Fato jornalístico curioso ocorreu um dia antes da partida entre Brasil e Uruguai, realizada no Morumbi na quarta-feira (21/11). Uma repórter da Sportv, canal a cabo da Net dedicado aos esportes, procurou por telefone o correspondente no Rio de Janeiro de um semanário (Brecha) uruguaio, o próprio autor destas linhas.
A repórter, de quem preferimos omitir o nome para preservá-la, queria alguma declaração sobre a partida. Foi dito que este jornalista, embora acompanhasse e gostasse de futebol, pouco escrevia sobre o referido esporte das multidões. Houve ainda a recomendação no sentido de que a repórter procurasse alguém mais qualificado para analisar a seleção uruguaia.
O jornalista recomendou então que a leitura a ser feita sobre o futebol uruguaio poderia ser a de vincular a decadência deste esporte ao declínio econômico do país que disputaria a partida com o Brasil.
Diante do alerta, a repórter da Sportv achou o gancho ‘excelente’ para ser dito em uma entrevista, pois fugia da mesmice tradicional das análises futebolísticas, segundo ela própria admitiu. Mais uma vez o jornalista procurado argumentou que a repórter poderia encontrar alguém mais vinculado ao futebol para falar sobre o tema.
Economia e futebol
Depois de muita insistência e com o argumento que nada melhor do que um correspondente – mesmo não ligado ao futebol – de uma publicação uruguaia para falar sobre o assunto, o jornalista acabou acedendo ao pedido.
Finalmente, uma equipe mista da Sportv e TV Globo (um dos câmeras e dois da iluminação estavam com o logotipo da Globo nas camisas) foram à casa do jornalista que faria a declaração. O entrevistado aprofundou o que tinha dito por telefone, lembrando que quando o Uruguai era considerado a ‘Suíça da América Latina’, o país vizinho tinha sido bicampeão de futebol, inclusive provocando o trauma de 16 de julho de 1950 ao derrotar a seleção brasileira em pleno Maracanã.
Foi lembrado também que o atual presidente uruguaio, Tabaré Vazquez, além de médico oncologista, sempre esteve ligado ao futebol do seu país, tanto que, em 1989, quando dirigia o clube Progresso, de Montevidéu, a equipe de futebol tinha se sagrado campeão uruguaio. A entrevista foi encerrada com a declaração de que as políticas econômicas de corte neoliberal, executadas por sucessivos governos uruguaios, chegaram até a ampliar a decadência econômica que começara já nos anos 1950. Foi dito também que a decadência do futebol uruguaio, exemplificada por várias desclassificações para alguns Mundiais e mesmo desempenho pífio nas competições, causava trauma popular. Afinal, perguntou o entrevistado, já imaginaram se algum dia em um país de futebol como o Brasil uma seleção não se classificasse para o Mundial?
Silêncio constrangedor
O entrevistado observou ainda que como os problemas econômicos uruguaios fazem com que partes ponderáveis dos jovens se desloquem para outros países em busca de emprego – inclusive os fronteiriços, como o Brasil –, tal fato repercutia negativamente na própria renovação dos jogadores de futebol. E que os mais destacados acabavam tendo os passes comprados por clubes europeus ou mesmo latino-americanos. Isto é, mais uma vez o fator econômico vinha à tona.
O repórter que veio fazer a entrevista abriu a matéria assinalando que ‘para tentar entender o futebol uruguaio é necessário sair das quatro linhas’.
Aparentemente estava tudo preparado para ir ao ar em algum momento da programação da Sportv ou da TV Globo. Só que a transmissão da entrevista não aconteceu, provavelmente vetada. Este fato pôde ser constatado quando o próprio entrevistado, no dia do jogo Brasil x Uruguai, telefonou para a Sportv para perguntar quando a entrevista iria ao ar ou se ela por acaso já tinha sido divulgada. A repórter pediu um minuto para se informar. Em seguida, alguém na redação, provavelmente longe do telefone, falou em voz alta: ‘Ainda não foi liberada.’ A repórter retornou ao telefone para dizer que a entrevista seria divulgada as 22h30. ‘Mas na hora do jogo ou no intervalo?’, indagou o jornalista entrevistado. Fez-se um silêncio constrangedor.
Os ‘superiores hierárquicos’
Este fato curioso é uma demonstração clara de que na mídia eletrônica até o futebol passa por um ‘crivo superior’ baseado no pensamento único. Os repórteres podem até eventualmente estar bem-intencionados à procura de sair da mesmice. Só que… antes de ir ao ar é preciso ‘o sinal verde dos superiores hierárquicos’.
Se isto acontece numa editoria de Esporte e com o futebol, o leitor pode imaginar a que estarão sujeitas as editorias políticas, econômicas e internacionais?
Não é à toa, por exemplo, que certos temas na mídia são controlados e só podem ir ao ar depois de uma checagem pelos ‘superiores hierárquicos’ (leia-se prepostos patronais), que rezam pelas cartilhas neoliberais e pelo deus-mercado. O resultado desta prática é igual à mesmice, pois o contraditório não é permitido.
Por estas e muitas outras, Ignacio Ramonet, o diretor Monde diplomatique, tem desenvolvido a tese segundo a qual a mídia deixou de ser quarto poder, como aconteceu na França com o caso Dreyfus, para se tornar ‘aparelho ideológico da globalização’. Neste contexto, até as editorias de Esporte da mídia conservadora, impressa e eletrônica, precisam passar pelo crivo.
É por aí que se explica o vexame da Sportv, que provavelmente já deve ter acontecido com outros entrevistados. Se for aprofundada a questão do veto ou ‘consulta aos superiores hierárquicos’, além da prioridade editorial pela cartilha neoliberal, há casos incríveis em revistas semanais, onde não raramente entrevistados ficam indignados com determinadas matérias porque tudo que disseram não foi divulgado, muitas vezes saindo até o que não foi dito.
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Jornalista, Rio de Janeiro, RJ