Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

O Frankenstein cibernético

A reportagem, eu encontrei no Independent (4/6), mas originou-se de uma matéria da CNN Money (3/6) de autoria do engenheiro Ray Kurzweil. Tratava de inteligência artificial e seu título era “Humanos serão híbridos em 2030”. O futurista e principal engenheiro do Google no assunto acredita que nanoimplantes feitos de fios de DNA dentro de nossos cérebros estarão conectados “à nuvem” e aumentarão nossas inteligências em um futuro muito próximo.

“Nosso pensamento será um híbrido de biológico e não biológico”, ele previu. Segundo o autor, mais à frente em seu artigo, a inteligência humana aumentará à medida que “maior e mais complexa” ficar a colossal rede de servidores que a turma da tecnologia convencionou chamar de “nuvem”. Cabem aqui algumas perguntas: será quer o autor acredita que o avanço da nossa inteligência vai passar a depender de uma rede mundial de servidores? Só cresceremos intelectualmente pela “nuvem”? E quais serão as qualidades, habilidades e qualidades que nos aguardam, segundo o autor, nas “névoas digitais”?

Ray Kurzweil é um inventor conhecido por fazer previsões acertadas. É um engenheiro de alta qualificação e o que ele diz merece ser ouvido. Mas o homem também é um executivo, um engenheiro envolvido em projetos do Google que tem um interesse imenso em inteligência artificial e seu futuro monopólio. Kurzweil é também o garoto-propaganda das ambições do Google na área e o que ele diz deve ser filtrado para extrairmos os interesses mercantis embutidos em seus discursos.

Para aqueles que acreditam ainda em mitos da era pré-cibernética, o autor assegura que não haverá o perigo de revoluções robóticas. E que cada um de nós tem a responsabilidade de “controlar a tecnologia e seus perigos”, adicionou ele à CNN.

Parte homem, parte máquina

Kurzweil reconhece que há perigos. Seria absurdo se não o fizesse. A questão aqui é quantas e quais habilidades e conhecimentos devemos transferir as máquinas. Ou nuvem, ou coisa que valha. O autor está certo ao apontar um futuro híbrido homem-máquina para os humanos, mas não no sentido do uso do cérebro humano apontado por ele. Sua imagem de cérebros conectados à rede cibernética sempre a aumentar suas capacidades é um exagero oportunista e uma redução inaceitável da mente humana. Uma projeção futurista insensata.

O cérebro do homem ainda não foi inteiramente decifrado e estudado pela medicina e pela comunidade científica internacional. Conectar um cérebro humano a uma rede de computadores hoje ainda nos parece uma forma de brutalização, redução e sujeição do ser humano. Afinal, nenhuma máquina ou programação cibernética é capaz de replicar as imensas, insondáveis e profundas capacidades da mente humana. E “turbinar” o cérebro através de implantes não é aumentar a inteligência: é fazer contínuas atualizações de dados. Aumentar a memória e a capacidade de armazenamento do cérebro não significa aumento de inteligência: é contentar-se em viver a vida como um terminal digital com muita informação e nenhuma interação.

O mito da dominação digital é distração para o público e propaganda para corporações de base tecnológica. Mas a ideia de um ser humano híbrido é uma realidade inevitável, e benéfica para a humanidade. As possibilidades são muitas: órgãos perdidos recuperados, próteses quase mágicas que devolvem capacidades destruídas, tudo isso já começa a acontecer em nosso tempo. E apoia-se em inteligência cibernética.

É bem possível e desejável que no futuro venhamos a conviver com próstatas e rins artificiais e outros órgãos de igual gênese. Que poderão ser construídos por impressão 3D. Neste sentido, seremos híbridos: parte homem, parte máquina. Nosso corpo vai ser uma colagem orgânico-cibernética. Mas quanto ao “pensamento não biológico”, eu tenho cá minhas dúvidas.

