Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Noticiário de telejornal derruba avião

‘Barriga, em jornalismo, quer dizer publicar um fato falso, mas sem intenção de enganar o leitor. Uma mancada, informação errada, uma autotraição. Geralmente, o erro cai no ridículo, fica circunscrito aos limites do vexame, mas há casos nos quais a barriga assume dimensões sérias’ (editorial da revista Caros Amigos, edição de novembro de 2004).

Vinte de maio de 2008. Esse dia, certamente, entrará para a história da imprensa nativa como a data em que a GloboNews produziu a mais ‘volumosa barriga’ do jornalismo brasileiro. Uma barriga pedagógica, pois modelada por um ‘q’ de qualidade desprovido de qualquer compromisso com a apuração do que é divulgado. Um relato de como se produz o que o telespectador ‘deve saber’. Um instantâneo de como a ética corporativa trabalha com o conceito de responsabilidade social.

Por volta de 17h, a emissora anunciava que ‘interrompemos a transmissão da CPI dos Cartões Corporativos para mostrarmos imagens ao vivo de São Paulo. Acaba de chegar a informação de que um avião da empresa aérea Pantanal caiu em cima de um prédio comercial na zona sul de São Paulo’. Ao apontar a Infraero como fonte, foi desmentida de imediato. É tênue a fronteira que separa o fascínio espetacular do lodaçal patético do testemunho desqualificado.

Incentivo à preguiça

Um incêndio em um depósito de colchões, em Campo Belo, bairro de classe média de São Paulo, foi apresentado, durante cinco minutos, como um desastre aéreo. Mostrando imagens de fumaça, a emissora informava que uma aeronave da empresa Pantanal havia caído próximo a Congonhas. Foi o suficiente para que dois portais (IG e Terra), além de emissoras de rádio, no curso do mimetismo midiático, reproduzissem, sem citar fontes, a falsa notícia.

A que atribuir tal açodamento? Ao processo taylorista instalado na dinâmica do campo jornalístico? É possível. Isso é compatível com o modus operandi de uma indústria que concebe a informação como bem simbólico mercantil.

Como checar as informações e publicá-las dentro de um padrão de bom senso e confiabilidade, quando o critério de eficiência é dado pela velocidade da divulgação? Quando o objetivo é furar o concorrente, dando a notícia em primeira mão, direto, ao vivo, instantaneamente? Continuar o bombardeio informativo, em tempo contínuo, dispensa até o profissional qualificado: basta uma testemunha que produza o ‘efeito do real’. Alguém que já não controle mais o produto final da produção simbólica, visto que dela participa como mero legitimador.

Como destaca Ignacio Ramonet, ‘o jornalista está literalmente asfixiado, ele desaba sob uma avalanche de dados, de relatórios, de dossiês – mais ou menos interessantes – que o mobilizam, o ocupam, saturam seu tempo e, tal como chamarizes, o distraem do essencial. Por cúmulo, isto incentiva ainda sua preguiça, pois não precisa mais buscar a informação. Ela chega por si mesma a ele.’

‘Comunicação grave e triste’

Por certo, a barriga dos repórteres e editores da telinha deve também ser analisada nas próprias condições materiais de produção da informação em ‘tempo real’. Mas será que isso nos exime de examinar o caráter ideológico e político inerente à atividade jornalística? No caso brasileiro, não cabe falar em um script que está no substrato das coberturas?

Nossa grande imprensa pode ser considerada um serviço público que, de forma isenta, faz a mediação dos ‘fatos que falam por si’, cabendo ao público o livre discernimento? Ou prevalece a orientação editorial de que há que se preservar a estabilidade democrática salvo o surgimento de ‘fatos novos e comprometedores’?

Não estaria aí, na perfeita sintonia com o pensamento de quem os emprega, o descuido que levou uma aeronave a colidir com colchões? Interromper uma construção midiática que se mostra sem fôlego (‘dossiê’) para reativar outra (‘caos aéreo’) nada mais é que estabelecer a agenda que interdita o real debate político. Algo que cai do céu para uma oposição que vive seu vazio programático de forma melancólica.

Terá sido por acaso que, alertado por um assessor, o deputado Antônio Carlos Pannunzio (PSDB-SP) interrompeu a sessão da CPI dos Cartões para, como destaca José Dirceu em seu blog, fazer uma ‘comunicação bastante grave e muito triste’ aos seus pares e lamentar o ‘caos no tráfego aéreo’? Ou será que o parlamentar tucano, em boa hora, alugou a barriga global?

Arranjos e negócios

Em comunicado sobre o episódio, a Central Globo de Comunicação afirmou que:

‘A respeito do incêndio ocorrido hoje à tarde em São Paulo, a GloboNews, como um canal de noticias 24 horas, pôs no ar imagens do fogo assim que as captou. Como é normal em canais de notícias, apurou as informações simultaneamente à transmissão das imagens. A primeira informação sobre a causa do incêndio recebida pela GloboNews foi a de que um avião teria se chocado com um prédio na região do Campo Belo, Zona Sul de São Paulo.

Naquele momento, bombeiros e Infraero ainda não tinham informação sobre o ocorrido. As equipes da própria GloboNews constataram que não havia ocorrido queda de avião e desde então esclareceu que se tratava de um incêndio em um prédio comercial. Poucos minutos depois o Corpo de Bombeiros confirmou tratar-se de um incêndio em uma loja de colchões.’

O portal Imprensa registra que, mesmo após o alto comando das Organizações esclarecer que ‘embora a GloboNews tenha publicado esta primeira informação, a TV Globo não fez qualquer menção ao possível acidente aéreo’, o engano ainda permanecia em vídeo no site do canal por assinatura, ainda que a informação já estivesse desmentida. Minutos depois, ele foi retirado’.

Diante do naufrágio, a família Marinho fez o que achou mais acertado. Tirou o ‘q’ de qualidade da barriga e seguiu solene para a próxima ‘exploração de hipótese’. É assim que o monopólio compreende a democracia. Como uma possibilidade de pequenos arranjos e grandes negócios.

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P.S. – Não foi só um avião imaginário que a barriga da GloboNews derrubou. Cai por terra a tese defendida por jornalistas, em programa recente do Observatório na TV, de que, ao contrário da internet, o noticiário da grande imprensa tem maior confiabilidade por só publicar uma notícia após checar a informação. O ‘tempo real’ já abrange todo o campo jornalístico.

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Professor titular de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro, RJ