibre 38.
(…)
– O que os seus homens fizeram com a Sônia?
– Depois eu escutei os comentários. Mas eu não vou falar mais nada. De comentário eu não vou falar. Dizem que um cara perguntou pra ela: Como é teu nome? Ela disse ‘guerrilheira não tem nome’, e os caras descarregaram as armas nela.
(…)
– O senhor participou diretamente da ação que a matou?
– Não, mas teria participado. Se ela tivesse atirado e não tivesse acertado, não tenha dúvida que eu ia descarregar a minha arma em cima dela. (…) Pela quantidade de tiro que eles disseram foi uma ação coletiva, de toda a patrulha. Quem ia passando por ela atirou, não tenha dúvida.
‘- O que passou pela sua cabeça depois que o senhor voltou a si, após o tiro?
– A minha teoria é a seguinte: todo homem tem um grau de sensibilidade. O meu é muito baixo, mas nesse dia eu atingi esse grau. Quando eu voltei a mim, eu senti um corpo ao meu redor. ‘Que diabo é isso?’ Meti a mão na cara, olhei, e era sangue. Eu comentei com a minha mulher, quando voltei: ‘Lá eu senti algo, não sei o quê’. Eu senti que tinha alguém do meu lado. Eu senti. Me abalou tremendamente. Eu achei que estava morto. ‘No meio do matagal imenso, com esse bando de cara aqui, até eu ser socorrido, eu vou morrer’. Eu estava pouco ligando. Lembrei da minha mulher, dos filhos, da minha mãe. ‘Chegou a minha hora. Está acabado. Esses caras vão fazer uma força muito grande, vão entregar o cadáver lá, e azar’. Essa impressão foi desaparecendo, eu fui voltando a mim (…).
‘- O que o senhor fez no Araguaia na sua volta?
– Já foi no final. Eu fui com o Torres e ficamos no quartel-general do Cerqueira, que foi o comandante da área.
– O hoje general Nilton Cerqueira?
– O Nilton. (…) O Cerqueira montou o acampamento dele na mata, e foi pra lá que nós fomos. (…) Ele montou esse posto de comando lá e começou a agir como eu sempre agi.
Não era público, até a revelação do coronel Lício, que o hoje general da reserva Nilton Albuquerque Cerqueira, 73 anos, famoso pela morte de Lamarca, tivesse atuado na repressão aos guerrilheiros do PC do B na fase do ‘pega pra capar’, para usar uma expressão do próprio coronel. (…)
– Cerqueira acabou com a guerrilha. Por quê? Porque ele soltou as equipes dele, a totalidade comandada pela turma da brigada de pára-quedistas, e os PQDs botaram pra quebrar. Acabou com os caras.’
João Batista Natali
‘‘Diretas-Já’ conta como o regime militar ruiu nas ruas’, copyright Folha de S. Paulo, 10/04/04
‘O Boeing-737 decolou de São Paulo para Brasília às 7h do dia 23 de abril de 1984. Entre seus 110 passageiros, dois deputados -João Herrmann Netto (PMDB-SP) e Beth Mendes (PT-SP). Reconhecidos, foram convidados com entusiasmo a falar sobre a emenda Dante de Oliveira, que instituiria eleições diretas para a Presidência da República e seria votada dois dias depois.
Herrmann fez rápido discurso pelo sistema de som do avião. Passou a palavra a Beth Mendes. Que entoou as primeiras estrofes do Hino Nacional. Passageiros e tripulantes a acompanharam, e tudo terminou em aplausos.
O comício a 10 mil metros de altura foi um tanto inusitado, mas se enquadrava no clima generalizado de mobilização e emoção que o Brasil então atravessava.
O episódio é lembrado por Domingos Leonelli, 58, e Dante de Oliveira, 52, em ‘Diretas-Já: 15 Meses que Abalaram a Ditadura’, que procura dar a versão bastante completa daquilo que os autores qualificam, com muita propriedade, de ‘o maior movimento de massas do século 20 no Brasil’.
