Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O alvo eterno

Chega a ser contraditória a posição dos meios de comunicação quando o assunto é o protesto social. Na maioria das vezes, os portadores de canetas e microfones pedem que a sociedade reclame de forma oficial, sem grandes manifestações. Porém, em alguns poucos casos, como o do DEMsalão em Brasília – onde há imagens quase comprobatórias –, mesmo a ocupação da Câmara Distrital foi aceita com tranqüilidade, algo até justificável.

Dentro dessa relação entre movimentos sociais e mídia, o maior movimento da América Latina, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), nunca teve vida fácil. Aqui em Alagoas, por exemplo, o governo do estado, do PSDB, chegou a ser cobrado pelo apoio às feiras camponesas, realizadas com frequência ao longo do ano, como forma de mostrar à sociedade o que vem sendo produzido com a reforma agrária.

A maior revista de circulação nacional, a revista Veja (grupo Abril), sempre entendeu o movimento como algo partidário, cujos interesses pessoais prevaleciam, e voltado à baderna. Numa rápida pesquisa realizada através do site da revista foram encontradas 31.144 citações da sigla MST ao longo dos mais de 40 anos da publicação. Desde matérias sobre o movimento a reportagens sobre religiões neopentecostais ou sobre ‘fazendeiros fantasmas’. Como matéria principal, foram apenas cinco capas.

Mas não me lembro de nada parecido com o que foi colocado na edição de nº 2134, do dia 14 de outubro deste ano.

Uma grande descoberta

Apesar de a matéria de capa trazer o lindo rosto de um bebê branco de olhos azuis – tão comum no Brasil, não é mesmo? –, o editorial da revista foi sobre o MST após a ação nas fazendas de laranja da Cutrale. Na capa, no alto da página, estava um homem com chapéu e lenço vermelho no rosto, no melhor estilo bandido de Velho Oeste dos filmes estadunidenses. O título era: ‘MST: Até quando os crimes da quadrilha [sic] ficarão impunes?’

A ‘Carta ao Leitor’ – ‘MST: até quando?’ – não chega sequer a ser pueril quando logo em seu início divide os brasileiros em apenas dois tipos: os bons, ‘que vivem sob o império da lei e que têm de responder à Justiça caso cometam crimes’, e os maus, ‘integrantes do bando armado conhecido como Movimento dos Sem-Terra’ (p. 12).

Até parece que o Brasil é um exemplo de justiça, com todos os tipos de criminosos, ‘com exceção do MST’, indo para a cadeia.

Realmente, estamos num país onde nunca existiram crimes de colarinho branco; em que nunca vimos um presidente do Senado cometendo vários crimes e sequer ser afastado da presidência, quiçá julgado; em que deputados estaduais desviam quase R$ 300 milhões de reais de um dos estados mais pobres do país e dois anos depois todos foram julgados; em que roubam dinheiro para merenda de crianças e os presos não reclamam das algemas e anos depois o processo não estacionou.

Senhoras e senhores, a Veja fez uma grande descoberta, algo que necessitaria milhões de anos para que antropólogos e sociólogos concluíssem: o Brasil só está tão mal, com deficiência na saúde, educação, segurança, habitação… por causa do MST. Pois é, ‘para o Brasil, ele [o prejuízo] está sendo incalculável’ (p. 12).

Títulos raivosos

Só os integrantes do movimento mataram outras pessoas ao longo de tantos anos de existência. Nunca nenhum trabalhador rural morreu, levou tiros ou sofreu ameaças de jagunços de latifundiários. Estes bons senhores [sic] que garantem os milhões de reais para equilibrar a nossa balança financeira, que nunca atingiram o meio ambiente de forma danosa, nem mesmo com as suas pobres vaquinhas em seus míseros pastos.

Confesso que não conheço a liderança do MST e por isso não posso afirmar como é a relação de comando existente, mas afirmações como ‘sua arma [do MST] é o terror dos fazendeiros’ (p. 12) é inverter a relação do sofredor com quem lhe imprime o sofrimento.

Mas o que esperar de uma revista de posicionamento tão à direita, que põe sua opinião de forma tão clara que o seu editorial admite o que vimos em nossa pesquisa rápida no site: ‘O MST, como já mostrou Veja em diversas reportagens, é comandado por agitadores profissionais’ (grifos nossos)? O que esperar?

Observe os títulos sobre o movimento encontrados em outras oito edições da revista:

** ‘A esquerda com raiva’ – 03/06/98

** ‘Impunidade: o MST agora mata e quer proteção do Estado’ – 04/03/2000

** ‘A tática da baderna’ – 10/05/2000

** ‘MST: o futuro do Movimento’ – 20/09/2000

** ‘A esquerda delirante’ – 18/06/2003

** ‘Os PTBulls’ – 14/06/2006

** ‘MST: 25 anos de crime e impunidade’ – 28/01/09

** ‘Abrimos o cofre do MST’ – 02/09/09

‘A explosão da barbárie’

O único título que não daria para pensar de forma negativa, ao menos de início, é sobre o ‘Futuro do movimento’ e, mesmo assim, a matéria traz uma crítica à forma de reforma agrária pretendida pelo MST e realizada aqui no Brasil. E olhe que ainda estávamos sob um governo declaradamente neoliberal.

