O Observatório da Imprensa foi a Belém do Pará mostrar a história de um jornalista ameaçado de morte: Lúcio Flávio Pinto, editor do Jornal Pessoal. O programa exibido na terça-feira (20/12) pela TV Brasil veiculou uma entrevista de Alberto Dines com o jornalista que enfrenta mais de trinta processos na Justiça.Por conta de suas denúncias relacionadas à destruição do meio ambiente e ao tráfico de matéria-prima na região amazônica, Lúcio Flávio sofre forte oposição local. Entre os denunciados pelo jornalista figuram políticos influentes, donos de meios de comunicação e grandes empreiteiros.
A ameaça mais recente ocorreu em 10/12, dias depois da gravação da entrevista. De acordo com o jornalista, o empresário Rodrigo Chaves o ameaçou de agressão física por ter sido citado em reportagens do Jornal Pessoal sobre um esquema fraudulento envolvendo os proprietários do jornal O Liberal, Ronaldo e Rômulo Maiorana (ver “Truculência e lei da selva em Belém”). Desde 2002, Lúcio Flávio publica reportagens sobre este assunto.
Ganhador de quatro prêmios Esso, Lúcio Flávio tem mais de dez livros e coletâneas publicados sobre a Amazônia. Formado em Sociologia, é jornalista profissional desde 1966. Passou por redações de importantes jornais de circulação nacional, como o Correio da Manhã e O Estado de S.Paulo,e também por publicações alternativas. Em 1988, fundou o Jornal Pessoal, um newsletterquinzenal sobre a região amazônica. É uma publicação alternativa que se sustenta da venda avulsa em bancas e livrarias de Belém. Publicado em formato ofício, o jornal tem 12 páginas e não usa cores ou fotografias.
Quixote da selva
Na abertura da entrevista, Dines destacou que Lúcio Flávio enfrenta “vários dragões simultaneamente”. O editor do Jornal Pessoal disse que não decidiu ficar sozinho, mas sim “descobriu-se” sozinho. Lúcio Flavio contou que percebeu que não teria espaço nos veículos tradicionais no momento em que escreveu uma reportagem sobre o assassinato do ex-deputado estadual Paulo Fontelles de Lima, advogado de posseiros de terra, em 1987, na região metropolitana de Belém.
Para o jornalista, o crime representava o avanço da “selvageria” no Estado porque o político não fora morto em áreas afastadas, como era o costume. “Chegou um momento em que eu vi que a matéria que eu havia escrito, e demorei três meses para escrever, não tinha onde ser publicada”, lembrou. Nesta época, ele trabalhava em O Liberal. A chefia do jornal avaliou que aquela era uma boa reportagem, mas admitiu que não poderia publicá-la porque o crime envolvia dois dos maiores anunciantes do jornal.
Diante da negativa, Lúcio Flávio decidiu fundar o seu próprio jornal. Imaginava que a publicação teria vida curta, porque era alternativa. “Aos poucos, fui percebendo que se o Jornal Pessoal não saísse, aquelas informações não seriam publicadas. A partir daí, o Jornal Pessoal sobrevive do fato de que o que sai nele não sai em nenhum outro lugar”, disse o jornalista. Para garantir que o empreendimento fosse viável, preferiu editá-lo sozinho. Se o jornal não fosse adiante, os problemas burocráticos seriam pequenos.
Jornal em amarras
Para ser independente até dos amigos, eliminou a publicidade. Assim, não tinha que retribuir os anúncios com favores por intermédio do jornal. “No sétimo número do Jornal Pessoal, um amigo meu, dono de uma construtora, me ligou e disse: ‘Lúcio, eu queria que tu fizesses um cálculo de quanto custa o jornal e quanto sairia para tu viveres dele’. Aí eu disse: ‘Mas, por quê?’ Ele disse: ‘Porque eu quero que saia este jornal sem parar’. Aí, eu disse: ‘Então, faz o seguinte: se tu repetires a proposta no número oito eu vou aceitar’. É que a edição trazia uma matéria contra a construtora dele, que estava rompendo o gabarito de um prédio. Ele me ligou: ‘Poxa, não dá para te ajudar’. Eu disse: ‘Não, tu queres me comprar e eu não estou à venda’.”
Durante os primeiros quatro anos, a publicação foi sustentada pela reserva de capital que o jornalista havia acumulado ao longo da carreira. Com o fim do dinheiro, Lúcio Flávio viu que teria que se acostumar a trabalhar com poucos recursos: “A única maneira de ser independente é ser pobre. Mas, paradoxalmente, o jornal tem que ser caro porque 80% do faturamento de uma empresa jornalística é publicidade”. Cada edição do Jornal Pessoal custa R$ 3 nas bancas. O quinzenário não tem seções como polícia ou matérias sobre celebridades ou fofocas.
Dos 33 processos movidos contra o jornalista, quatro resultaram em condenação. Foi censurado diversas vezes e em uma delas chegou a desafiar a ordem de um juiz federal: “Foi um caso exemplar porque o juiz federal, que é considerado o melhor nível do Judiciário, me mandou uma ordem, que veio no mesmo dia em que ele deu o despacho, dizendo o seguinte: ‘você está proibido de falar sobre este tema sob pena de multa e prisão incontinenti’. Eu amanheci o dia com o oficial de Justiça na minha porta”.
Censura togada
O jornalista disse para o oficial que não cumpriria a ordem porque a considerava inconstitucional e usou a internet para protestar contra a censura prévia a que estava submetido. Com a repercussão do caso, o juiz voltou atrás na decisão. “O patrimônio do Jornal Pessoal tem três componentes. O primeiro são as fontes. São as melhores que se pode ter. Em segundo lugar, ele não tem compromisso com nada. Ele desafia a verdade, todas as pessoas são contrariadas. Terceiro: ele nunca foi desmentido”, sublinhou. Lúcio Flávio chamou a atenção para o fato de que em nenhum dos processos que sofre o autor usou o direito de resposta, que ele considera sagrado.
O jornalista paraense adota como regra não editar as respostas que recebe, mesmo que contenham xingamentos ou sejam excessivamente longas, e só publica a sua réplica na edição seguinte. “Mas ai dele se estiver dizendo uma mentira. Vai ficar ainda mais desmoralizado. Por isso, nunca exerceram o direito de resposta”, ressaltou. O editor se orgulha de ter publicado todas as cartas de leitores que recebeu nestes 24 anos à frente do Jornal Pessoal, mesmo as mais “horrorosas”.
Dines perguntou como é a convivência com a população local e se os moradores oferecem ajuda. O jornalista contou que recebe inúmeras manifestações de apoio da sociedade e dos amigos. E até os inimigos reconhecem que o jornal é um veículo sério. Mesmo sendo uma publicação com um formato simples, faz parte do clipping das principais empresas do Pará e até de fora do estado.
O valor do papel
Na avaliação de Lúcio Flávio, a publicação em papel é vital: “Dou a maior importância para o papel, eu acho que acima de tudo, o jornal tem que circular no papel. No dia em que não tiver mais edição impressa, eu pararei o Jornal Pessoal. Mas se fosse só assim ele teria uma repercussão pequena. A grande repercussão é que ele vai sendo reproduzido em várias instâncias, até no exterior”. É o jornal que mais vende em banca em Belém. “O leitor tem que ir atrás dele, ele não vai atrás do leitor. Às vezes o leitor tem que ir mais de uma vez à banca”, contou. Outro local de disseminação são as mídias sociais.
Na avaliação do jornalista, os leitores do Jornal Pessoal percebem que as análises e reflexões ali veiculadas não são encontradas em outros jornais e proporcionam subsídios para a compreensão de problemas estruturais da região amazônica. “A visão de fora da Amazônia é muito exótica. As pessoas estão dispostas a aceitar a Amazônia do rio enorme, com a vastidão das florestas. Mas não conseguem entender a Amazônia como tendo há cinquenta quilômetros de onde estamos a oitava maior fábrica de alumínio do mundo”, explicou o jornalista.
Convivem na região polos de tecnologia de ponta e áreas com graves problemas sociais e econômicos. “É difícil ter uma ideia da realidade da Amazônia por conta desses paradoxos. E a grande imprensa, e mesmo o cidadão comum fora da Amazônia, não consegue perceber estes contrastes.”
O jornalista contou que acha necessário manter um acompanhamento contínuo das questões da Amazônia, e por isso optou por voltar a morar no Norte do país. Mas destacou que é importante não perder a perspectiva da inserção da floresta no contexto internacional. “Você não explica a Amazônia só estando aqui”, destacou. Lúcio Flávio contou a Dines que gostaria de parar de rodar o Jornal Pessoal para dedicar-se a algum projeto que lhe rendesse mais estabilidade, mas não tem ânimo para encerrar a publicação: “Eu faço um esforço sincero porque é um caso que mostra as limitações da democracia no Brasil”.
Interesses disfarçados
O silêncio da imprensa em torno de temas tabus e os interesses das empresas de comunicação também foram debatidos na entrevista. “Por que em uma época de democracia, o mais longo período de democracia da República brasileira que nós estamos vivendo, muita coisa não sai na imprensa? É porque os esquemas corporativos não deixam? É porque as empresas anunciantes não permitem? É porque o governo coage ou, além de tudo isso, o jornalista se acovardou?”, questionou o Lúcio Flávio.
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[Lilia Diniz é jornalista]