A condição existencial do homem

Ele tem uma capacidade de cálculo muitas vezes superior ao pensamento biológico, que não passa de 1026 operações por segundo. Fritz Allhoff, professor e estudioso de ética aplicada, autor do livro Nanoethics: The Ethical and Social Implications of Nanotechnology, (John Wiley & Sons, 2007, 385p), acredita que o pensamento não biológico vai ultrapassar o biológico “muito antes da metade do século” (21). E que este tipo de inteligência não biológica também é humana porque, além de ser um produto da civilização de homens que constroem máquinas, também é “um método de organização do pensamento” (pg.47), e não uma “simples fusão de raciocínios orgânicos e não orgânicos”.

Ele avisa sobre os perigos dos nano-robôs implantados em organismos humanos. Duas ameaças concretas não podem ser ignoradas: (1ª) eles podem ser controlados por entidades hostis de diversos tipos; (2ª) eles podem autoreplicar-se como organismos autônomos e causar imenso dano à humanidade. Os resultados são imprevisíveis e todo o cuidado é pouco. Questões ontológicas diversas aparecem, quando discutimos a ampliação da inteligência humana: podemos replicar e amplificar sensações de outros, experimentar novas realidades ampliadas e aumentar nossa percepção. Mas a réplica exata da vivência humana, sua originalidade e suas singularidades não podem ser reproduzidas integralmente pela inteligência artificial. Não podemos ensinar o que ainda não compreendemos.

Avançamos muito na física, na matemática, na ciência da computação e em outras áreas das ciências exatas. Mas ainda estamos reticentes e pouco convencidos da necessidade do progresso nos estudos das ciências humanas, que pouco progrediram com a revolução digital. Em descrédito diante de um público encantado pelas promessas de um mundo perfeito desenhado por engenheiros que vão trazer o nosso “admirável mundo novo”, elas precisam recuperar seu espaço essencial à crítica ao progresso das ciências exatas. E para a compreensão da condição existencial do homem.

A nanotecnologia e a inteligência artificial

A inteligência artificial via implantes orgânicos pode ser usada para comandar funções autônomas do cérebro que perdemos com o tempo ou por doença. Ou para combater doenças degenerativas do sistema nervoso central. Seu potencial para recuperar a memória nos portadores de Alzheimer é bastante significativo. Mas há limites em sua capacidade de compreender ambiguidades e irracionalidades das nossas vidas cotidianas que ainda nos atormentam. Como poderemos ensinar o que ainda não entendemos a uma máquina, a uma unidade ou sistema de inteligência artificial? Como prepará-lo para socializar? Como garantir então que ele poderá dialogar com nossas subjetividades, nossos maus-humores, nossas idiossincrasias, nossos meandros imperscrutáveis da alma? Poderá algum sistema de inteligência artificial compreender e ensinar ética, valores morais e filosóficos?

Há um momento na discussão sobre a inteligência artificial em que acontece um choque entre o humanismo clássico e o avanço da ciência. Importantes questões surgem daí: O progresso é sempre uma coisa sempre boa e necessária? Até que ponto é sustentável? A tecnologia digital vai trazer a cura dos nossos males cotidianos e existenciais? Vai acabar com a miséria moral e material da humanidade? Eu não sou daqueles que acreditam que há um “app” para tudo nesta vida e prefiro como diziam os antigos, deixar minhas “barbas de molho”. Muitos estudiosos e pesquisadores têm o mau hábito de apaixonarem-se por seus objetos de estudo, tornando-se incapazes de fazer a crítica de seus próprios objetos de estudo.

Provavelmente seremos híbridos no futuro porque somos feitos de matéria derivada do carbono, de fácil destruição. Os traumas mecânicos que sofremos no corpo, as doenças que desafiam a ciência e suas consequências para a saúde dos homens serão curadas ou abrandadas pela nanotecnologia e pela inteligência artificial. Que será sempre um auxiliar poderoso, mas nunca protagonista na história das vidas humanas. Nossas vidas tão complicadas, plenas de esplendor e tocadas pelo inexplicável não podem ser replicadas por sistemas artificiais de inteligência.

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Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor