Uma criatura começa a explorar um mundo desconhecido. Ela tem que executar certas tarefas predeterminadas, como coletar alimentos, encontrar e recolher objetos coloridos e competir com outras criaturas que também terão que fazer esses trabalhos e tentarão enganá-la, escondendo a comida e os objetos que possam lhe interessar.
Esse cenário foi criado virtualmente por um grupo de pesquisadores da Universidade estadual de Campinas (Unicamp). Uma vez lá dentro, as criaturas são autônomas, ou seja, nenhum humano as controla. Elas devem agir de acordo com o que conseguiram aprender ao longo dessa convivência. Esse mundo eletrônico foi projetado para estudar e aplicar um tipo de memória que ainda é pouco explorada pela ciência, a memória episódica.
‘É a memória de nossa história pessoal que se baseia naquilo que fizemos e nas coisas que testemunhamos’, explicou o coordenador da pesquisa, Ricardo Ribeiro Gudwin, professor da Faculdade de Engenharia Elétrica e Ciência de Computação da Unicamp, durante o seminário ‘Raciocínio Baseado em Modelo em Ciência e Tecnologia’, ocorrido de 17 a 19 de dezembro na universidade.
O evento foi realizado no âmbito do projeto temático ‘Logical Consequence and Combinations of Logics – Fundaments and Efficient Applications’, apoiado pela Fapesp e coordenado por Walter Carnielli, professor do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.
‘Consequências tardias’
Segundo Gudwin, para que seja bem-sucedida a criatura virtual conta com recursos que tentam simular os sistemas cognitivos de animais e de seres humanos. Como em muitas situações comuns na vida real, será preciso recolher informações a respeito de um ambiente desconhecido (fazer uma codificação), guardá-las de um modo eficiente (armazenamento) e depois acessá-las quando forem necessárias (recuperação).
Para desenvolver essa memória, o grupo elaborou regras que devem ser seguidas para todas as criaturas do ambiente virtual: evitar paredes e outros obstáculos, coletar alimentos, que podem ser ou não perecíveis, recolher determinados objetos do cenário e tentar prever o que os demais atores do jogo farão e tentar atrapalhá-los. ‘Essa última função está ligada à teoria da mente, que envolve tentar saber o que o outro pensa’, disse Gudwin.
A experiência também procura reproduzir algumas complexidades e técnicas usadas por humanos para relembrar episódios. De acordo com o pesquisador da Unicamp, não há espaço para absorver todas as informações com as quais se tem contato, por isso, na hora de registrar algo, é preciso utilizar filtros que eliminem dados menos importantes e lançar mão de estratégias para economizar memória, como manter em um arquivo único memórias muito parecidas.
As criaturas também tentam reproduzir habilidades mais difíceis, como conseguir estabelecer conexões entre causas e efeitos que estão bastante separados no tempo. São as chamadas ‘consequências tardias’, ou a associação de uma reação ocorrida no presente à ação que a causou, mas que se passou há dias, meses ou anos.
Oponentes ‘inteligentes’
Fazer o sistema aprender e desenvolver a própria memória em vez de carregar dados prontos pode abrir portas para novas aplicações em computação nas quais o volume de dados ainda é uma barreira. ‘Quando o ambiente é muito extenso, não há como colocar todos os dados nem fazer uma programação de trajetória, por isso é importante que o sistema descubra sozinho essas informações’, disse Gudwin.
Isso se aplica, por exemplo, a sistemas de monitoramento de tráfego. Em vez de dar entrada com os dados de toda uma malha viária, um sistema dotado de memória episódica poderia identificar pontos de gargalo e tomar decisões prioritárias a fim de manter o fluxo de veículos.
De acordo com Gudwin, a administração de empresas também ficaria mais eficiente com sistemas descobrindo sozinhos problemas que seriam difíceis de serem detectados em uma grande companhia. E os fãs de jogos eletrônicos poderiam contar com oponentes virtuais ‘inteligentes’, capazes de aprender sobre as fraquezas do rival e evoluir como se fossem de carne e osso.
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Repórter da Agência Fapesp