Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O meio termo entre o vício e o desprezo

O Jornal de Debates, coordenado pelo jornalista Paulo Markun, propôs recentemente um debate sobre o uso dos computadores. Como me interessei pelo tema resolvi escrever algumas linhas sobre o assunto.

Uma das principais características do aristotelismo é ser a filosofia do meio termo. Para Aristóteles, o meio termo entre o excesso e a carência podia ser chamado de virtude. Assim, a coragem era a virtude entre a temeridade (excesso) e a covardia (carência).

Há algum tempo, tive a oportunidade de fazer uma resenha do livro de Bill Gates da qual destaco o seguinte fragmento:

‘O desenvolvimento da estrada da informação poderia ter uma conseqüência possível que o autor não previu. À medida que a realidade seja substituída pela virtualidade, os problemas sociais não deixarão de existir. Apenas serão esquecidos. Afinal, as pessoas passarão a considerar que a única realidade real é a virtual e assim as desigualdades concretas não terão mais importância ao preço de uma conexão com a rede. De forma que, embriagadas, muitas pessoas poderão passar a vida toda alienadas. Alienadas não por falta, mas paradoxalmente por excesso de informação. Como os marxistas explicarão este novo conceito de alienação?’

Retórica alarmista

O próprio autor adverte que a ‘RV será, sem dúvida, mais envolvente que os videogames, e viciará mais’. E, por falar em vício, ao rememorar seu contato com os computadores na infância, Gates desabafa ‘Eu estava viciado.’ Mais adiante, admite que ‘meu pai viciou quando usou um computador para preparar seu imposto de renda’. A frase que melhor sintetiza esta questão – ‘Se você lhes der uma chance, é quase certo que será fisgado’ – não poderia ser comparada à mensagem subliminar que um traficante envia quando tenta seduzir alguém com as maravilhas proporcionadas pelas drogas?

No ‘admirável mundo novo’ antevisto por Bill Gates, fica parecendo que o soma será o bit. A boa notícia é que o desconforto retratado por Aldous Huxley em seu romance homônimo inexistiria, pois todos saberiam que são realmente desiguais e não se importariam com isto. A má é que este é um mundo realmente possível, enquanto aquele continuará sendo apenas imaginário. Todavia, se não podemos ser otimistas como Pangloss, não devemos ser pessimistas como Martinho. Não julguemos os computadores por alguns bits, nem a realidade através da literatura. Toda inovação causa um certo mal-estar e confesso que o livro deixou-me intelectualmente enjoado. Verdade… Mas estou curtindo este enjôo. Ele é uma boa oportunidade para repensar algumas questões velhas e me aprofundar em outras novas. A verdade é que não tenho o direito de julgar o que ainda não vivi e por isso não vou assustar o leitor usando uma retórica alarmista.’

Simulação pela informática

O tema proposto me fez repensar profundamente a resenha parcialmente transcrita. Confesso, entretanto, que não mudaria uma palavra da mesma. Continuo a pensar sobre os computadores e a internet basicamente da mesma maneira. Até porque o jornalista Leão Serva, em sua obra Jornalismo e Desinformação, concorda com minha tese de que a avalanche de informação pode produzir alienação (fenômeno que ele chama de ‘saturação’).

Não sou um entusiasta irrefletido ou desmedido dos computadores ou da internet. Mas nem por isto adoto uma perspectiva pessimista como Paul Virilio. Também já tive a oportunidade de resenhar uma das obras do teórico francês e também mantenho minhas conclusões. Tomo a liberdade de reproduzir parcialmente apenas a título de ilustração:

‘Paul nega esta relação de continuidade e dependência entre o moderno e o antigo. Por isto se assusta diante do fato de que as telecomunicações proporcionam a inversão na relação chegada/partida. Esta inversão, entretanto, não representa um rompimento com o passado da espécie. Através de rituais propiciatórios, nossos ancestrais procuravam abater mentalmente a caça antes mesmo de iniciar a caçada. A simulação é um componente importante de todas as culturas (primitivas ou modernas). A informática nos permite apenas simular de outra maneira.’

Civilização e barbárie

O Espaço Crítico é um livro alarmista:

‘Se no século 19 a atração cidade/campo esvaziou o espaço agrário de sua substância (cultural e social), no final do século 20 é a vez do espaço urbano perder sua realidade geopolítica em benefício único de sistemas instantâneos de deportação cuja intensidade tecnológica perturba incessantemente as estruturas sociais; deportação de pessoas no remanejamento da produção, do face-a-face humano, do contato urbano para a interface homem/máquina.

Vê-se que o autor acredita piamente que o espaço/tempo instaurado pela era high tech substitui o espaço/tempo real, que é aquele em que os usuários se encontram quando estão diante do computador estudando, surfando ou simplesmente saboreando um hambúrguer diante da tela desligada do computador. A generalização feita por Virilio é, no mínimo, absurda. Ela pressupõe que os usuários ficarão conectados 24 horas por dia na rede, exatamente como os seres humanos que fornecem energia à Matrix no filme de nome análogo. Sua teoria só será verdadeira quando as máquinas forem capazes de satisfazer todas nossas necessidades orgânicas. Felizmente isto não ocorreu e não ocorrerá tão cedo, pelo menos enquanto os seres humanos tiverem corpos orgânicos.

Segundo o analista, as novas tecnologias abolem a dimensão física. Talvez isto seja verdade. Mas a questão não é esta. É outra. Serão elas capazes de abolir a própria física ou as necessidades orgânicas dos seres humanos? A CNN pode realmente criar uma ilusão de inexistência de distâncias, através da transmissão de notícias do mundo inteiro 24 horas por dia. Todavia, Ted Turner não pode me impedir de deixar de prestar atenção no noticiário por causa de meu gato nem me obrigar a levar o televisor ao banheiro.

O contato face-a-face é indispensável para o processo de socialização, segundo Paul. Ele tem razão neste ponto. Só que o contato face-a-face não impediu a coisificação do homem no mundo antigo. Os espartanos não tinham computadores e assim mesmo eles escravizaram ferozmente os hilotas. Roma não tinha servidores de última geração e construiu um império de servidão baseado na violência e na segregação social (romano civilizado sujeito de direitos x bárbaro). Clemente 5 não precisou mandar um e-mail para Felipe, o Belo, a fim de autorizá-lo a queimar os templários. Civilização e barbárie coexistem em toda história da humanidade. Não é um privilégio da era high tech e nem será uma conseqüência necessária da inexistência de contato face-a-face propiciado pela rede de computadores.’

Ajuda de Aristóteles

Meditando profundamente sobre o tema proposto à luz dos fragmentos que transcrevi, creio que podemos adotar uma posição mediana entre o vício (Bill Gates) e o desdém teológico (Virilio).

A explosão populacional do pós-guerra, a intensificação das relações comerciais e bancárias em nível internacional, o aumento da complexidade das relações sociais e a necessidade de mais agilidade estatal diante dos desafios impostos pela complexidade das relações humanas criaram necessidades que os computadores e a internet ajudaram a suprir. Já disseram que toda inovação tecnológica é um caminho sem volta. Nunca este ditado foi tão verdadeiro. Um retorno ao tempo das máquinas de escrever ou da escrituração manual não seria só impossível, seria uma excelente forma de transformar todo o planeta em um imenso campo de concentração onde faltaria tudo, desde alimentos até projéteis para os guardas das cercas. Apesar disto, não podemos alimentar ilusões. Os computadores e a internet podem viciar e o vício é extremamente nocivo e pode até matar, como já ocorreu recentemente.

Mais do que nunca, precisamos de equilíbrio. Não podemos rejeitar as vantagens humanísticas dos computadores e da internet, mas também não precisamos ser tragados pelo vício que as novas tecnologias podem produzir. Por isto mesmo, propus desde o início uma solução aristotélica.

Em razão de propor uma filosofia do meio termo, Aristóteles pode ser uma referência importante para nos ajudar a meditar sobre os computadores e a internet. Mais que isto, o aristotelismo pode nos ajudar a usar de maneira satisfatória e saudável estas duas ferramentas.

Racional e equilibrado

In casu, a virtude residiria em ligar o computador quando necessário e desligá-lo quando seu uso for dispensável; seria virtuosa a atitude do internauta que se conecta na internet com um bom propósito e se desconecta tão logo atingiu seus objetivos. Ficar na frente do computador o dia inteiro ou permanecer conectado várias horas vagando de um website a outro sem necessidade ou propósito, me parece ser um excesso. Abandonar o computador, ou se negar a usar a internet, sem dúvida alguma condena a pessoa ao analfabetismo digital, uma carência que a sociedade certamente saberá discriminar.

O amadurecimento pessoal vem com o uso racional e equilibrado de todas as possibilidades tecnológicas colocadas nas mãos dos seres humanos. O desprezo irracional e teológico por esta ou aquela inovação produz, no máximo, desinformação e preconceito.

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Advogado, Osasco, SP