Na madrugada de 26 de abril de 1984 a votação terminou com 298 a favor, 65 contra e três abstenções. Faltaram 22 votos para que a emenda fosse para o Senado.
Mas a campanha, ao menos nas ruas, recolocou a democracia na agenda nacional. O regime militar não sobreviveria, em janeiro, à escolha do novo presidente pelo Colégio Eleitoral.
Os dois autores, peemedebistas quando da votação, não são mais deputados. Dante de Oliveira foi em seguida ministro da Reforma Agrária e governador de Mato Grosso. Sem mandato, está hoje no PSDB. Domingos Leonelli é presidente do PSB baiano.
A ênfase que eles dão é centrada no PMDB e na maneira pela qual o partido operou a partir do Congresso. O papel do PT é no livro francamente coadjuvante, o que com certeza melindrará as lideranças daquele partido.
Oliveira e Leonelli não erram ao colocar em primeiro plano a figura de Ulysses Guimarães (1916-1992), então presidente nacional do PMDB. Relatam as dificuldades de Ulysses dentro de sua sigla, onde governadores eleitos em 1982 hesitavam em entrar em atrito com o governo federal.
Um deles, o amazonense Gilberto Mestrinho, o demonstrou com o autoboicote do comício pelas diretas em Manaus, em 18 de fevereiro de 1984. Quatro dias depois o mesmo governador poria 20 mil pessoas nas ruas para recepcionar o presidente João Batista Figueiredo (1979-1985).
Assim, as Diretas-Já não foram um processo linear, ao qual a oposição e segmentos da sociedade civil aderiram como se fossem passageiros que tomavam seus assentos nas sucessivas paradas de uma viagem cívica.
Muitos dos que dela participaram tinham projetos pessoais. O caso mais singular foi o de Tancredo Neves. O livro traz confidências do então governador de Minas, para quem a emenda Dante de Oliveira não tinha fôlego político para ser aprovada.
Ele intuía, no entanto, que só a presença maciça do povo nas ruas fraturaria o establishment oficial e, por extensão, seu partido no Congresso, na época majoritário. Isso permitiu que, no momento seguinte, Tancredo derrotasse Paulo Maluf e se elegesse presidente pelo pleito indireto, com os votos da oposição (menos os do PT), somados aos de uma dissidência do PDS, o atual PFL.
Outro mérito do livro está em dissecar as intenções que entravam em conflito nos momentos em que a campanha atingia uma de suas encruzilhadas.
Um exemplo. O governador de São Paulo, Franco Montoro (PMDB), foi de certo modo imobilizado pelo sucesso do comício de 25 de janeiro de 1984 na praça da Sé. Acreditava que era grande o risco de não atrair novamente uma multidão equivalente. Ele quis ‘esfriar’ a campanha.
Chegou a não enviar representante ao comitê que discutia um novo ato público, desta vez no Anhangabaú, finalmente realizado a 16 de abril.
Um outro exemplo está no permanente jogo de xadrez entre Ulysses e Tancredo. Eram ambos candidatos à Presidência.
Abril de 1984. Tancredo, no dia 21 em Ouro Preto, aconselha a oposição a não aceitar ‘confrontos desiguais e funestos’. No dia 23, daria entrevista na qual dizia aceitar negociar com o governo, desde que mandatado pelo PMDB. Ele se preparava para o ‘day after’ e sinalizava entendimentos com o grupo palaciano moderado do chefe da Casa Civil, Leitão de Abreu.
Oliveira e Leonelli demonstram que no fundo coexistiram duas campanhas pelas Diretas-Já. A primeira, nas ruas. A segunda, nos chamados bastidores em que as segundas intenções prevaleciam num jogo de simulações.
Diretas-Já: 15 Meses que Abalaram a Ditadura Autores: Dante de Oliveira e Domingos Leonelli Lançamento: Record (em São Paulo, no próximo dia 19) Quanto: R$ 68,90 (643 págs.)’