De Seattle a Davos, nos Estados ‘democráticos’ do ocidente, aos regimes politicamente repressores da Ásia, nos acostumamos à imagem midiática de protestos controlados por forças de segurança pública cada vez mais militarizadas. Governos e, especialmente, conferências internacionais agora se escondem atrás de cercas, seguranças e prédios inacessíveis. Talvez, no entanto, não estejamos percebendo uma restrição mais significativa ao nosso direito de livre expressão, muito embora ela se manifeste diante de nós todos os dias. É a gradual tomada dos nossos espaços públicos, ou comuns, pelo interesse privado. E mais: essa tendência faz prever uma futura batalha pela liberdade de expressão em outro espaço público – um que muitos usuários entendem como aberto e incontrolável: o dos computadores e da internet. Precisamos despertar para a ameaça a esses espaços públicos digitais antes que também dentro deles comecemos a perder nossos direitos de livre expressão e associação.
Perdendo nosso direito aos espaços comuns
Historicamente, cada sociedade tem reconhecido a idéia do ‘espaço comum’. Há certos espaços na sociedade que imaginamos abertos a todos. Por essa razão, eles têm sido tradicionalmente utilizados para reuniões e manifestações. Mesmo em países como os do Reino Unido, com uma longa história de industrialização e repressão a movimentos reivindicatórios, a idéia do espaço comum e do acesso a esses espaços nas ruas e praças públicas sobreviveu. Isso é crítico, pois a capacidade de se reunir e se comunicar em público é o cerne da livre expressão e compõe a base de qualquer movimento por mudanças políticas.
No entanto essas tradições têm sido seriamente ameaçadas pela privatização dos espaços públicos. Em países que alardeiam seu compromisso com a liberdade de expressão, como Estados Unidos e Reino Unido, houve uma mudança sutil no direito à livre expressão. Governos e políticos são impedidos por lei de fazer restrições diretas às liberdades individuais, mas via-de-regra o fazem. Na verdade, suas políticas de livre-mercado têm criado severas restrições para o exercício do ativismo e para as comunicações públicas.
À medida que shoppings cada vez maiores são construídos e megalojas provocam o fechamento do pequeno comércio local, diminuem os espaços públicos onde as pessoas podem interagir livremente. Esses novos shoppings são propriedade privada. E embora uma cidade inteira possa fazer compras nesse lugar, seus cidadãos não têm qualquer direito de protestar numa propriedade privada. Nos Estados Unidos, na iminência da guerra no Iraque, até mesmo vestir uma camiseta com dizeres de paz dentro de um shopping era classificado como um protesto, provocando a detenção do usuário. Na realidade, o shopping acaba sendo um porto seguro em que até mesmo os excessos mais abomináveis das corporações globais se mantêm protegidos atrás de vidros translúcidos, circuitos fechados de TV e segurança particular.
Ao mesmo tempo, parte cada vez maior dos nossos espaços públicos fica abarrotada pelo trânsito, e a pressão pelo desenvolvimento resulta em que muitos desses espaços (e no Reino Unido isso também inclui escolas e hospitais) acabam tomados pela iniciativa privada. De várias formas, nossos espaços comuns têm sido subtraídos, entregues a interesses privados. Conseqüentemente, a capacidade de organização e protesto em torno de questões locais e nacionais tem sido marginalizada. Torna-se cada vez mais difícil o engajamento popular, uma vez que os espaços públicos, embora abertos aos nossos direitos de consumidores, encontram-se inacessíveis aos nossos direitos civis e políticos.
O ‘espaço comum digital’ e a tecnologia DRM
Em todo o século 20, o mais significativo avanço para a liberdade de associação em níveis local e global talvez tenha sido o desenvolvimento da internet. É, de fato, um ‘espaço comum digital’. A tecnologia criou um espaço onde, fora até mesmo das pressões dos regimes mais repressores, indivíduos podem se reunir, se comunicar e promover mudanças.
A restrição mais significativa, até aqui, tem sido o fato de que o acesso à internet permanece limitado a uma elite, concentrado principalmente nas nações mais ricas. O fato de que a tecnologia é um pré-requisito para que se tenha acesso a essa rede também significa que, sob regimes repressores como o de Myanmar, ter um computador pode ser considerado crime punível com prisão.
Entretanto a internet tem permitido que interesses comuns entre populações de regiões diversas do mundo sejam compartilhados e ações coletivas sejam planejadas.
