A interatividade, a realidade virtual e a experiência narrativa adquirida nos últimos anos pelos desenvolvedores de jogos, além das ferramentas cada vez mais simples para a construção de animações gráficas avançadas, aproximam a cada dia os infográficos do jornalismo às sensações proporcionadas pelo videogame.
Experiências de apropriação narrativa das mais diversas linguagens pelo jornalismo não são novidade. Assim foi quando o jornalismo utilizou a narrativa desenvolvida pelo cinema para fazer documentários. Ou quando, há algumas décadas, o jornalismo utilizou a literatura e criou um gênero híbrido, capaz de produzir um texto sobre fatos reais utilizando ferramentas narrativas típicas da ficção – aquilo que, anos depois, ficaria conhecido como new journalism.
Houve ainda, mais recentemente, em 1992, um Pulitzer especial para uma biografia escrita e desenhada: a história em quadrinhos Maus, de Art Spiegelman, é certamente um dos relatos jornalísticos mais objetivos, realistas e comoventes sobre o holocausto. Joe Sacco, em 2001, ganhou um Prêmio Eisner com quadrinhos-reportagem sobre a guerra da Bósnia.
Uma narrativa eletrônica
A internet trouxe novas possibilidades para a narrativa jornalística até então impensáveis: a fusão de vídeo, áudio, texto e gráficos estáticos e animados. Não se trata da somatória dessas linguagens, antigas e super-exploradas, mas de uma nova narrativa que se utiliza de todas as outras, acrescida da participação interativa do leitor. Leitor esse que não pode mais ser chamado apenas de leitor ou telespectador porque é participante, capaz inclusive de definir a narrativa que mais lhe agrade. Os programadores o chamam de usuário.
A internet e, muito em breve, a TV digital, forçam o desenvolvimento dessa nova narrativa. Nem tão nova, na verdade: o surgimento dos jogos eletrônicos – os chamados videogames – tem mais de 20 anos. É uma narrativa que evoluiu rapidamente, exatamente ao explorar a fusão das linguagens conhecidas e a intensa participação do usuário. Com o avanço da tecnologia, hoje, é o que há de mais novo em narrativas de hipermídia.
Infografia avançada em hipermídia
À primeira vista, assim como deve ter sido aos olhos dos primeiros leitores do novo jornalismo, pode soar estranho o uso de uma narrativa típica do entretenimento para fins jornalísticos. Mas sites como o espanhol El País já exploraram esse território. Lá, por exemplo, um infográfico sobre o novo código de trânsito da Espanha faz o usuário descobrir as mudanças na lei ao guiar um carro pelas ruas da cidade. Ou conhecer os dispositivos domésticos mais avançados do mundo ao caminhar por uma casa do futuro.
Imagine agora uma versão brasileira de infografia onde o usuário faria uma visita a um Congresso Nacional virtual, para acompanhar como uma lei é feita. Caminhar pelos salões, presenciar os lobbies que existem para modificá-la, assistir à votação no plenário. Além disso, por que não?, conversar com os parlamentares. Ou com os lobistas. As mensagens dos usuários seriam respondidas, mais tarde – ou em tempo real – pelos próprios interlocutores reais. Pode-se considerar que se trata de uma infografia avançada em hipermídia. Com a tecnologia existente, já é possível. Muito mais é possível, aliás.
Ressignificação do entretenimento
Qual é o limite entre o entretenimento e o jornalismo? Existe algum limite ou o jornalismo pode ser entretenimento completo?
Vale resgatar, aqui, um trecho do texto ‘A TV Pública não faz, não deveria dizer que faz e, pensando bem, deveria declarar abertamente que não faz entretenimento‘, de Eugênio Bucci [I Fórum Nacional de TV’s Públicas: Diagnóstico do Campo Público de Televisão – Brasília: Ministério da Cultura, 2006. pág. 11]:
O significado do termo ‘entretenimento’ é chave para que essa distinção [entre TV pública e TV comercial] se faça com a profundidade necessária. Ele não é um substantivo desprovido de carga ideológica, ainda que pareça uma palavra neutra. Ele surgiu tardiamente. O dicionário etimológico de Antenor Nascentes, de 1932, diz que a palavra vem do espanhol, entretenimiento, cujos primeiros registros datam do século XVI. O verbo entreter, originado do latim, intertenere (‘inter’ quer dizer ‘entre’; ‘tenere’ quer dizer ‘ter’), significa deter, distrair, enganar. No senso comum, ‘entretenimento’ é entendido, até hoje, como aquilo que ocorre no tempo do lazer – que não pertence ao tempo do trabalho –, nas horas vagas, no passatempo, no intervalo entre duas atividades ditas sérias. Luiz Gonzaga Godoi Trigo, em Entretenimento: uma crítica aberta (São Paulo: Senac, 2003), conta que, antes, os significados de divertimento e de passatempo atrelavam-se ao conceito de pecado, ou a um tipo de atividade que era permitida apenas à elite. A partir do século XIX, a palavra entretenimento ganhou um vínculo com o consumo popular – de forma pejorativa, foi associado a algo de importância menor e até desprezível – em oposição ao erudito, à arte elevada, à cultura da elite.
