O fenômeno dos weblogs chegou ao jornalismo provocando um debate apaixonado na internet e nas universidades americanas porque afeta vários valores tradicionais da atividade jornalística. O texto que segue é a versão preliminar da apresentação do professor Jay Rosen, diretor da Escola de Jornalismo da Universidade de Nova York, na conferência BloggerCon, marcada para a segundo quinzena de abril, na Universidade Harvard. É o primeiro grande evento acadêmico para debater o futuro do jornalismo na era dos weblogs. O professor Rosen defende teses polêmicas e pretende incorporar ao seu texto observações e correções de leitores. Quem desejar acompanhar a evolução do trabalho pode fazê-lo no weblog do autor (http://journalism.nyu.edu/pubzone/weblogs/pressthink/). A versão final em inglês pode diferir da aqui traduzida porque trabalhamos sobre o texto disponível no dia 31 de março. Foram eliminadas algumas referências a questões muito especificas da realidade americana. (C.C.)
O jornalismo deve ser entendido como uma prática e não como uma profissão. O jornalismo pode ser praticado em qualquer ambiente. Ele existe independentemente dos mecanismos de distribuição. Isto também significa que o jornalismo não é sinônimo, sob qualquer ponto de vista, de ‘mídia’. A mídia, ou a grande mídia como alguns a chamam, não é dona do jornalismo e nem pode usá-lo a seu bel-prazer.
Nem ele é propriedade de nenhum grupo profissional, da mesma forma que os museus e galerias de arte não são os donos das obras expostas. Embora os melhores jornalistas da atualidade sejam profissionais, isto nem sempre foi verdadeiro. Nos tempos de Benjamin Franklin, os gráficos funcionavam como jornalistas. Eles trabalhavam no ponto exato para onde convergia o fluxo das informações, e eles tinham como distribuir as notícias. Os gráficos muitas vezes funcionavam também como agentes do correio.
Se os gráficos e os agentes do correio, que não foram preparados para ser jornalistas, acabaram funcionando como tal, então, em qualquer época, pode-se admitir a possibilidade de pessoas acabarem praticando o jornalismo por considerá-lo uma atividade lógica, prática, significativa, democrática e valiosa.
A prática aberta e a imprensa livre
O jornalismo é uma pratica exigente; e apenas em princípio – um princípio muito importante – pode se exercida por qualquer um ou por cada um. Poderá ser uma grande surpresa para muita gente que os jornalistas nem sempre gostem de ser chamados de profissionais. Muitos não assumem esta posição e discutem quando alguém qualifica o jornalismo como uma profissão. Quando eu me defrontei pela primeira vez como esta atitude, eu não a entendi. Você não encontrará, assistentes sociais, farmacêuticos, dentistas ou professores agarrando você pela camisa para dizer: ‘Nós não somos uma profissão, cara. Sacou?’ Mas no jornalismo você encontra este tipo de argumentação com muita freqüência. Por quê?
Bem, [a resposta] é parte de uma outra reflexão, ainda mais ampla – a da liberdade na imprensa. ‘Jornalismo como profissão’ apenas faz sentido se houver uma habilitação oficial de pessoas como jornalistas. É isto o que uma profissão garante: limita o seu exercício às pessoas qualificadas. A expectativa de confiabilidade pública tem origem nesta divisão entre quem é qualificado e quem não é. ‘Eu sou um professor formado, você pode me confiar seu filho.’
Os jornalistas, algumas vezes, aderem a este tipo de limitação (as credenciais de imprensa, por exemplo) e acreditam que ‘nós somos os profissionais… vocês não são’. Mas o sentimento mais profundo e mais generalizado entre muitos, é o de que o jornalismo deve ser sempre aberto, sem limitações, praticável por qualquer um, qualificado ou não, experiente ou não, porque a limitação da prática apenas às pessoas credenciadas, é, em última análise, um ato hostil à liberdade de imprensa. Por esta razão eles dizem que não integram uma profissão e pedem para não serem identificados como tal.
Os profissionais ditam o padrão
Assim, argumentar que os profissionais não são donos do jornalismo não implica nenhum desrespeito aos profissionais. É simplesmente uma outra forma de promover a imprensa livre, de preservar uma prática democrática e aberta. A verdade é que, as pessoas que vivem do jornalismo, porque são capazes de tirar sua sobrevivência desta atividade, estabeleceram um padrão elevado de excelência na atividade jornalística, e – apesar de todos os problemas – criaram as bases da exatidão nas reportagens.
A capacidade das grandes empresas jornalísticas de identificar o que está sucedendo, de processar e distribuir a notícia para o leitor, minimiza todas as outra alternativas, incluindo, é claro, os weblogs. O orçamento do New York Times para as seções de notícias e de comentários de opinião chega a 180 milhões de dólares anuais, para uma equipe de 1.200 pessoas.
Mesmo totalizando dois milhões de weblogs (e em crescimento) , o universo dos blogs não se equivale em dimensões à uma instituição como o Times, apenas uma das centenas de empresas no negócio do jornalismo. O mundo dos blogs não chega a ser uma instituição, e qualquer que seja a sua força, ela será condicionada por isto.
Minha impressão é de que os jornalistas ‘amadores’, cidadãos e weblogers devem encarar os padrões jornalísticos atuais como sérios, entender as suas exigências e, inclusive imitar os profissionais, de tempos em tempos, quando isto estiver dentro dos objetivos do webloger. Quando não atenderem a estes requisitos, os weblogs serão outra coisa diferente. Na pior dos casos, relações públicas ou propaganda.
É claro que, em nenhum momento, isto quer dizer que devamos recuar na crítica à poderosa instituição da imprensa, ou do ainda mais poderoso complexo, chamado mídia. Mas quando se liberta a prática do jornalismo destes dois elementos, fica fácil falar sobre a atividade e no que ela tem a ver com os weblogs.
A passagem para a esfera pública
Mesmo que apenas uma fração pequena do ‘jornalismo real’ (seja como vocês o definirem) aderir aos weblogs, isto ganha importância por um simples fato: os blogs representam o ingresso na esfera pública. Cidadãos de todas as categorias, que decidem publicar suas idéias em revistas que eles mesmos editam – já há muita delas – podem, a qualquer momento, usar também o caderno de repórter. A primeira coisa que provavelmente atrairá a atenção deles é algum evento que de alguma forma, afete suas vidas, talvez uma reunião do conselho escolar de seu bairro.
É provável o surgimento em massa de correspondentes amadores? Muito improvável. Talvez a sua chance de obter audiência massiva seja nula. Mas é preciso estuda-los de qualquer forma. Os weblogs já estão aí e são uma saída para o oceano da informação localizado. Ao iniciar um blog praticando o jornalismo, eles podem navegar pelos mares abertos da web, e desenvolver o seu próprio rumo dentro do jornalismo.
É o que poderíamos chamar de abertura. É preciso ser muito limitado e cínico para não ver a importância disto. Qualquer ampliação da liberdade humana – o que as pessoas são livres para fazer por si – aumenta o potencial democrático. O weblog, eu creio, é um acréscimo deste tipo ao jornalismo.
Ninguém é dono do jornalismo como prática. Em princípio, todo mundo pode participar. A imprensa não é dona do jornalismo. A grande mídia não é dona da imprensa, porque se fosse, então a Primeira Emenda (que garante a liberdade de expressão nos EUA) também pertenceria a ela. O que não é verdade. Isto sempre foi verdadeiro. Os weblogs não mudam isto. Eles apenas abrem uma saída para o mar. Isto estende o conceito de imprensa para a escrivaninha do quarto de dormir de uma mãe suburbana, quando ela faz o seu blog a noite.
O jornalismo é feito para o público
O jornalismo pode ser comercial, para ganhar dinheiro, ou não comercial, por idealismo. Ele pode ser praticado como de utilidade pública, uma forma de gerar agenda política, ou servir para as pessoas trocar informações e fofocas. Pode ser um ato puramente humano, mas algumas vezes, é claro, visa o poder.
Mas o que mais identifica a prática do jornalismo não é a busca do poder, o lucro ou a própria liberdade de expressão. É a idéia de informar o público sobre eventos em desenvolvimento no mundo. É uma questão interessante saber quantas pessoas são necessárias para criar um público para um weblog político. No entanto, eu não sei se isto tem uma resposta.
