Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O iPad e a rendição

Li outro dia, na Folha-papel, crônica do extraordinário Ruy Castro em que ele dizia que apenas o amor paterno o fizera, por fim, entrar em uma loja da Apple para comprar um iPod solicitado pela filha. Acrescentava que havia sido a hora mais angustiante de sua vida. Pois bem, Ruy, sou obrigado a confessar que minha rendição à marca da maçã, embora também tenha algo a ver com amor paterno, se deu para comprar algo para meu uso.

É verdade que, primeiro, meu filho, que poderia ser descrito como sócio-militante da Apple, me deu de presente do Dia dos Pais um iPhone (o 3, que o 4 ainda não havia saído). Gostei, é útil para trabalhar. Mas vicia: dei por mim, uma noite em Londres, durante o jantar, consultando as notícias do dia nas aplicações do telefoninho, em vez de curtir o que a gente chamava de repasto antes dos iQualquerCoisa.

Acontece que, na minha idade, a vista já não enxerga nem tela de 32 polegadas, quanto mais a do telefoninho. Aí, meu filho veio com a pressão para que eu me rendesse ao passo seguinte ao iPhone, que é o iPad. Como, ao contrário do Ruy Castro, que parece detestar esse tipo de engenhocas, sou neutro em relação a elas (nem fanático, nem refratário), topei. Compramos juntos, um para cada um, na loja da Apple em Paris, que fica no subterrâneo do Louvre.

Confesso que o local me intimidou algo, como se estivesse cometendo uma traição a um templo de arte clássica, comprando algo tão tecnológico (ainda não cheguei ao ponto de achar que arte e tecnologia são perfeitamente compatíveis, mas paciência). Aliás, só agora estou me dando conta de que as lojas da Apple também estão se transformando em local de culto. Na de Londres, na Regent Street, fui comprar um complemento qualquer e trombei na porta com três brasileiros que combinavam assim: apenas um deles queria ir à loja e pediu para os outros dois que viessem buscá-lo duas horas depois – ou seja, depois de transcorrida a sua ‘missa’ de consumo.

Dá para ler no banheiro

O iPad, confesso, Ruy, me conquistou, mas, ainda assim, me causa angústia por motivo diferente do seu. Conquistou-me porque descobri rapidamente que, naquele pequeno retângulo de um palmo de altura por algo menos de largura, cabem todos os jornais que eu gostaria de ter tempo de ler todos os dias (da Folha ao Financial Times, do Monde ao Estadão, do Corriere della Sera ao Washington Post mais um montão de etc.), todos os canais de notícias 24 horas (da velha CNN à nova Al Jazira, em inglês, claro), algumas revistas, como a Economist, até a minha rádio favorita, a CBN.

Cabem também livros. Sim, Ruy, livros. No momento, levo dois: Vozes de Israel e da Palestina, livro de uma canadense que me pareceu enviesado demais para o lado palestino, mas, de todo modo, uma boa rememoração dessa área que é meu fascínio permanente; o segundo, que nem abri ainda (livro eletrônico se abre?), trata do Irã depois de Khomeini, a minha fascinação do presente. Por engano, ‘baixei’ também um livro falado, que comecei a ouvir mas não gostei.

Aí é que entra a minha angústia: serei realmente capaz de trair o papel (o papel-jornal, o papel-livro), esse companheiro inseparável dos meus últimos 60 anos de vida, pouco mais ou menos? Tudo bem que dá para ler no banheiro o jornal na telinha do iPad, outro salutar hábito de toda a vida com o papel. Mas fico na dúvida se não se trata, no fundo, de trocar a mulher de toda a vida por uma boneca inflável.

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Repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha