Com um título como esse aí em cima, a leitura da coluna de hoje ganha estímulos artificiais. Anabolizantes. O visgo do desejo – aqui acionado pelo uso da expressão ‘mulher pelada’ – potencializa o olhar, o apetite. Todos os leitores do Observatório, sem exceção, clicarão no título: e a minha projeção não admite margem de erro, nem de 0,02%. Em seis ou sete linhas é provável que 90% já tenham se evadido ao sabor de outras atrações, mas que o primeiro impulso trará todos para cá, isso é certo.
Nariz de cera – ou de silicone
Nos tempos em que as bancas de revistas tinham alguma importância, e isso já vai longe, quando ainda não havia venda de revistas em supermercados nem a internet, os editores redigiam chamadas de capa com o objetivo de despertar duas pulsões malignas nos passantes: desejo (libido) e medo (aparentado da morte; o medo salva vidas à medida que leva o sujeito a fugir do perigo, mas a morte que desperta medo exerce uma atração irresistível). Quem, desavisado, perambulando pelas cercanias da banca, fosse atingido pela seta das chamadas de capa e experimentasse desejo ou medo comprava a revista.
Ainda compra. Mulher pelada vende revista, mesmo revista feminina, pois mobiliza pulsões. Hipocondria – ou o medo de morrer que se converte em culto ao medo de morrer – vende revista. Notícias de crime, desde sempre, constituem o filão do sensacionalismo. Vende como o quê. Medo do crime, do criminoso e de si mesmo. Medo da existência de vida além da linha da legalidade, a vida desgovernada que chama e intimida o leitor ao mesmo tempo. A descrição minuciosa dos mecanismos amorais da corrupção pós-moderna acendem faíscas diabólicas nas pupilas curiosas e medrosas da classe média bem-comportada. Ela se deixa fisgar por aquilo que a assusta – e por aquela paixão pelos tipos que desprezam as ameaças da lei e da ordem, essa gente que não tem medo da cana, nem do esquadrão da morte.
A psicopatia potencial ou desbragada dos corruptos aterroriza e apaixona o leitor. Ele fica alucinado para ver o desregramento mais de perto, mais ou menos como os motoristas que param na estrada, provocando congestionamentos quilométricos, só para ver, um pouquinho só, o corpo esmagado dentro da lataria do automóvel que acaba de se espatifar contra um caminhão. O pavor e seu fascínio vendem publicações, atravancam as rodovias e lotam as farmácias.
De olho no medo alheio, as revistas trazem inventários caprichosos e sádicos sobre as doenças que espreitam a nossa era. São enfermidades físicas ou psíquicas, biológicas ou econômicas, individuais ou coletivas. Todas elas. As revistas trazem também os indefectíveis questionários. ‘Responda as perguntas a seguir e descubra se você pode morrer de infarto depois de amanhã.’ Ou: ‘Preencha os quadrinhos com um `x´ e veja quais as chances de você estar sendo traído(a) pelo(a) seu(ua) marido (mulher)’. ‘Saiba se você é alcoólatra.’ ‘Saiba se o seu chefe quer demitir você.’ Medo, medo, medo.
Suspiro secreto
Os jornais não podem ir tão longe. Seu discurso é mais impessoal que o das revistas. Eles não podem se permitir, digamos, certas intimidades. Por isso, exploram os medos, digamos, mais ‘cidadãos’. Isso, ‘medos cidadãos’. As revistas tratam de pânicos privados, pânicos amorosos, pânicos próprios da ambição inconfessável e do carreirismo atroz que pouco se disfarça por trás de boas maneiras corporativas. Já os jornais falam dos horrores próprios da pólis. Rebelião em massa. Recessão nos Estados Unidos. Rombo nas contas públicas. Guerra na Colômbia.
A libido é igual: vende. Mas a libido é, sem trocadilhos, um tanto mais reprimida que o medo. Por isso, nos jornais diários, não tem como aparecer assim, nua. Jornais não falam de sexo a não ser na forma de escândalo político ou de contágio da Aids. No seu código não cabem permissividades. Revistas são espaço íntimo. Jornais são espaço público. Revistas são lidas no tempo de lazer. Jornais são material para o trabalho. Revistas são guardadas no quarto. Jornais velhos, ‘jornais já lidos’, como dizem as aeromoças na hora de limpar o avião, aterrissam no lixo. Revistas são libidinosas. Jornais são conscienciosos. Mas se permitem, ah, isso sim, eles se permitem um beliscão ali, outro lá. Quando é verão no litoral norte de São Paulo, quando o sol torra nas praias, ou quando os tamborins entram em aquecimento dionisíaco prenunciando a chegada do carnaval, os jornais mostram mulheres quase em pêlo. Eles se valem dessas oportunidades para aliviar o peso das notícias, como se mulheres ao sol – ou no samba – dessem leveza às manchetes rabugentas.
Parece haver, nos contornos curvilíneos de jovens esbeltas, um fator de contraste vital com as linhas retas da diagramação de todo dia, um fator desejável demais para ser deixado de lado – e embaraçoso demais para ser habitual. Jornais sérios, que procuram ter a voz da autoridade paterna, são universos masculinos, mas acima de tudo recatados, como os gabinetes oficiais e os quartéis – por mais que haja mulheres jornalistas, mulheres políticas e mulheres militares. A mulher nua só aparece ali, e mesmo assim em doses cautelosas, na condição de um refresco, de um enfeite inofensivo. São as mulatas sorridentes no ensaio da escola de samba, a paulistana jogando frescobol no Guarujá, a tenista suja de saibro, suada.
No universo de páginas engravatadas, um corpo de mulher, com o tônus que não é dado por músculos, nem por exercícios, nem por dieta nenhuma, mas por uma força vital que pulsa na alma e se deixa ver na pele, surge para nos lembrar que aquilo existe – aquilo, o desejo. Ou, o que dá no mesmo, porque o editor se distraiu e foi traído pelo próprio.
Vai daí que uma imagem linda de mulher vem, quase sempre, sem gancho, mas vem, e vem bem-vinda. Os leitores até apreciam, mas com moderação, por favor, se não a pose vai por terra. O desejo caminha entre as fotos do hard news e as letrinhas dispostas como batalhões em dia de parada militar. Ele caminha sem ser convidado, mas anda assim mesmo, sem convite. É próprio dele. E é assim que ele se mostra ao leitor, na imagem de uma mulher sonhadora e entregue. ‘Ah, uma mulher quase nua, no meio de tanta notícia’, suspira secretamente o leitor, o leitor masculino, sim senhor. ‘Ah, essa visão, essa lembrança, esse perfume visual que me leva para tão longe.’
As mulheres peladas propriamente ditas
Tudo isso escrevo – e há de ser pouco o demasiado que escrevo – a propósito de três quadrinhos de Angeli, que apareceram na página 11 da do caderno ‘Ilustrada’ da Folha de S.Paulo (domingo, 2/3). Na seção ‘Quadrinhos’, adequadamente. À esquerda, dando título à seqüência, um texto vazado sobre fundo branco, na vertical, em itálico: ‘Dias Felizes da Minha Vida‘. Como fotos de uma revista do ramo, temos ali três retratos em cartoon de três mulheres despidas. São três personagens diferentes, provavelmente três lembranças, ficcionais ou reais. A primeira, lemos na legenda, tem o nome de Madalena Villanueva. Consta que posou para o cartunista em Segóvia, na Espanha, no ano de 1990. Veste um top verde, e se debruça sobre o gradil da varanda, fundido em art nouveau. Ao lado do seu cotovelo direito, um copo (uísque? um mate frio?). Talvez esteja fumando. Ela é vista pelas costas, como as duas que se seguem, e sua calcinha amarela, minúscula, mal cobre o que está em primeiríssimo plano.
Nata Mourão, a segunda modelo, está inteiramente nua, de óculos escuros e cabelos vermelhos. Lê um livro. Deitada de bruços na varanda, outra varanda, ela se acomoda sobre os cotovelos com a perna esquerda dobrada, formando um 4 com a direita, que se estende, retilínea. Tem formas generosas, como Madalena, mas parece, engraçado isso, ser um pouco mais jovem. Nata Mourão deixou-se desenhar em Copacabana, em 1989, tomando sol nos glúteos.
Rina Fusco, de Treviso, Itália, foi flagrada em 1992 dentro de um quarto. Calcinha vermelha, sentada na cama, ela ajeita os cabelos, como se os prendesse num rabo-de-cavalo. Ou quem sabe os soltasse? Não, ela os prende. Só pode ser. A blusa verde está acima do sutiã, como se já tivesse passado pelo pescoço e pelos braços e, de repente, fizesse uma parada estratégica. Rina parou ali o movimento de se vestir para amarrar um laço de fita nos cabelos castanhos. Depois, certamente, irá puxar a barra da blusa até a cintura. Aí, vai puxar a calça jeans, ainda arreadas pouco acima dos joelhos. Ela está de costas, todas estão de costas.
São três cenas análogas, muito próximas entre si e, ao mesmo tempo, longe, muito longe uma da outra. Segundo informa o artista, foram dias felizes de sua vida. Um corpo de mulher, passeando assim bestamente a um palmo do nariz de um mísero leitor de jornal, evoca a possibilidade de dias menos áridos, passados ou futuros – por que não? Para isso, para que respiremos sem pressa, deve servir essa imagem. Mulheres peladas nos jornais, desde que com parcimônia, atraem o leitor e, também, relaxam a leitura. Cumprem uma função semiótica um tanto contraditória, mas cumprem. Só não se pode exagerar na dose. Nunca.
Na França é que é bom
Não foram gratuitos os comentários cometidos há pouco acerca da natureza empertigada dos jornais, sua sisudez, seu cenho enérgico. Havia uma segunda intenção, é preciso confessar que havia, e a razão que a inspirou só agora se revela. A razão se chama Carla Bruni. Sim, Carla Bruni, ela mesma, a primeira dama da França (acabou se casando, afinal, na manhã do dia 2 de fevereiro, em cerimônia rápida com Nicolas Sarkozy).
Em janeiro, pelo menos dois jornais brasileiros, a Folha e O Globo, trouxeram fotos da cantora e ex-modelo assinadas por Mario Testino, para a edição de fevereiro da revistas espanhola DT. Não há formalismo na imprensa que tenha resistido à tempestade noticiosa – ou às notícias tempestuosas – sobre o affaire Carla-Sarkozy. Como um pouquinho de mulher pelada se admite na fórmula dos jornalões, dá-lhe Carla Bruni. No dizer de uma psicanalista paulistana, o affaire marca a mais desabrida conversão da república francesa ao espetáculo. Em parte, e põe parte nisso, a explosão da popularidade incômoda de Sarkozy tem a ver com sexo, com a imagem de uma mulher cuja presença irradia a pulsão da libido em arenas que não admitem a libido.
No Globo, Carla traja nada mais que um par de botas de couro escuro que lhe sobe até o início das coxas. Deitada sobre almofadas rijas, quadradas, dispostas de tal modo que formam um colchão de solteira, cruza os braços formando um W sobre os seios, num gesto quase místico. Os cabelos meticulosamente desgrenhados se esparramam ao redor do seu semblante e lhe dão uma aura de descompostura calculada.
Na Folha, Carla Bruni é a mesma, só que se moveu. Ela se moveu divinamente. Deitada meio de lado, deixa à mostra um dos seios, o esquerdo, tapando o direito com sua mãozinha de Botticelli, com os dedos apontando para o que pende, desnudo. A concha que ele desenha, em meia-lua, com o mamilo no centro de gravidade em perfeita geometria, conecta-se, na extrema direita, com a linha reta formada pela sombra do músculo peitoral sobre axila. Essa linha reta desce, abrupta e espessa. Na junção da curva do seio com a reta sobre a axila, vemos uma foice. No meio da foice, uma estrela solitária: o mamilo. Coisa mais estranha. E aquela mão de Botticelli apontando para a estrela.
Impossível não ver a mulher de Sarkozy como vemos as mulheres de Angeli. Carla Madalena Villanueva, Rina Fusco e Nata Mourão são obras do cartunista, Carla Bruni parece obra do presidente francês, uma obra que se entregou ao seu autor e depois se expõe aos olhos sequiosos da platéia mundial. Isso é que é ser um presidente popstar.
Sarkozy, feito um Exu de Champs-Elysées, fez a ponte entre os oficialismos em que se perde a política e os signos do que se pode chamar de desejo. Ele toca o objeto-mulher – não a mulher-objeto. O poder se reconcilia com o desejo – casa-se com ele, contrai núpcias com ele. O jornalismo não sabe bem o que fazer com isso, mas Carla Bruni oficializou, por um instante fugidio, com seus olhos cálidos e seu corpo arfante, a instituição da mulher pelada no noticiário sério.
Grãos de felicidade nos nossos dias infelizes. Grãos efêmeros. Em breve, Carla será engolida por um tailleur, raptada pelos cerimoniais, e esse lapso de nudez, aberto por distração ou por amor, terá se fechado para sempre. Mulheres peladas voltarão a ser apenas um deslize nas páginas dos jornalões. Nada mais que um deslize. Ou que um cartoon. Mas sempre estarão por ali, rondando as redações, feito fantasmas, prontas para irromper numa falha das colunas cheias de palavras. O leitor pára, olha, sonha sem saber, e depois esquece.
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Formado em direito e jornalismo pela Universidade de São Paulo, é doutor em Ciências da Comunicação pela mesma universidade e autor de alguns livros, entre eles Sobre Ética e Imprensa (Companhia das Letras, 2000); foi presidente da Radiobrás entre 2003 e 2007