Dentre as 31.144 palavras do movimento encontradas – até o dia 18 de dezembro –, os dez textos que apareceram na tela são de um de seus colunistas, Reinaldo Azevedo, que, pelo jeito, é o responsável em achincalhar com o MST, com matérias com títulos como ‘Vandalismo no campo: o MST é a nossa Al Qaeda’ (08/10) ou ‘O MST e o terrorismo oficializado’ (05/11).

Assim como já fez em fotos de Hugo Chávez e Che Guevara, de forma a depreciá-los de alguma forma, as capas das matérias não demonstram a tão propalada imparcialidade.

O mais novo estopim do ataque midiático sobre o Movimento dos Sem-Terra foi a destruição de 10 mil pés de laranja e de 28 tratores, segundo a revista, da Sucocítrico Cutrale, a maior produtora de sucos de laranja do Brasil.

A grande imprensa aproveitou o fato de ter ocorrido sob uma região ‘produtiva’ para falar mal do movimento através deste fato isolado. Na matéria ‘A Explosão da Barbárie’, a revista do Grupo Abril aproveitou para contar histórias de perseguição a trabalhadores a ponto de, prestem bastante atenção, falar sobre a exploração do trabalhador em termos marxistas:

‘Ali, como em diversos assentamentos espalhados Brasil afora, o MST é o patrão; os camponeses, seu proletariado. Tal qual uma boa empresa capitalista, a organização sabe captar e multiplicar o seu dinheiro’ (p. 65).

Imagens ‘chocantes’

Os políticos se alvoroçaram em torno do assunto. Os da bancada ruralista reativaram a ideia de uma Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o MST, enquanto o governo se calava.

A liderança do movimento, a princípio, não conhecia os motivos da destruição das máquinas, pois o movimento sempre fora pacífico – daí a dúvida até se foi o MST autor da ação –, porém nunca deixou de afirmar que a região foi grilada pela Cutrale e estaria sendo contestada pela justiça e pelo Incra, que havia perdido a causa em segunda instância.

Um abaixo-assinado contra a criminalização do MST, assinado por estudiosos como Eduardo Galeano, Emir Sader, István Mészaros, Michael Lowy, Ricardo Antunes, Roberto Leher e Vito Gianotti, traria à tona o objetivo de tantos ataques:

‘Impedir a revisão dos índices de produtividade agrícola – cuja versão em vigor tem como base o censo agropecuário de 1975 – e viabilizar uma CPI sobre o MST. Com tal postura, o foco do debate agrário desloca-se dos responsáveis pela desigualdade e concentração para criminalizar os que lutam pelo direito do povo. A revisão dos índices evidenciaria que, apesar de todo o avanço técnico, boa parte das grandes propriedades não é tão produtiva quanto seus donos alegam e estaria, assim, disponível para a reforma agrária.’

O texto ainda traz o fato de que não há imagens de que foram os sem-terra que cometeram tal atitude e, o principal, que ‘na ótica dos setores dominantes, pés de laranja arrancados em protesto representam uma imagem mais chocante do que as famílias que vivem em acampamentos precários desejando produzir alimentos’.

Educação, saúde e segurança

Voltando à edição da revista, ela traz ainda o resultado de uma pesquisa encomendada pela Confederação Nacional da Agricultura ao Ibope – o mesmo instituto envolto a problemas sobre audiência televisiva – em nove assentamentos para ‘provar’ o quão retrógrado é o modelo de reforma agrária do governo Lula – crítica feita desde FHC. Um detalhe importante que faltou citar é que os alimentos que chegam à mesa do brasileiro, em sua maioria, são de origem da agricultura familiar – afinal, a produção das grandes empresas, como a da Cutrale, é para exportação.

E tanto há acampamentos produtivos que tivemos edições em Maceió de feiras camponesas do MST e da Comissão Pastoral da Terra, esta última por três vezes este ano, com produtos orgânicos, mais saudáveis para o consumo humano.

Porém, por incrível que pareça, chegamos a concordar com algo da matéria assinada por Sofia Krause, Diego Escorteguy e Raquel Salgado: ‘`A reforma agrária não é apenas a redistribuição de terras improdutivas, mas um meio de fazer com que os lavradores consigam produzir nos assentamentos´, explica o professor Gilberto de Oliveira’ (p. 68).

Não se pode ajudar apenas ao dar terras improdutivas, espalhados por milhões de hectares no Brasil, mas permitir que educação, saúde e segurança cheguem aos assentamentos – assim como deveriam chegar a todos os lugares, seja no campo ou na cidade. Os trabalhadores rurais precisam também de condições de trabalho, de sementes a orientação de plantio. Quanto o governo federal investe em multinacionais?

‘Esperem nosso aval’

Sobre o movimento, se analisarmos as ações antes do governo Lula e as durante o governo, é verdade que elas diminuíram em quantidade, só que isso foi reflexo das esperanças depositadas num governo que se esperava ser de esquerda. Mas o que se vê é que ajuda pouco a quem precisa e muito a quem já tem. O MST se engessou por um tempo, mas aos poucos volta às suas reclamações por justiça social no campo e uma distribuição de terras.

Quanto à mídia empresarial, ainda veremos muitas notícias negativas ao longo dos anos. Como disse um amigo meu, mesmo que o MST tivesse expropriado as laranjas para distribuir aos pobres não seria publicada nenhuma linha parabenizando a ação.

O aviso midiático parece ser: ‘Protestem, mas não a ponto de importunarem nossos interesses. Por isso, esperem nosso aval.’

******

Estudante de Comunicação Social (Jornalismo), Maceió, AL