Há quatro anos pipoca na internet, na forma de spam, o artigo ‘A internacionalização do mundo’, creditado ao atual senador e ex-ministro da Educação do governo Lula, Cristovam Buarque. Para surpresa dos incréus, não se trata de mais entre numerosos e hediondos apócrifos: o texto é verdadeiro, foi originalmente publicado no Correio Braziliense e no Globo em 2000 e pode ser lido no site do senador (www.cristovam.com.br).
O artigo propõe a internacionalização de patrimônios da humanidade, a queda de barreiras políticas e econômicas e a socialização de investimentos em saúde, educação, cultura e meio ambiente. Em outras palavras, uma relação de parceria, com resultados globais para a melhoria das condições de vida no planeta, cujo processo incluiria, de nossa parte, a internacionalização da Amazônia. Não se trata exatamente de uma proposta de Cristovam Buarque, mas sim a resposta a uma provocação feita por um jovem debatedor num encontro em Nova York, na mesma época em que a megalópole sediava o Fórum do Milênio, das Nações Unidas. O jovem pleiteava, como o fazem muitos cidadãos americanos, a intervenção estrangeira na solução dos problemas da Amazônia. Nossos problemas.
A resposta de Cristovam, que poderia ser no início apenas um singelo tapa de luva no poder, acabou se transformando em manifesto para as massas silenciosas, que viram aí a oportunidade de reacender velhos ressentimentos, ainda que a complexidade dos problemas na Amazônia não seja de todo conhecida, muito menos compreendida. O tema, que pouquíssimas vezes visita as redações dos jornais, e cuja notoriedade é sabidamente mais vinculada às editorias de polícia do que às de meio ambiente, passou a receber então um aval fantasma: milhares de internautas multiplicaram o artigo – uma espécie de carta que admite tacitamente a fragilidade com que os problemas da região são administrados, mas que em hipótese alguma admite que dedos alheios espicacem nossa ferida, seja para que fim for.
O texto de Cristovam Buarque tornou-se assim uma referência, ou bandeira, unindo em torno do tema defensores ocasionais de uma causa distante. É pouco, se considerarmos a época tormentosa em que vivemos, com a morte da missionária Dorothy Stang no Pará, o recrudescimento da ação das madeireiras, o avanço das fronteiras agrícolas, a grilagem e todo o mal que ainda há por vir. Isso, em contraste com ações e reações tão remotas como a gestão das florestas ou a criação – e administração – de áreas protegidas, que traçam um caminho de caracol nos labirintos do governo.
De qualquer modo, o artigo ‘A internacionalização do mundo’ atingiu e continua a sensibilizar um público potencialmente grande, quiçá maior do que o alcançado pela sazonalidade das notícias de homicídios e queimadas. Este é um exemplo de que as questões do meio ambiente podem, sim, ganhar espaço na mídia, ajudando a disseminar um conhecimento essencial para a inclusão do tema, criticamente, no dia-a-dia dos cidadãos. Seria a oportunidade de fomentar a discussão e a ação concreta, cujos resultados tenderiam a repercutir muito mais eficazmente que a mera multiplicação de tapas de luva ante quem insista na provocação.
Entrevista com Cristovam Buarque
Passados quatro anos da publicação do artigo, o que mudou na opinião dos americanos a respeito da internacionalização da Amazônia?
Cristovam Buarque – Eu acho que não mudou nada. Se mudou foi para um sentimento ainda mais forte no exterior a respeito da internacionalização devido ao aumento das queimadas e até mesmo devido à violência, continua-se a matar trabalhadores, mata-se uma freira norte-americana na Amazônia e isso leva a cada vez mais defenderem a internacionalização.
Esse questionamento feito pelo jovem americano no debate é uma interpretação apenas dos americanos ou muitos brasileiros também pensam da mesma forma?
C. B. – Não sei se muitos brasileiros pensam da mesma forma, no sentido de internacionalização. Agora, alguns falaram comigo quando leram o artigo e discordaram daquela frase final, que afirma que a Amazônia, enquanto não internacionalizarmos tudo, continua nossa. Eles acham que a gente tem de ter uma responsabilidade maior com a Amazônia. Se não, não se justifica essa afirmação. Um amigo meu, muito conhecido, Sebastião Salgado, me disse que aquele artigo ficaria melhor se não tivesse aquela frase.
A brasilidade continua a ser um sentimento forte do nosso povo?
C. B. – A brasilidade é um sentimento em construção. Só é forte na Copa do Mundo. Tirando a Copa do Mundo não há esse sentimento de brasilidade tão forte. Primeiro que é um país dividido entre excluídos e incluídos. A brasilidade de um pobre nordestino na seca não é a mesma de um rico paulista. A gente não conseguiu ainda costurar aquilo que nos unifique. Interessante é que o Brasil tem tudo para ter isso fácil. Mas, às vezes a sensação é que a Índia tem um sentimento mais forte de Índia que o Brasil de Brasil. E a Índia são 13 línguas, são 23 mil dialetos, um bilhão de pessoas. Mas há um sentimento de Índia. O sentimento de brasilidade, na minha opinião, não estará completo enquanto tivermos incluídos e excluídos no Brasil.
A globalização da economia não corrigiu problemas estruturais dos países pobres. Que tipo de solução teríamos se globalizássemos a cultura, a saúde, a educação?
