Os primeiros carnavais, ainda sem este nome, foram realizados entre os anos 600 e 520 a.C. na Grécia antiga, de onde foram trazidos para Roma e adaptados ou mesclados aos festejos pagãos. Mas é provável que eles tenham sido influenciados por celebrações semelhantes feitas às margens do Nilo desde o ano 4.000 a.C., em agradecimento aos deuses pelas safras do ano anterior e súplicas de boa colheita nas próximas semeaduras. O Egito demorou um pouco a ser monoteísta e a render homenagens exclusivamente ao Sol, como os judeus demoraram a adotar unicamente Javé, tendo adorado até bezerros de ouro, já na travessia do deserto, quando romperam, sob Moisés, a escravidão que haviam sofrido no Egito, cuja libertação ainda hoje está presente na Páscoa, festa realizada logo depois da quaresma.
Nas duas culturas, na grega como na latina, as festas carnavalescas davam destaque nas homenagens aos deuses da fertilidade e da produção, como Saturno, deus da agricultura; Baco, deus das vinhas, do vinho, da sensualidade; Ceres, deusa das flores e dos trigais: o étimo de seu nome ainda hoje permanece na palavra cereal; e, entre outros, Príapo, deus da fertilidade humana, pois o falo, tal como representado em Príapo, era indispensável à procriação. Era, porque hoje ele também está sujeito a concorrências inimaginadas pelos antigos.
No grego, como no latim e no português, o étimo presente no nome desse deus permaneceu como indicativo de exagero da sensualidade, só tolerado entretanto nas festas para chamar a atenção dessa necessidade. No resto do ano a vida seguia sua rotina, alternando seis dias de trabalho com um de festa.
Atrás das máscaras
A coisa mais parecida com o atual Carnaval, na Roma antiga, eram as saturnais. Tribunais, escolas, fóruns e outras instituições públicas fechavam as portas. O povo dançava alegremente ao lado de um barco que desfilava sobre rodas pelas ruas, o carrus navalis. Desfilar é sair da fila, destacar-se dentre os demais.
O cristianismo é religião vinda do judaísmo. Quando passou a ser tolerado, cessaram as perseguições aos cristãos e logo depois, já no século 4, no reinado de Constantino, tornou-se a religião oficial do império.
A igreja, então, pôs-se a organizar todas as festas pagãs, disciplinando-as e por vezes deslocando-as, de acordo com os interesses dos novos donos do poder, agora associados ao poder imperial. Dioceses, cúrias, paróquias etc, a nomenclatura é apenas um desses vestígios.
O Carnaval foi uma das festas deslocadas. Realizado entre 17 e 23 de dezembro, veio a ter lugar à entrada da quaresma, separado da festa do deus Solis Invictus, o Sol Invicto, que por sua vez foi substituída pelo Natal.
No fim da Idade Média, tendo controlado todas as festas, menos o Carnaval, o papa Paulo II permitiu que os desfiles fossem feitos em frente a seu próprio palácio, mas com moderação, sem os apelos sexuais.
Esse papa merece ao menos um parágrafo. Sobrinho de outro pontífice, tornara-se cardeal aos 22 anos. Nascido em Veneza, então matriz do carnaval italiano, usava tantas joias e enfeites de metal que num inverno muito frio morreu de pneumonia. Seus costumes peculiares, a vivência veneziana e também sua juventude por certo influenciaram sua decisão. Ele rompeu com as famosas condenações feitas ao Carnaval por Tertuliano, Clemente de Alexandria e São Cipriano – santo a quem é atribuído inclusive um livro famoso, que ensina a fazer feitiços e malefícios contra os inimigos. Ainda hoje, tanto o verdadeiro livro de São Cipriano, como o falso, vendem muito no Brasil.
Os festejos autorizados pela Santa Sé eram realizados à entrada da quaresma e em algumas culturas, como na luso-brasileira, tiveram originalmente a variante de entrudo, do latim introitus, entrada. Isto é, entrada da quaresma.
No primeiro Carnaval autorizado pelo papa, proliferaram as alegorias, as comparações, as corridas de corcundas e de anões, os atos de jogar farinha e ovos uns nos outros etc., que perduraram por séculos. A sátira também teve seu lugar. Rainhas, princesas e outras autoridades eram representadas por célebres beldades, como as prostitutas mais conhecidas e devidamente disfarçadas no meio de mulheres virtuosas, sem excluir os bobos da corte, também misturados a outros bobos, tratados como reis nos desfiles.
Até clérigos se misturavam à multidão vestindo suas roupas litúrgicas de trás pra frente, debochando dos superiores, carregando missais virados, desde que com os rostos devidamente disfarçados por trás de máscaras, pois nos dias seguintes rezariam missas, atenderiam confissões, enfim voltariam a ministrar os sacramentos. O recurso das máscaras permitiu, como já acontecia em Veneza, que os nobres matassem a vontade de se divertir e se misturassem ao povo. Afinal, uma das coisas que o povo sempre fez melhor do que aqueles que o dominaram foi divertir-se.
Bem ou mal
Mas por que esse conjunto de festas recebeu o nome de Carnaval? As origens são controversas. Além da provável influência de carrus navalis, é possível que a palavra resulte da expressão do latim medieval “carne, vale!”, viva a carne! Estando à entrada da quaresma, dar adeus aos prazeres da carne, no sentido literal (a abstinência de comer carne), e no metafórico: suspender os prazeres sexuais desmedidos, trazendo-os para a rotina. Vale, em latim, podia ser proferido ao chegar e ao partir, como o ciao italiano.
Antes de a igreja católica disciplinar o Carnaval, que depois abandonou, tolerando-o apenas, cada cidade brincava a seu modo, de acordo com seus costumes. Mas certos resquícios permaneceram: os desfiles lembram antigas procissões, como mudaram as representações nos estandartes: saíram as efígies dos santos e dos poderosos epocais, e entraram outras alegorias. Nos carros alegóricos, em vez de musas e de santos, as “celebridades” efêmeras de cada ano.
Hoje o Brasil faz o maior carnaval do mundo, e o carnaval do Rio de Janeiro é anunciado como o maior espetáculo da Terra. Nosso país aperfeiçoou os festejos modernos da era vitoriana – pois, quanto mais repressão, mais necessidade de desafogá-la em algum momento propício. Os desfiles do século 19 mantinham a fantasia das versões, coisas que pode ser comprovada em muitos sambas-enredos atuais.
Vemos também algumas influências restantes do carnaval italiano de Veneza, principalmente com os seus bailes de máscaras, que escondiam a identidade das pessoas, que assim podiam ser o que quisessem. Não podemos esquecer que pessoa veio do latim persona e quer dizer justamente máscara.
O carnaval brasileiro deve muito à Família Real portuguesa que para cá veio em 1808. O povo adorava a monarquia e nos desfiles homenageava tanto os deuses pagãos, incluindo o rei Momo, como rainhas e princesas, misturando-os a divindades de diversas culturas.
A grande marca do carnaval é a inclusão social. Só fica de fora quem quiser. Todos estão convidados a festejar. Durante três dias (que no Brasil são cinco, pois as festas vão de sexta a quarta-feira), o rico e o pobre, patrões e empregados, feios e bonitos, todos comportam-se como se fossem iguais. Gordo, porém, só Momo. Os meses que antecedem o Carnaval são de dieta para milhões de pessoas. Inverte-se o preceito: a abstinência precede o Carnaval. As lipos também.
Na quarta-feira de cinzas, volta a realidade, que somente será abolida no próximo Carnaval. Começa a quaresma, definida de forma equivocada em todos os dicionários de língua portuguesa, pois os 40 dias ali informados não são cronológicos, são simbólicos. A Páscoa não tem data fixa no calendário gregoriano, pois segue o antigo calendário lunar. Este ano a quaresma terá 43 dias, por exemplo. Vai da quarta-feira de cinzas inclusive à quinta-feira santa exclusive.
Os leigos buscam legislar sobre as festas cristãs, mas seria de todo conveniente, em nome da precisão, que conhecessem melhor suas complexas sutilezas. Já é mais do que hora de os dicionaristas e lexicógrafos reconhecerem o óbvio: a quaresma não tem 40 dias e não tem o mesmo número de dias todos os anos. Se os leitores são ateus ou religiosos, isto não vem ao caso, pois só alguém sem cultura nenhuma deixaria de reconhecer que a civilização ocidental, para o bem ou para o mal, é herdeira de outras mais antigas, como a egípcia e a greco-romana, mas é principalmente judaico-cristã, e essas duas últimas estão presentes, explicita ou implicitamente, em usos, costumes, cerimônias, festejos, efemérides e, principalmente, nas palavras que proferimos ou calamos.
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[Deonísio da Silva é doutor em Letras pela USP e vice-reitor da Universidade Estácio de Sá; autor de 34 livros, o mais recente é o romance Lotte & Zweig]