Há duas semanas, quando o secretário de Estado americano Collin Power esteve em Santiago, o jornal chileno Las Ultimas Notícias (www.lun.com) dedicou mais espaço ao que ele jantou (camarão com cuscuz) do que à posição dos Estados Unidos sobre o mercado comum de 21 países da Ásia e do Pacifico.
Seria uma escolha normal num tablóide especializado em trivialidades não fosse a justificativa para a opção editorial. No Las Ultimas (como é conhecido nas bancas de Santiago), a pauta de reportagens é decidida em função do número de cliques que cada assunto recebe na página do jornal na web.
O sistema está em vigor desde 2002 e produziu uma apaixonada polêmica entre jornalistas, comunicólogos e executivos da imprensa chilena, porque ele coincidiu com uma espantosa recuperação do primo pobre da rede de jornais da família Edwards. Las Ultimas Noticias simplesmente saltou da obscuridade para o primeiro lugar em vendas, em menos de três anos – superando inclusive o seu co-irmão, o vetusto El Mercurio.
Corrida frenética
Todos os dias, o setor de informática do Las Ultimas fornece uma estatística do número de visitas (cliques) a cada reportagem publicada na versão web, cujo conteúdo jornalístico é idêntico ao da edição em papel. Os assuntos mais clicados merecem desdobramento enquanto os menos visitados são pura e simplesmente sacrificados, não importa sua importância política e econômica.
Na reunião dos chefes de Estado da APEC (Associação de Países da Ásia e do Pacífico), realizada no final de novembro último, o discurso do presidente George W. Bush foi para a lata do lixo em benefício de uma matéria sobre as gorjetas recebidas por garçons que atenderam os presidentes, reis e primeiros-ministros estrangeiros.
O gosto e o humor dos leitores substituíram os critérios jornalísticos enquanto o trabalho em equipe dos repórteres e editores cedeu lugar a uma corrida frenética por cliques, que no final das contas decidem não só o cardápio de notícias mas, também, quem continua ou não no emprego.
Modelo clássico
O idealizador desta polêmica dieta informativa é Agustín Edwards Del Rio, 51 anos, vice-presidente da Empresa El Mercurio e presidente-executivo do diário Las Últimas Noticias – o mais jovem executivo jornalístico da família Edwards que ocupa no Chile uma posição similar a da família Marinho, no Brasil.
Agustín começou a mudar a cara do LUN (sigla pela qual o Las Ultimas é conhecido no meio empresarial chileno) quando decidiu, em 1999, que o jornal seria o mais parecido possível com uma tela de televisão. Além da profusão de fotos coloridas, o matutino com circulação de quase 190 mil exemplares diários elegeu os ricos e famosos como pauta obrigatória.
O sistema de cliques foi introduzido por Agustin Edwards há dois anos, como parte de uma tentativa de adaptar para a imprensa escrita o mesmo princípio das maquininhas verificadoras de audiência na TV, conhecidas como ‘people meter’.
Não existe comprovação factual para a coincidência entre o vertiginoso crescimento das vendas e da receita publicitária do jornal com a aplicação da fórmula dos cliques. O certo é que ela desencadeou uma formidável saraivada de críticas por parte dos jornalistas adeptos do modelo clássico de apuração e formação de agenda.
‘Eu não sou adepto da escola jornalística que diz o que é bom para o leitor. Eu não estou preocupado com o que o nosso público deveria ler, mas em reuni-lo em torno daquilo que ele gostaria de ler’, disse Agustín Edwards Del Rio, numa entrevista publicada no início de dezembro pelo jornal norte-americano The Christian Science Monitor (www.csmonitor.com) .
Fonte de concorrência
Por incrível que pareça, a grande mola propulsora do crescimento do LUN é a classe média, que segundo a empresa chilena Search, de auditoria de circulação, abandonou em massa os jornais La Segunda Hora e La Tercera, ambos tablóides de variedades. A migração de leitores é explicada numa dissertação de mestrado por Patrício Berrio-Ochoa (http://www.mediatica.cl/html/lun.php) como uma conseqüência dos novos valores culturais surgidos após a ditadura militar chilena. ‘As pessoas não querem mais coisas sérias porque isto, ainda que inconscientemente, continua associado à riscos e ao medo.’
A velha polêmica sobre o papel do público na organização da pauta de um veículo de comunicação ganhou no Las Ultimas uma versão mais sofisticada, mas no fundo mantém o mesmo dilema: cabe ao profissional ou ao leitor a decisão sobre o que será publicado?
Agustin Edwards acha que os cliques são a resposta, embora apenas 30% dos chilenos (4,5 milhões de pessoas) tenham acesso à internet e, deste total, menos de 0,5% visita o site do Las Ultimas Noticias e clica nas matérias de sua preferência.
Muitos jornalistas chilenos mais experimentados duvidam que o sistema dos cliques tenha algo a ver com a excelente performance do jornal nas bancas. Eles acham que o controvertido modelo de organização da pauta funciona melhor como fonte de concorrência entre colegas de redação – e citam como justificativa o fato de a direção do Las Ultimas desejar implantar, em 2005, um sistema de salários também baseado em cliques.
******
Jornalista e pesquisador de mídia eletrônica