C. B. – A globalização agravou os problemas. Dividiu mais o Brasil. Até os anos 80, um brasileiro rico se sentia de qualquer maneira mais próximo de um brasileiro pobre do que hoje. Porque hoje ele se ligou lá fora. Hoje criou-se um primeiro mundo internacional dos ricos. Do qual os ricos brasileiros fazem parte. Quando eu falo ‘rico’ estou me referindo a todos aqueles que têm dente na boca, sapato nos pés, concluiu o Ensino Médio. Essa parcela se unificou internacionalmente e se distanciou da parcela pobre. O que fazer para resolver isso? É democratizar a globalização. Como? Com um programa mundial de inclusão social. E isso eu acho que se faz com educação. Segundo, globalizar o conhecimento. Não é possível, num mundo que se diz global, africanos com Aids morrerem quando já existe um coquetel capaz de resolver isso. Mas o conhecimento não é global, é apropriado pelos ricos. A globalização do planeta. A gente tem que começar a proteger mais o meio ambiente, independente do que um povo inteiro quiser fazer com seu país.
A internacionalização do mundo seria o princípio de uma sociedade planetária sustentável?
C. B. – De certa maneira, sim. Mas, essa sociedade planetária exigiria muito mais do que isso. Exigiria um governo que pudesse ser exercido através das fronteiras nacionais. E isso ainda vai demorar muito. Por isso defendo que, enquanto não se pode ter governos planetários, a gente tenha valores éticos planetários que nem a democracia interna de um país possa deixar de cumprir.
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A internacionalização do mundo
O Globo
– 10/10/2000Fui questionado sobre o que pensava da internacionalização da Amazônia, durante um debate, nos Estados Unidos. O jovem introduziu sua pergunta dizendo que esperava a resposta de um humanista e não de um brasileiro. Foi a primeira vez que um debatedor determinou a ótica humanista como o ponto de partida para uma resposta minha. De fato, como brasileiro eu simplesmente falaria contra a internacionalização da Amazônia.
Por mais que nossos governos não tenham o devido cuidado com esse patrimônio, ele é nosso. Respondi que, como humanista, sentindo o risco da degradação ambiental que sofre a Amazônia, podia imaginar a sua internacionalização, como também de tudo o mais que tem importância para a humanidade.
Se a Amazônia, sob uma ótica humanista, deve ser internacionalizada, internacionalizemos também as reservas de petróleo do mundo inteiro. O petróleo é tão importante para o bem-estar da humanidade quanto a Amazônia é para o nosso futuro. Apesar disso, os donos das reservas sentem-se no direito de aumentar ou diminuir a extração de petróleo e subir ou não o seu preço. Os ricos do mundo, no direito de queimar esse imenso patrimônio da humanidade.
Da mesma forma, o capital financeiro dos países ricos deveria ser internacionalizado. Se a Amazônia é uma reserva para todos os seres humanos, ela não pode ser queimada pela vontade de um dono, ou de um país.
Queimar a Amazônia é tão grave quanto o desemprego provocado pelas decisões arbitrárias dos especuladores globais. Não podemos deixar que as reservas financeiras sirvam para queimar países inteiros na volúpia da especulação.
Antes mesmo da Amazônia, eu gostaria de ver a internacionalização de todos os grandes museus do mundo. O Louvre não deve pertencer apenas à França. Cada museu do mundo é guardião das mais belas peças produzidas pelo gênio humano. Não se pode deixar que esse patrimônio cultural, como o patrimônio natural amazônico, possa ser manipulado e destruído pelo gosto de um proprietário ou de um país. Não faz muito, um milionário japonês decidiu enterrar com ele um quadro de um grande mestre. Antes disso, aquele quadro deveria ter sido internacionalizado.
Durante o encontro em que recebi a pergunta, as Nações Unidas reuniam o Fórum do Milênio, mas alguns presidentes de países tiveram dificuldades em comparecer por constrangimentos na fronteira dos EUA. Por isso, eu disse que Nova York, como sede das Nações Unidas, deveria ser internacionalizada.
Pelo menos Manhattan deveria pertencer a toda a humanidade. Assim como Paris, Veneza, Roma, Londres, Rio de Janeiro, Brasília, Recife, cada cidade, com sua beleza específica, sua história do mundo, deveria pertencer ao mundo inteiro. Se os EUA querem internacionalizar a Amazônia, pelo risco de deixá-la nas mãos de brasileiros, internacionalizemos todos os arsenais nucleares dos EUA. Até porque eles já demonstraram que são capazes de usar essas armas, provocando uma destruição milhares de vezes maior do que as lamentáveis queimadas feitas nas florestas do Brasil.
Nos seus debates, os atuais candidatos à presidência dos EUA têm defendido a idéia de internacionalizar as reservas florestais do mundo em troca da dívida. Comecemos usando essa dívida para garantir que cada criança do mundo tenha possibilidade de ir à escola.
Internacionalizemos as crianças tratando-as, todas elas, não importando o país onde nasceram, como patrimônio que merece cuidados do mundo inteiro. Ainda mais do que merece a Amazônia. Quando os dirigentes tratarem as crianças pobres do mundo como um patrimônio da humanidade, eles não deixarão que elas trabalhem quando deveriam estudar; que morram quando deveriam viver.
Como humanista, aceito defender a internacionalização do mundo. Mas, enquanto o mundo me tratar como brasileiro, lutarei para que a Amazônia seja nossa. Só nossa.
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Jornalista, assessor do Senado