Eles não são maioria, mas estão por aí e podem ser identificados. Estão personificados naquele chefe para quem nada está à altura nunca. Ou naquele namorado que mina a sua autoestima sempre dizendo o quanto você é inadequada. Os psicopatas do cotidiano são tema de uma palestra na quinta-feira [30/5] no Espaço Clif e também de um livro a ser lançado em junho, pela editora Casa da Palavra, a cargo da psiquiatra Katia Mecler, especialista em psiquiatria pela UFRJ e pela Associação Brasileira de Psiquiatria, psiquiatra forense, mestre em Psiquiatria e doutora em Ciências de Saúde pela UFRJ.
O que é um psicopata do cotidiano?
Katia Mecler – Este não é uma categoria médica classificada pela Organização Mundial da Saúde ou no manual da Associação Psiquiátrica Americana que é a DSM-5, e sim um termo que eu resgato do psiquiatra alemão Kurt Schneider, que escreveu sobre psicopatias na década de 40. Os psicopatas do cotidiano são pessoas com transtorno da personalidade, que é um jeito de ser inflexível, rígido, que envolve sentimentos ou sensações, pensamentos ou comportamentos repetitivos que acarretam disfunção em alguma área da vida. São pessoas que têm uma forma de ser (em geral desde o fim da adolescência) muito peculiar e disfuncional desde sempre. Não é como uma doença mental como psicose, esquizofrenia, transtorno bipolar ou depressão, em que a pessoa tem os sintomas, trata, medica e fica em estado de normalidade. No caso do transtorno de personalidade a pessoa não se dá conta que tem um problema e causa um profundo mal estar e sofrimento em torno de si, também sem se dar conta.
Quais são os tipos de transtorno de personalidade?
K.M. – Hoje a DSM-5 divide em grupos A, B e C. O grupo A, com vulnerabilidade à psicose, reúne os esquizotípicos, esquizoides e paranoides, pessoas que têm o comportamento mais ligado ao isolamento, à excentricidade, um pensamento meio mágico e com tendências irreais. O grupo B, o grupo da moda, com tendência à perversão, é o dos antissociais, borderlines, narcisistas e histriônicos. Os antissociais têm prazer com a transgressão, usam da mentira e da manipulação, não têm sentimento de culpa, não se preocupam minimamente com o outro e são muito irresponsáveis; os borderlines, que têm traços marcantes de impulsividade e instabilidade emocional — não toleram a mínima frustração; os narcisistas, que têm traços de arrogância e grandiosidade, privilegiam relações utilitárias, com pessoas que possam levá-los ao topo e buscam ser admirados o tempo todo; e os histriônicos, extremamente sedutores, sempre em busca de atenção, precisam ser os protagonistas da cena. E o grupo C é o das neuroses mais graves, de difícil tratamento. É o grupo dos obsessivos-compulsivos, dependentes e evitativos ou ansiosos. O obsessivo-compulsivo tem o traço patológico de perfeccionismo rígido, ordem, organização; o dependente é o submisso, que faz tudo pelo outro; e o evitativo é quase uma fobia social com hipersensibilidade à rejeição.
Você pode dar mais exemplos de como identificar esses traços?
K.M. – O mais interessante do livro (e que a DSM-5 traz também) é que não necessariamente a gente tem que diagnosticar os transtornos de personalidade, mas a gente pode identificar traços patológicos de personalidade a DSM-5 propõe 25 tipos de traços patológicos. Exemplo de um traço de personalidade: desconfiança. Tem pessoas que são permanentemente desconfiadas, se sentem sempre ofendidas porque acham que os outros estão sempre tentando descobrir alguma coisa, ou burlar.
Como a gente consegue identificar um vizinho, ou um namorado assim?
K.M. – Uma pessoa com traço de grandiosidade, por exemplo, uma característica dos narcisistas. É aquela pessoa que se acha o máximo que precisa desqualificar o outro o tempo todo para se sentir o máximo — sem se dar conta, acha que o problema é o outro. Isso é um homicídio da autoestima alheia.
Todo mundo tem um pouco desses traços?
K.M. – Todo mundo tem e deveria ter muitas coisas dessas, mas o problema é quando isso é muito acentuado a ponto de gerar disfunção importante na vida da pessoa, seja na vida afetiva, de trabalho… Pessoas que vão desfazendo relações por causa de determinados traços. Outro exemplo é o borderline, que tem traços de instabilidade emocional e impulsividade acentuados.
Como essas pessoas não se dão conta do que causam e acham que o problema está no outro, elas não sofrem, certo?
K.M. – Elas sofrem, mas não por achar que tem alguma coisa errada com elas e sim porque acham que o mundo não dá a elas o que elas querem. O obsessivo perfeccionista, aquele chefe que está sempre apontando defeitos, não sofre porque é um perfeccionista inveterado que azucrina os outros, mas por que as pessoas não funcionam de maneira tão perfeita como ele gostaria.
De onde vem isso ou qualquer pessoa em determinado momento da vida pode desenvolver esses traços?
K.M. – Estamos falando de uma perturbação da personalidade muito disfuncional que traz mal estar a si mesmo e/ou àqueles que estão em volta. Nosso jeito de ser é a combinação do temperamento (que vem de fábrica) com o caráter (que é parte genético e parte moldado pelo ambiente). O temperamento é uma disposição, um certo colorido, um tom que a gente herda para viver determinadas experiências no plano emocional — nos bebês a gente já vê essa diferença, uns são mais dóceis, outros umas pimentinhas. Isso mais o caráter dá a personalidade. Todo mundo tem, em algum grau, mesmo leve, traços de personalidade que podem ser disfuncionais.
Mas dá pra virar psicopata, diante, por exemplo, de uma situação na vida?
K.M. – Não. E é bom ressaltar que os psicopatas do cotidiano não são a maioria, são exceção. O importante e que eu proponho é que a gente consiga identificar alguns traços patológicos severos, acentuados, inflexíveis e repetitivos que causam mal estar — em você e no ambiente. Até para entender que a pessoa que faz isso não faz de propósito, faz porque é o jeito dela, não é nada pessoal.
De todos esses psicopatas do cotidiano, há um tipo mais comum na sociedade?
K.M. – Acho que hoje a gente vive a era do grupo B, dos antissociais, borderlines, narcisistas e histriônicos. Não digo que sejam pessoas diagnosticadas, mas a gente observa muito esses traços nessa era “facebookiana”. O Facebook favorece os psicopatas do cotidiano. Essa época em que se vale muito mais pelo que se tem ou aparenta do que pelo que se é ou se constrói é um meio muito facilitador dessas personalidades.
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Viviane Nogueira, do Globo