A isso, devo acrescentar agora o que julgo ser a significação atual do termo, atual e mais pesada, mais fixa, que não tem sido levada em conta. A partir da segunda metade do século XX, ele deixou de designar o, digamos assim, estado mental produzido no sujeito que se ocupa da desocupação, deixou de se referir a um atributo de atrações especializadas em distrair a audiência, e virou o nome de uma indústria diferenciada. Mais do que uma indústria, um negócio global. Com o advento dos meios de comunicação de massa, a palavra, sempre que enunciada, traz consigo esse sentido material: o de negócio. Assim, como a própria palavra indústria – que antes nomeava apenas uma habilidade humana – mudou inteiramente de sentido com a revolução industrial, a palavra entretenimento foi revolvida por um processo de ressignificação definitivo a partir da indústria do entretenimento. Ao afirmar que faz entretenimento, ainda que marginalmente, uma emissora de televisão se declara pertencente a essa indústria e a esse negócio. Quando uma TV pública diz que faz entretenimento, afirma que pertence a um campo – industrial e econômico – ao qual não tem vocação nem destinação de pertencer.
Não se trata de um santo nome, mas essa palavra jamais poderá ser invocada em vão.
O ambiente virtual Second Life
Voltando à questão, portanto: e quando o jornalismo usa técnicas do entretenimento? O entretenimento, em seu estado ‘puro’, é, de fato, potencialmente alienante. Mas a técnica desenvolvida pela indústria do entretenimento não poderia ser utilizada para o ensino ou para o jornalismo?
Alguns casos do mundo real podem dar a dimensão dessas questões. O uso da narrativa do teatro nas escolas é antigo. Muitos dos cursinhos para vestibular atuais têm professores, às vezes quase circenses, que ensinam de maneira totalmente não-linear, ao estilo dos videoclipes. Com a evolução da tecnologia e a recente popularização dos computadores (por mais restrita que seja ainda), o ensino a partir de jogos, da internet ou de CDs com conteúdos educativos, já é comum. Mais do que isso, a educação em hipertexto, para Kevin Robins e Frank Webster ‘é o totem da revolução pós-industrial da educação’ [Times of Technoculture – Londres: Routledge, 1999. pág. 187].
Um vislumbre do que essa revolução pode significar já é possível com o ambiente virtual na internet chamado Second Life. Empresas como a IBM já decidiram usá-lo para treinamento de consultores ao redor do mundo, reunindo-os virtualmente em uma sala de eventos online para cursos dos mais diversos.
Um novo espaço
Aos que não conhecem, trata-se de um ambiente virtual similar ao famoso jogo ‘The Sims’, onde cada pessoa escolhe um personagem e interage, em tempo real, com os personagens de outros participantes. A novidade está na riqueza de detalhes e nas possibilidades criativas abertas pelo novo ambiente.
O Second Life tem, por exemplo, um diretório do PSDB. Multinacionais como fabricantes de carros, ou de jóias, ou de roupas, têm escritórios de vendas montados nesse ambiente. A maioria das coisas nesse mundo virtual pode ser comprada por uma moeda virtual chamada linden dollar – que pode ser comprada por dinheiro real, através de cartão de crédito. Há quem ganhe dinheiro real vendendo produtos virtuais como roupas, armas ou casas e apartamentos.
A Reuters e o G1, da Globo, montaram nesse ambiente redações virtuais, com repórteres virtuais que fazem reportagens reais sobre a realidade virtual. Há um jornal – o Second Life Herald – sobre tudo o que ocorre lá. Trata-se do jornalismo especializado em Second Life.
Mas o dia-a-dia desse ambiente importa menos do que as possibilidades abertas por ele. Um espaço como o Second Life poderia, por exemplo, ser utilizado para uma infografia jornalística?
Jornalismo não é um formato
Algumas exposições experimentais na Europa sobre história, por exemplo, entregam um fone de ouvido com um GPS embutido ao espectador. A exposição é feita em uma rua, ou num quarteirão histórico. Conforme a pessoa caminha pelas vielas, o GPS detecta onde ela está e o conteúdo do fone de ouvido é acionado, fazendo-a ouvir a história daquilo que ela está vendo.
E se o jornalismo repetisse essa experiência num ambiente virtual? Como seriam as reportagens sobre uma batalha histórica se o leitor (usuário?) pudesse estar dentro do cenário, movimentando-se, observando diversos ângulos de um mesmo fato? Aí a questão: há mistura possível entre jornalismo e entretenimento? As narrativas e técnicas do entretenimento podem ser utilizadas livremente pelo jornalismo?
O passado indica que sim. O jornalismo, se visto como uma série de procedimentos éticos para a apuração de um fato, não obedece a nenhuma regra narrativa e pode se utilizar de qualquer uma existente. Basicamente, o jornalismo não é um formato, mas um conteúdo – e a maneira como esse conteúdo foi elaborado. Sendo assim, a experiência do jornalismo videogame, se não surgiu ainda em alguma parte do mundo (real ou virtual), não está muito longe.
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Editor Multimídia da Agência Brasil, Brasília, DF