Um dos primeiros pensadores a refletir sobre a internet, Pierre Lévy, 55, estará [esteve] no Brasil no final de agosto para participar da 14ª Jornada de Literatura de Passo Fundo (RS).
Criador de termos hoje triviais, como cibercultura e ciberdemocracia, e professor na Universidade de Ottawa (Canadá), ele falou à CULT sobre interatividade e o futuro da web, temas de que já tratou em obras como Cibercultura (Editora 34) e A Inteligência Coletiva (Loyola).
Seu livro Ciberculturafoi lançado em 1999. Mais de dez anos depois, você acha que algumas das projeções que fez na obra se realizaram?
Pierre Lévy – Minha principal projeção realizada é a do crescimento das comunidades virtuais, hoje conhecidas como mídias sociais.
Outra diz respeito à transformação da mediação cultural: nós vemos atualmente que as funções dos jornalistas, publicitários, curadores, críticos, bibliotecários etc. podem ser realizadas por qualquer pessoa on-line. Além disso, podemos perceber que, por mais que as pessoas usem a internet, elas continuam se encontrando pessoalmente.
Penso também que eu estava certo ao interpretar a cibercultura não como uma cultura de gueto compartilhada apenas pelos fãs do digital, mas como a cultura compartilhada por todos na era digital.
Você consegue projetar mudanças para os próximos anos na vida das pessoas que usam a internet diariamente?
P.L. – Primeiro acredito que todos usarão a internet todos os dias, mesmo sem consciência disso. Segundo, acho que tudo e todos possuirão uma “aura semântica” aumentada ou uma realidade virtual que refletirá sua própria atividade cognitiva ou a atividade cognitiva das pessoas em relação a ela.
Para tornar possível a existência de sistemas como a “Árvore do Conhecimento”, o que precisa acontecer? Quanto tempo isso levará?
P.L. – O que está em jogo aqui é uma profunda mudança cultural em relação ao conhecimento e ao reconhecimento de competências.
Em vez de pertencer às escolas e universidades, o reconhecimento de competências passará a ser profundamente distribuído em toda a sociedade e as comunidades passarão a pensar sobre si mesmas como “inteligências coletivas”.
Isso acontecerá daqui a duas ou três gerações, no máximo.
Você afirma que, em termos técnicos, a internet possibilita a existência de uma “ciberdemocracia”, com o aumento do acesso a informações governamentais e da interação entre o governo e a sociedade civil. Isso pode funcionar na prática? Como?
P.L. – Isso já funciona. Os governos atualmente são muito mais transparentes do que eram 20 anos atrás, graças aos sites oficiais e aos dados públicos. Além disso, as discussões públicas, ou seja, a parte deliberativa da democracia, já têm sido reforçadas pelos diálogos em blogs e mídias sociais.
No futuro se verá um novo tipo de estratégia política, usando transparência, discussões públicas e inteligência coletiva como armas.
Qual a sua opinião sobre os direitos autorais e as polêmicas quanto à internet, especialmente em relação ao compartilhamento ilegal por um lado e aos sites que permitem a modificação e comercialização dos conteúdos por outro, como o creative commons?
P.L. – Acho que nós estamos lentamente caminhando para um tipo de comunismo da informação e do conhecimento.
Mas acho que deveríamos acompanhar de perto as contribuições culturais das pessoas e recompensá-las por isso, com dinheiro ou reputação.
Com as novas tecnologias, com o aumento no número de blogs e o fortalecimento das redes sociais, o que pode mudar na função dos jornalistas? Ela deixará de ter sentido com o tempo?
P.L. – Acho que a função do jornalismo será cada vez mais importante, incluindo o uso das bases de dados na profissão.
Mas saber se essas funções jornalísticas continuarão sendo cumpridas por jornalistas profissionais é ainda uma questão aberta. Nós devemos imaginar agências de notícias poderosas funcionando com base em crowdsourcing.
As pessoas podem usar a internet de diferentes maneiras, boas ou ruins. Em sua opinião, isso é apenas consequência da liberdade que provém da rede ou você acha que deveria haver monitoramento?
P.L. – Eu sou contra qualquer censura governamental na internet, especialmente quando se trata de opiniões políticas dissidentes.
Mas entendo que alguns proprietários de plataformas decidam desligar as mensagens ou as pessoas que se dedicam a atividades ilegais ou hediondas.
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O guru atemporal
Reproduzido da site da revista Cult, 24/8/2011
Marcos Flamínio Peres
“Por favor, desliguem os flashes”, pedia pela terceira vez, impaciente, o pioneiro e entusiasta do uso da tecnologia – em particular, a web – na sociedade contemporânea. Encerrando o segundo dia da 14ª Jornada Literária de Passo Fundo, Pierre Lévy mal entrou no palco principal do evento e já era ovacionado pela plateia, feita de professores e alunos universitários e do ensino médio.
Praticamente o único engravatado da noite, o pesquisador tunisiano radicado no Canadá fez valer sua formação realizada na França. Contido, metódico, esquemático, Lévy lançava mão de vários slides para defender sua tese principal, a de que, hoje, “na era da computação, estamos explorando uma nova relação com nossa própria mente”. Épico, Lévy solta uma bela boutade: “Podemos entender a história da humanidade como a exploração de todas essas possibilidades da mente”.
A cristalização desse amplo movimento histórico se dará na web. Tão inovador é o novo meio, diz Lévy, que mesmo o idioma para abordá-lo ficou ultrapassado. Assim, usamos termos da mídia “antiga” – a impressa e mesmo os meios audiovisuais da velha guarda, como o rádio e a TV – para descrever esse fenômeno recente.
Flertando com a filosofia da mente – e com o positivismo do século 19 –, Lévy crava: “O aumento do poder da computação está aumentando nossa capacidade cognitiva”.
Aclamado também ao final da palestra, árida e repleta de conceitos, Lévy não tocou num tema alarmante e hoje já mensurável: o modo como a web, cuja definição etimológica é de “rede”, cria no seu usuário um novo tempo interno, onde a força da dispersão cognitiva é uma ameaça constante.
Mas seu status de guru permaneceu intocado.