Até o momento, mais do que se concentrar nos benefícios da liberdade de expressão dos cidadãos, muitos governos têm preferido celebrar a internet pensando na revolução do comércio eletrônico. É uma pena, pois ao pensar nos efeitos para os negócios e não para a sociedade civil, a maioria dos governos enxerga a internet como um espaço puramente ‘contratual’ envolvendo usuários, provedores de serviços e corporações de telecomunicação. Conseqüentemente, mais ou menos como ocorre na relação entre os shoppings e o público, não vêem necessidade de uma legislação para proteger os direitos civis e políticos nesse ‘espaço comum digital’.
No início dos seus 36 anos de história, a internet foi desenvolvida como um projeto colaborativo. E o que é mais importante: a tecnologia responsável pelo funcionamento das mais diferentes redes de computadores utiliza padrões abertos. Isso permite que desenvolvedores de diferentes sistemas façam uso dos padrões sem precisar pagar licenças – o que chamamos de ‘interoperacionalidade’. Ao mesmo tempo, o uso de computadores, em si, sempre foi livre. Podemos usá-los quando quisermos, ainda que isso infrinja alguma lei em nosso ou em outro país. Contudo, durante a década seguinte, pudemos ver as mesmas forças privatizadoras que tomaram conta de nossas cidades dissimulando a liberdade de uso de computadores e de relacionamentos online em favor dos interesses dos detentores de direitos de propriedade intelectual.
Como usuários de computadores que trabalham coletivamente usando a internet, infringimos leis de copyright quase todos os dias. Esqueça softwares piratas ou compartilhamento de arquivos! A lista de atividades que rotineiramente violam o copyright é muito mais inócua. Por exemplo, copiar texto de fontes online para colar em seu processador de texto, escanear e usar email para enviar artigos para amigos, fazer sampling de música e vídeo, gravar programas de rádio ou TV ou até mesmo, em certos casos, citar nomes de produtos ou marcas registrados comercialmente. Boa parte do sucesso dos computadores e da internet se deu a partir de pequenas infrações de copyright cometidas pelos usuários. Até o momento, esses atos têm sido ignorados, seja pela impossibilidade de controlá-los ou porque é inútil tentar impor sanções legais além das próprias fronteiras.
Na Páscoa de 2006, a Microsoft deve lançar o Vista, sistema operacional que vai substituir o Windows XP. Será o primeiro sistema de grande porte a adotar a tecnologia DRM (sigla de Digital Rights Management, ou Administração de Direitos Digitais). Como afirmou a própria Microsoft ao jornal The New York Times, em 2002, a introdução da DRM vai representar ‘o fim de interoperacionalidade’. O objetivo é simples: ao impedir um computador de ‘conversar’ com outro livremente, é possível prevenir o uso não autorizado de propriedade intelectual. Quem detém direitos de propriedade intelectual não terá mais de ir à Justiça para defendê-los e provar que os tem, pois o sistema automaticamente se encarregará de protegê-los. No entanto, considerando nosso uso diário dos computadores e da internet, a DRM tem um impacto mais significativo sobre como as pessoas serão capazes de se relacionar e trocar informações no futuro.
Os sistemas DRM não são apenas um mecanismo mais sofisticado de combate à pirataria. Não se trata somente de evitar que arquivos sejam copiados. Todos que acessarem um computador serão identificados. E isso será a base para o controle do acesso a esse computador e a todas as redes de computadores que compõem a internet. O objetivo é aparentemente simples: se você consegue identificar o usuário, e sistemas complexos de criptografia e verificação podem ser usados para isso, é possível cobrar pelo acesso à informação. Você igualmente passa a abrir mão de qualquer anonimato em redes eletrônicas onde deveria permanecer anônimo, como ao fazer uma transação eletrônica com cartão de crédito.
Quando sistemas complexos de DRM estiverem sendo usados em larga escala (o que pode levar, nas previsões atuais, dez ou 15 anos), softwares e informações não serão mais comprados, mas licenciados por determinado período, eletronicamente, utilizando conexões criptografadas, de modo a evitar que o conteúdo esteja disponível para alguém que não tiver pago por ele. Isso significa que as pessoas poderão ter de pagar para ter acesso a uma determinada página. E ao terem acesso, mesmo gratuitamente, talvez não possam editar ou salvar, sequer imprimir o conteúdo ali reproduzido. Haverá também restrições a quem desejar fazer cópia da informação de um programa para outro, como, por exemplo, do browser para o editor de texto. Em resumo, a tecnologia DRM serve para ‘lacrar’ computadores e redes de computadores, de modo a evitar que as pessoas façam o que bem quiserem com a informação que recebem diariamente. Significa exterminar todas as pequenas infrações contra a propriedade intelectual que tornam o uso dos computadores e da internet tão valioso no nosso dia-a-dia.
O futuro não está pronto… e você pode construí-lo
Empresas como a Microsoft vendem a idéia da tecnologia DRM como algo que tornará seu computador ‘mais seguro’. Como disse Thomas Jefferson, terceiro presidente da história dos Estados Unidos, ‘uma nação que impõe limites à liberdade em nome da segurança não terá nenhuma das duas’. Os atuais problemas de segurança envolvendo computadores são em parte baseados nas práticas reservadas de companhias de software que tentam proteger seu trabalho utilizando direitos de propriedade intelectual. Esses problemas não existem na mesma escala com softwares produzidos em sistema aberto. Sistemas DRM ainda continuarão sujeitos a falhas que os deixarão expostos a vírus, vermes e outros perigos virtuais, porém permanecerão no seu papel de restringir o acesso a informações não-autorizadas.
Muitos daqueles que se opõem ao uso da tecnologia DRM depositam sua fé em sistemas ‘abertos’ como o sistema operacional Linux. Para nós, é uma esperança vã. Isso porque, embora a tecnologia DRM esteja sendo adotada inicialmente em softwares, á intenção é que a próxima geração de processadores já saia de fábrica com a DRM instalada no próprio hardware. Software livre é irrelevante quando os controles estão instalados nos circuitos dos computadores. Entretanto até mesmo Linus Torvalds (criador do Linux), para a revolta de boa parte do movimento pelo software livre, já declarou que não vê problema em instalar controles DRM no Linux. Conseqüentemente (a menos que surja outro sistema operacional livre), que fé podemos ter no software livre?
Os argumentos sobre a tecnologia DRM – e sobre a preservação do espaços comum digitais – não se baseia na tecnologia, mas nas informações que esses sistemas podem trocar. Os espaços comuns digitais não contêm bit e bytes de dados, mas palavras e expressões de pensamentos convertidos em meio digital. Do mesmo modo, a tecnologia DRM não lacra computadores com o propósito de restringir o acesso. O que ela faz é restringir acesso a conteúdo licenciado. Por isso, se queremos chegar à raiz do problema, é preciso discutir o conteúdo, não apenas a tecnologia.
Os mais simples sistemas DRM utilizam ‘metadados’ – isto é, dados que descrevem outros dados – para controlar o acesso ao conteúdo. Então que tal desativarmos esses controles ao produzirmos informação? Por que não distribuir o conteúdo que produzimos? Para os habituais produtores de informação online, o grande interesse reside em utilizar o potencial monopolista da tecnologia DRM. Mas se uma rede mundial de ativismo, a começar pelos ativistas locais, dedicar parte de seu tempo para produzir conteúdo livre coletivamente, o monopólio sobre a informação online terminará. Os usuários de computadores estariam diante de uma escolha bastante simples: pagar por conteúdo ou utilizar informação disponível gratuitamente.
O debate sobre a tecnologia DRM e seus efeitos sobre o uso de computadores envolve muitos e diferentes aspectos. Saber se o novo sistema da Microsoft vai funcionar como planejado é um deles. Mas para aqueles que têm uma consciência global, DRM traz uma questão maior: que tipo de mundo digital queremos construir? As leis de propriedade intelectual que levaram à criação da tecnologia DRM são um produto da industrialização. Um resultado direto do desejo de explorar os consumidores. De maneira oposta, a noção de informação aberta, compartilhada digitalmente e produzida colaborativamente se baseia em ganho cooperativo. Em fazer com que o esforço colaborativo resulte em benefícios para um número maior de pessoas, ampliando e reafirmando a natureza do espaço comum digital.
Se prover conteúdo gratuito for a melhor solução para o mundo fechado que a DRM pretende criar, que argumento contrário você levantaria?
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Integrante do grupo inglês de ciberativismo electrohippies collective; artigo publicado sob licença GNU Free Documentation; contato com o autor (mobbsey@gn.apc.org)