O Ibase nasceu em 1981, tendo entre as suas missões a democratização da informação. Um dos seus idealizadores, Carlos Afonso, foi figura fundamental no cumprimento dessa meta. C.A., como é conhecido por todos e todas, sempre acreditou que o uso de tecnologias só tem a contribuir para a maior e melhor difusão de informações. O Ibase foi a primeira organização da sociedade civil no Brasil a ter um microcomputador e foi responsável por impulsionar a Internet no país ao desenvolver projetos como o AlterNex e ao interconectar computadores durante a Eco-92 – conferência da ONU sobre meio ambiente e desenvolvimento, realizada em 1992. Agora, a instituição aposta na importância de fortalecer os softwares livres. Em entrevista, Carlos Afonso relembra a trajetória do Ibase na área tecnológica e opina sobre a adoção de softwares livres.
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Assim que iniciou a sua atuação, em 1981, o Ibase já tinha um microcomputador, não é?
Carlos Afonso – Nós éramos os únicos entre as entidades civis no Brasil. Era esquisito. Na época, várias ONGs nacionais olhavam a gente com desconfiança. Era como se fôssemos pegar um trator em vez de uma enxada. Achavam que estávamos caindo de pára-quedas com tecnologias do hemisfério norte que nada tinham a ver com a nossa realidade. Demorou algum tempo para perceberem a importância disso. Foi mudando na medida em que fomos mostrando, na prática, a importância do que estávamos propondo. O Peru já estava na nossa frente com o projeto de informática do Desco, liderado por Mario Padrón. Esse projeto foi criado bem antes do Ibase ser fundado.
Como o fato de você ter sido exilado contribuiu para que o Ibase viesse a desenvolver uma proposta de democratização da comunicação no Brasil, mais especificamente com o uso de tecnologia?
C.A. – O que eu e Betinho pensamos no México, quando tivemos a idéia de criar o Ibase, foi um instituto que contribuísse fortemente para a democratização da informação em um país que ainda estava sob uma ditadura. E que também trabalhasse com o envolvimento da comunidade na discussão de políticas públicas, como faziam alguns institutos que viemos a conhecer no exílio, como o Instituto de Estudos de Política [IPS, na sigla em inglês], de Washington, entre outros. Visando potencializar esses dois objetivos é que queríamos usar a melhor tecnologia disponível. O microcomputador era um instrumento que agilizava certos procedimentos como gerar documentação, arquivar, processar e disseminar dados etc.
E quanto ao acesso à rede de computadores? Como o Ibase começou a trabalhar nesse sentido?
C.A. – Na época em que o Ibase foi criado não se falava em redes de computadores para intercambiar conteúdo da forma como começou a ocorrer em meados da década de 1980. Computadores, na realidade, eram interligados quase que experimentalmente pela academia, mas não ia além disso. Em meados da década de 1980 é que isso começou a aparecer com força. E o Ibase foi, mais uma vez, um dos pioneiros. Já em 1984, passamos a fazer parte de um projeto internacional de ONGs chamado Interdoc, que proporcionava a troca de informações via correio eletrônico entre ONGs para potencializar o trabalho de cada uma delas. Foi o embrião de tudo o que as ONGs vieram a construir na área de redes, trabalho colaborativo, redes de informação via computador. Essa experiência teve início três anos depois que o Ibase começou a funcionar.
Então, as ONGs tiveram papel fundamental nesse sentido?
C.A. – Do ponto de vista tecnológico, as ONGs não criaram nada. Criaram as maneiras de utilizar a tecnologia para determinados fins. Estávamos aprendendo a usar os instrumentos que começavam a existir. Ter acesso às redes antigas de transmissão de dados era um interesse nosso porque queríamos ter e-mails e trocar informação. Em uma denúncia de direitos humanos, por exemplo, se fossemos esperar o correio ou o fax poderia ser tarde demais. Uma rede de computadores pode mobilizar gente de maneira muito mais eficaz, como comprovamos em 1988, quando assassinaram o Chico Mendes. O AlterNex ainda não tinha uma conexão internacional, mas já tínhamos essa rede originada do projeto Interdoc. Então, conseguimos mandar e-mails para muita gente sobre o assassinato e a pressão que voltou para o governo brasileiro foi muito rápida e surpreendente. Foi um marco interessante do uso dessa tecnologia.
E quando surgiu o AlterNex?
C.A. – Como idéia surgiu em 1984, quando começamos a trabalhar com o Interdoc e a pensar em como oferecer esses serviços no Brasil. Na época, só a Embratel dava permissão para trocar correio eletrônico. Só permitia a quem pagasse, fundamentalmente as empresas usavam o serviço. E você só podia ser usuário, não podia ser um centro que distribuísse informação para outros. Poderia mandar seu correio, receber seu correio, mas não poderia manter uma lista de discussão, por exemplo. Ou manter um local onde as pessoas pudessem entrar e colocar informações. Em 1985, começamos a trabalhar no que se chamava BBS (Bulletin Board System), que conectamos à Renpac, rede de pacotes da Embratel. Então, começamos a prestar serviços à comunidade, que era privilégio da Telebrás, do governo e da Embratel. E esse foi o embrião do AlterNex. O trabalho foi evoluindo e, em 1989, conseguimos um apoio do Pnud [Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento] para viabilizar um projeto mais amplo de troca de informações via computador. Foi assim que nasceu o AlterNex.
Então houve maior abertura para a sociedade…
C.A. – Muito mais. Inclusive, passamos a ter uma conexão com os Estados Unidos para a transferência de e-mails, o que fazíamos uma ou duas vezes por dia, por conexão telefônica internacional.
E eram poucas as pessoas no início, não?
C.A. – Em 1989, eram cerca de 40 entidades usuárias, a maioria não tinha computador e isso era uma exigência mínima para a utilização do sistema. O crescimento foi lento. A partir da Eco-92, ele explodiu. Com o nosso trabalho na Eco-92, conseguimos não só conexão direta com a Internet nos Estados Unidos para o projeto AlterNex, como meios de pressionar o governo para liberar essas conexões para a academia no Rio de Janeiro e em São Paulo. Então, a Internet no Brasil, como uma rede permanentemente conectada, nasceu com a Eco-92, em junho de 1992.
E como foi o projeto na Eco-92?
C.A. – Foi um projeto grande para o que nós éramos. Foi a primeira vez que ocorreu isso em um ambiente de conferência da ONU. Conseguimos apoios internacionais para viabilizar o projeto e que a ONU o incluísse num acordo de sede com o Brasil. Sem isso, não poderíamos ter importado equipamentos, por exemplo. Nem as telefônicas conheciam equipamento de Internet. Nem a Embratel. O Ibase é que trouxe isso para o Brasil. Instalamos redes de computadores conectadas à Internet em todos os espaços da Eco-92, tudo interconectado. Foi a primeira vez que se fez isso no Brasil.
Como você avalia a forma como a web tem sido utilizada pelas ONGs no Brasil?
C.A. – Ainda é muito fraca. Por incrível que pareça, depois de tantos anos, acho que as ONGs ainda não perceberam o potencial, o alcance da Internet. Das cerca de 500 mil entidades civis formalmente registradas, segundo o IBGE, existem pelo menos 50 mil catalogadas como entidades que, de algum modo, tentam praticar ou praticam o chamado desenvolvimento social. Mas nem todas, efetivamente, utilizam a Internet. Dos mais de 900 mil domínios ‘.br’ registrados, pouco mais de 24 mil são de ONGs. Muitas sequer são usuárias regulares. Com relação à difusão de informações pela Internet, também ainda há muito o que evoluir.
O que é preciso ser feito para que as ONGs mudem o olhar delas sobre a utilização da internet?
C.A. – É um trabalho difícil. Não sei o que poderia estimular isso. Muitas enfrentam o dilema de estarem utilizando a Internet e se sentirem inseguras sobre se devem ou não divulgar todas as suas informações. Há um dilema que precisa se resolvido. As grandes ONGs já resolveram isso há algum tempo, mas isso não significa que utilizam a Internet da maneira mais eficaz. E as grandes são um pequeno universo do mundo das ONGs. Existem milhares e milhares de entidades civis fazendo trabalhos importantíssimos, principalmente no âmbito local, e esses trabalhos não aparecem como exemplo, como prática. Não são visíveis. Essas entidades ou não têm recursos, ou não têm interesse de divulgar as suas informações.
O Ibase está lançando um novo portal com o uso da plataforma livre. Como você vê essa iniciativa?
C.A. – Com relação à questão do software livre, acho fundamental. O espírito da Internet nasceu com padrões abertos, toda a base de código da Internet já nasceu livre. Foi por isso que, entre outras razões, ela se disseminou tanto. O fato do padrão ser aberto permitiu que qualquer computador se conectasse a qualquer outro. Na verdade, hoje em dia, qualquer dispositivo que tenha um microprocessador pode conectar-se à Internet. Outra coisa importante é que, por ser uma alternativa livre, está contribuindo para a liberdade do conhecimento, que também é um dos grandes objetivos de nossa missão como entidades civis. Por todas essas razões, interessa apoiar, sempre que possível, o software livre. Digo sempre que possível porque não sou daqueles que falam: ‘ou o software livre ou a morte’. Acho que muito ainda não foi resolvido em ambientes de software livre, até porque a comunidade que o desenvolve não tem, ainda bem que não, objetivos comerciais. Então, o ritmo de resolução dos problemas e a criação de novas alternativas de software seguem outra perspectiva. Além disso, grande parte dos equipamentos são, hoje, concebidos para plataformas de software proprietário.
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Editora da Agência Ibase