Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Não vigiar, mas partilhar identidade

As empresas tateiam sobre como interagir com seus clientes a partir dos novos canais de comunicação criados com a internet (chats, comunidades virtuais, blogs, fotoblogs etc.). Poucas experimentaram usá-los como espaços de relacionamento com grupos de consumidores. A saída mais comum tem sido monitorar imagem. Saber se o que se diz sobre sua marca é positivo ou negativo. Se negativo, responder às críticas de seus clientes e, numa estratégia mais ousada, até remodelar produtos ou mudar a forma de atendimento. Se positivo, ampliar a visibilidade da marca, utilizando esses canais como mais um espaço para transmitir informações de interesse da empresa. No entanto, usar as comunidades virtuais como espaços de interação com grupo de clientes é completamente diferente de simplesmente monitorar imagem.

A grande novidade da internet é que ela agrupou clientes e passou a reforçar características comuns. Permitiu que indivíduos, antes dispersos, se reunissem em torno de seus hábitos de consumo, leitura, diversão, esporte, alimentação e outras afinidades. Desse modo, eles passaram não apenas a reforçar e construir opiniões, como também a afirmar sua própria identidade. Incluída nas discussões que acontecem em chats, fóruns e sites de relacionamento, cabe à empresa escolher entre participar da construção coletiva de sua identidade ou permitir que ela se construa aleatoriamente.

O sociólogo Michel Maffesoli explica que identidade, na pós-modernidade, não é mais algo que se tem, mas efeitos de processos de identificação. Para ele, as pessoas não estão unidas por um fundamento, por um projeto racional comum, por uma causa ética que as conduzam para um único ideal. Mas sim, por uma razão estética, que se manifesta no sentir junto, no estar junto, na paixão partilhada. Se for verdade que existe na sociedade um aspecto econômico, político como causa da identidade; para Maffesoli existe outra razão da atração social, que é a simples coexistência, o que ele define por socialidade – nem sempre os homens estão juntos por uma finalidade, uma utilidade, mas quase sempre pelo simples gozo lúdico.

Uma estratégia com limitações

Então, voltando ao nosso problema, esses novos canais de comunicação são espaços para partilhar o prazer de estar junto, de experimentar os mesmos hábitos, de vivenciar o mesmo estilo de vida. São espaços de aproximação da empresa com seu cliente, não no sentido de se apropriar do conteúdo exposto, ou de policiar o uso que se faz de sua marca, mas sim, de partilhar esse universo. A internet facilita em parte o trabalho do marketing ao agrupar clientes em torno de algumas características comuns e encontrar caminhos eficientes para a comunicação. Além disso, as comunidades virtuais resolveram um problema latente na comunicação empresarial: possibilitam estabelecer uma relação mais próxima e calorosa com os consumidores. É possível falar diretamente com o cliente, ele tem um rosto, um nome, mora num lugar, tem amigos, participa de clubes e associações. Não é mais uma ficção dos instrumentos de pesquisa.

Antes do advento da internet, a comunicação da empresa se fazia com segmentos de consumidores anônimos. Qualquer estratégia de conhecimento da base de clientes ocorria por meio de uma intervenção artificial, que os recortava e agrupava em macro categorias de análise: idade, sexo, nível de escolaridade, renda etc. As comunidades virtuais criaram uma nova forma de segmentação, completamente espontânea, porém muito mais eficiente. Cabe à empresa, agora, nessa pulverização de grupos, guiar sua comunicação e gerenciar sua identidade de marca. Sem dúvida que tal tarefa não é nada fácil. No entanto, ela garante um relacionamento próximo e eficiente da empresa com o cliente, o que antes era um tiro no escuro. Não era possível afirmar que um boletim de investimentos, voltado para o segmento de alta renda, por exemplo, de fato fosse lido por clientes da alta renda e respondesse às necessidades de informação desse segmento.

A comunicação dos aspectos simbólicos da marca sempre aconteceu como um caminho de mão única. Primeiramente, elegem-se determinados atributos como sendo importantes para definir um diferencial de marca no mercado e, em seguida, divulga-os por meio de um composto de comunicação. No entanto, era sabido que tal estratégia tinha lá suas limitações, pois consumidores podem concordar ou não com os atributos simbólicos escolhidos para comunicar identidade de marca. Se não aceitarem, reagirão deixando de consumir o produto ou falando mal dele para conhecidos.

Identidade com o cliente

Tal reação do consumidor era difícil de ser controlada ou mesmo monitorada. Pesquisas de opinião podem demorar um ano ou mais para serem concluídas e até lá a opinião do consumidor já mudou. Quando for montada uma estratégia de mercado para expressar a opinião colhida na pesquisa, ela já terá mudado novamente. Há, portanto, um gap entre coletar opiniões e a estratégia de mercado. Gap que se torna cada vez maior quanto mais se intensificam os processos de comunicação e mais velozes se tornam as mudanças de conduta.

Por isso, hoje os novos canais de comunicação surgem como uma alternativa importante, não para monitorar marcas, mas sim, para participar de processos de construção de identidade. Por incrível que pareça, se não ocupar esses espaços, a empresa estará cada vez mais alijada do processo coletivo de construção de sua própria identidade. Pois, voltando ao conceito apresentado, identidade não é algo que se tem, mas sim, um resultado partilhado e negociado.

Mas quando falamos em estabelecer uma identidade com o cliente a partir desses canais, de forma alguma estamos nos referindo a ocupá-los num viés utilitário. Não se trata de participar para falar sobre investimentos em cultura, meio ambiente e esportes, por exemplo. Num raciocínio de que se minha empresa realiza tais investimentos e esses são valores para o consumidor, ele preferirá o meu produto ao do concorrente.

Espaços legítimos de experimentação

Na definição de identidade de Maffesoli, há um elemento emotivo na relação, não apenas um cálculo racional utilitário. Assim, identidade se constrói pelo partilhar os mesmos valores, estilos de vida, preferências e emoções. Não escolho consumir um produto de uma empresa porque ela investe em meio ambiente, que eu considero importante, mas sim, porque estamos juntos, porque ela está comigo no construir e viver a minha identidade.

Peter Berger explica (A revolução capitalista) que o capitalismo é um sistema econômico que retira a sua legitimação de forma indireta. Em si mesmo, ele não é legítimo, pois não tem potencial para obter aceitação e entusiasmo dos grupos sociais. Sua lógica racional econômica não motiva carisma. Em outras palavras, ele não causa identificação de modo espontâneo e direto. Tal qualidade, presente na organização capitalista, dificulta a relação de identidade da empresa com o consumidor. É preciso contorná-la, encontrar uma forma de legitimação indireta. No passado, a religião foi um caminho para adesão ao capitalismo, hoje há várias formas possíveis de identificação – por meio do esporte, de temas ecológicos, sociais, culturais etc.

Contudo, não se trata de uma estratégia maquiavélica para cooptar clientes e induzi-los ao consumo. É própria de um contexto em que a empresa assume funções que não estão claramente afins com seu negócio. A empresa cresceu tanto que as conseqüências de suas ações sobre o conjunto da sociedade são extensas e a levam a se envolver em problemas sociais, políticos e econômicos que não necessariamente estão incluídos no escopo de sua atividade. Por essa razão, sua identidade não pode mais ser ensimesmada, projetada por escritórios de marketing e publicidade, mas resultado partilhado com a sociedade, em que os fóruns criados na internet figuram como espaços legítimos de experimentação.

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Jornalista, assessora no Banco do Brasil e doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília, Brasília, DF