Os filósofos divergem entre si se a queda de uma árvore no meio da floresta produz um som, mesmo que ninguém esteja ouvindo. Mas é certo que a árvore caída não será notícia. Ela só ganhará esta condição se atingir uma casa e seres humanos acabarem envolvidos. É aí que o interesse público aparece. Agora sim há noticia. O jornalismo tem algo a ver com fatos que afetam os interesses de grupos interconectados de pessoas, que compartilham este planeta. Estas são as pessoas que eu chamo de público.
Para ser ainda mais detalhado e voltar ainda mais no tempo: Antes de você ter o jornalismo, alguns padrões de comportamento humano devem existir. O tamanho dos grupos sociais deve ser suficientemente grande para que os acontecimentos locais exijam uma dose extra de esforço para serem conhecidos. Comunidades muito reduzidas e fechadas não precisam de muitos jornalistas, talvez nem precisem deles. A vida nestes ambientes é auto-informativa.
A escala moderna e o distanciamento das coisas
Há tempos, eu defini esta situação como o ‘distanciamento’ das coisas. Numa pequena cidade marítima, todo mundo sabe quando um novo navio atraca e não há necessidade de um jornalista para recolher as notícias portuárias. Por sua própria movimentação de negócios, pode-se dizer que a cidade tem as notícias que necessita. Você pode dizer que todo mundo é jornalista neste pequeno porto. Você também pode dizer que ninguém é jornalista, o que provavelmente é mais correto.
Seguindo esta linha de raciocínio, o jornalismo é um fenômeno moderno porque, para existir, ele exige uma organização social em escala moderna. Ocorrências importantes no ‘distanciamento das coisas’ – guerras, por exemplo, ou o crescimento quantitativo da atividade econômica – sempre mobilizam, transformam e desestabilizam o jornalismo. A internet é uma ocorrência bastante grande no ‘distanciamento das coisas’.
Quando alguém afirma que estamos no umbral de uma nova era na mídia cidadã, cedendo à tentação de usar expressões melodramáticas como ‘agora o público tem uma gráfica impressora’, ou ‘todo mundo é um jornalista’, então devemos admitir como evidência, durante nossas discussões na BloggerCon, que estas afirmações falseiam a realidade e superestimam ou desvirtuam os efeitos (até agora) modestos dos weblogs – noutras palavras, não são afirmações verdadeiras.
Mas ao mesmo tempo é útil identificar o lado verdadeiro destas afirmações. ‘Agora cada um pode ser jornalista’ pode ser uma frase idealista ou simples modismo. Mas ela se refere a um fato comprovável: os obstáculos para a entrada (no jornalismo) caíram por terra na web. Monopólios de conhecimento estão acabando aqui e ali. E há efetivamente hoje mais cidadãos jornalistas, por aí, que tem uma gráfica e talvez também um público leitor. Eles estão interagindo mais com a imprensa, criticando-a muito mais. Eles estão usando a sua saída ao mar (da internet).
Algo novo e potencialmente grande
Os mesmos fatores que geram estas inovações, estão ao mesmo tempo escrevendo um novo capítulo na evolução do jornalismo, a prática profissional, através das tecnologias disponíveis. Isto nos conduz às potencialidades dos weblogs, uma tecnologia disponível para o jornalismo, que simultaneamente faz o jornalismo mais ‘disponível’ para os não-jornalistas. A premissa dos debates na BloggerCon é que o formato weblog e seu meio ambiente (geralmente, mas de forma deselegante, chamado de Blogosfera) representam, juntos, algo novo e potencialmente importante para o jornalismo.
Isto é muito diferente do que dizer: a revolução está aí!
O tema central, o filé mignon, da BloggerCon é o debate sobre o que é este novo fator, o quão importante ele pode vir a ser e o que já está mudando no jornalismo em conseqüência dos weblogs. No entanto, a questão mais sensível é porque praticar o jornalismo? Para que ele serve? Qual a relevância dele ser praticado de uma forma ou outra? E porque os weblogers devem se preocupar com a prática ( do jornalismo)?
E espero que um tema não ocupe demasiado espaço nas discussões, porque é demasiado cansativo: Os weblogs são jornalismo? Eu simplesmente não me preocupo com esta questão. Ela é absurda.