Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O ataque do “vírus da irrelevância”

Um amigo meu, muito culto, tem um filho muito “conectado” na internet. E o menino disse a ele: “Pai, você sabe tudo que já aconteceu, mas não sabe nada do que está acontecendo.” O pai, como todos nós, embatucou. A mutação cultural dos últimos anos foi tão forte, a turbulência no mundo pós-industrial dissolveu tantas certezas, que caímos num vácuo de rotas.

Não só no Brasil, mas no mundo inteiro, artistas e pensadores vivem perplexos – não sabem o que filmar, escrever, formular. Em geral, recorrem às atitudes mais comuns nas turbulências: desqualificar os fatos novos e reinventar um “absoluto” qualquer. Sinto em mim mesmo como é difícil criar sem esperança ou finalidade. Como era gostoso nosso modernismo, os cinemas novos, os movimentos literários, as cozinhas ideológicas. Os criadores se sentiam demiurgos falando para muitos. Agora, na falta das “grandes narrativas” do passado, estamos a idealizar irrelevâncias, como se ali estivessem pistas para novas “verdades” a desvelar – a aura deslizou da obra para o próprio autor.

Hoje, as palavras que eram nosso muro de arrimo foram esvaziadas de sentido e ficamos à deriva. Por exemplo, “futuro”. Que quer dizer? Antes, era visto como um lugar a que chegaríamos, um lugar no espaço-tempo, solucionado, harmônico, que nos redimiria da angústia da falta de “Sentido”. Agora, no lugar de “futuro”, temos um presente incessante, sem ponto de chegada. Pela influência insopitável do avanço tecnológico da informação, turbinado pelo mercado global, foram se afastando do grande público as criações artísticas e literárias, as ideias filosóficas, os valores. Em suma, toda aquela dimensão espiritual chamada antigamente de cultura que, ainda que confinada nas elites, transbordava sobre o conjunto da sociedade e nela influía, dando um sentido à vida e uma razão de ser para a existência. Mais ou menos isso Vargas Llosa escreveu outro dia no El País, num ensaio chamado “A Civilização do Espetáculo”.

Idade Média em detalhes

A verdade é que passamos da ilusão para o desencanto.

Temos hoje uma “horrenda liberdade” sem fins, porque (vamos combinar) os criadores querem mesmo é ser eternos, inesquecíveis, mesmo os mais radicais “instaladores” contemporâneos.

Nunca tivemos tantos criadores, tanta produção cultural enchendo nossos olhos e ouvidos com uma euforia medíocre, mas autêntica. Há uma grande vitalidade neste cafajestismo poético, enchendo a web de grafites delirantes. Não sei em que isso vai dar, mas o tal “futuro” chegou; grosso, mas chegou. Talvez este excesso de “irrelevâncias” esteja produzindo um acervo de conceitos “relevantes”, ainda despercebidos. Podemos nos dedicar ao micro, ao parcial, podemos nos arriscar ao erro com mais alegria; mas, isso não pode justificar um desprezo pela excelência. E o pior é que as tentativas de “grande arte” são vistas com desconfiança, como atitudes conservadoras, diante da cachoeira de produções que navegam no ar. Isso me lembra o tempo em que achávamos que o “fluxo da consciência”, the stream of consciousness ou até o discurso psicótico encerravam uma sabedoria insuspeitada. Será que houve a morte da “importância”? Ou ela seria justamente esta explosão de conteúdos e autores? O “importante” seria agora o quantitativo? Não sei; mas, se tudo é “importante”, nada o é. A importância de uma obra reside no grau de decifração da vida de seu tempo e para onde ela aponta, mesmo no túnel sem luz.

Se olharmos as obras-primas de, digamos, Jan Van Eyck, o gênio holandês, vemos ali todo o espírito da Idade Média, revelada nos detalhes mais banais, mesmo nas encomendas de príncipes ou cardeais.

Beethoven e o game

Escrevo estas coisas porque meu artigo de hoje é a propósito de um “importante” ensaio de Alcyr Pécora de 23 de abril, no Prosa e Verso de O Globo, sobre a crise de nossa literatura. Alcyr acha que fomos atacados por “um vírus de irrelevância”.

Ele escreveu:

“É como se o presente se absolutizasse e não mais admitisse um legado cultural como patamar exigente de rigor para sua produção(…) é como se alguma coisa se introduzisse na cultura e a tornasse inofensiva, doméstica. (…) A ação já se apresenta como narrativa, como ocorre nos reality shows, em que as pessoas, antes de agir, representam ou narram a ação que lhes cabe, como se todo mundo fosse interessante o bastante para ser visto/lido (…) Não basta haver conhecimento; tem de se produzir o que não é e o que não há (…) Na arte, não há nenhum valor simbólico que substitua o objeto (…) não há atitude ou opção ideológica que permita saltar sobre os mecanismos da composição (…) Perdida a noção de herança cultural, perde-se a de crítica, de autocrítica, e naturalmente a de criação (…) Escrever literatura é um gesto simbólico que traz uma exigência: a de ser de qualidade (…) A recusa de muitos escritores de sequer considerar o impasse atual tem qualquer coisa de cegueira deliberada (…) Atitude resolve problemas do roqueiro, mas não resolve a questão da literatura.”

No entanto, as questões levantadas pelo professor não tiveram repercussão teórica maior, além de reclamações mal-humoradas de que ele seria um crítico “estraga-prazer, um intrometido”.

Contudo, é preciso que esses tópicos sejam discutidos, com ou sem polêmicas, pois, na tal conversa do pai erudito com o filho conectado, a resposta do pai poderia ser: “Você acha que sabe tudo que está acontecendo e nada sabe sobre o que já aconteceu.”

Por isso, dou uma pequena contribuição ao assunto: tenho um filho de 11 anos, João Pedro. Eu, zeloso pai, botei o Quarteto de Cordas op. 133 de Beethoven para que ele ouvisse um momento máximo da história da música. Ouviu tudo atentamente enquanto, no ritmo exato do quarteto, jogava um game, o Hell Kid no iPad.

Beethoven e o game se uniram em harmonia. Talvez haja futuro.