‘Ironicamente resignados’, como gostava de repetir em suas aulas na FAAP o genial e polêmico filósofo Villen Flusser – mestre de uma geração de jornalistas formados sob o regime da ditadura –, vemos chegar ao fim o debate sobre a questão das armas. Venceu a irracionalidade, a imprensa perdeu e nem se dá conta disso: cega de soberba, ‘soterrada pela avalancha de respostas contraditórias’, ela agora se volta para sua batalha principal, aquela cujo objetivo é demonstrar que todo poder emana da imprensa e em seu nome será exercido. Ou não o será.
Enquanto viveu no Brasil, Flusser foi menosprezado pela imprensa, que, embora publicasse seus artigos com certa regularidade, não o tinha na conta de pensador sério. A Folha de S.Paulo o publicou enquanto o considerava um iconoclasta ‘pós-moderno’, o Estado de S.Paulo o aceitou em suas páginas por suas ironias contra o estatismo, extensão do seu desprezo pela idéia de nacionalismo. Poucos se deram conta de que, na verdade, a ironia do filósofo se estendia com carga mais pesada sobre a mídia, cuja decadência foi um ponto central em suas reflexões sobre o conceito de pós-história. Por essa mesma razão, a imprensa sempre preferiu qualificá-lo como o ‘filósofo das novas tecnologias’. Ironia involuntária.
Aliás, ele disse claramente que, nas redações (ou escritórios) virtuais, a única coisa que sobra do corpo, em relação ao humano, é as pontas dos dedos batendo no teclado, impelindo a si mesmos para uma realidade imaginária. Cada vez mais distante da realidade que se compõe da diversidade do mundo, a imprensa vem semeando nas áreas sob sua influência os fundamentos da irracionalidade. O debate entre o ‘sim’ que era não e o ‘não’ que era sim, quando nem uma nem outra resposta tocava o ponto central do referendo, foi um pedagógico exemplo desse fenômeno. Todo o universo do referendo se tornou irracional, e o mais grave é que essa irracionalidade se apresentava com pretensões a exercício de cidadania.
Irracionalidade na lógica
Sob os olhos complacentes da imprensa, bandidos notórios se colocaram como defensores de direitos fundamentais do ser humano, e pelo menos um personagem cuja biografia é marcada pelo episódio de assassinatos em massa no antigo presídio do Carandiru se arvorou em paradigma das liberdades. Nem uma nota de rodapé para alertar os eleitores sobre certos condicionamentos do debate.
Não se pode dizer que a imprensa tenha economizado esforços para explicar ao público do que se tratava. Ela simplesmente não foi capaz de vislumbrar os efeitos em longo prazo de uma ou outra escolha. Não se referiu a outros episódios em que o poder público criou restrições à escolha dos indivíduos – como no caso da obrigatoriedade de uso do cinto de segurança nos carros –, quando forças respeitáveis da sociedade manifestaram sua oposição ao que chamavam de exagerada intervenção do Estado na vida do cidadão. Hoje, diante dos milhares de vidas protegidas pelo cinto, poucas são as pessoas que negam o acerto da medida.
Ao permanecer na superfície da questão, a imprensa nos privou de um debate sadio sobre a sociedade que queremos construir. Como diz o leitor Tarcísio Cardieri em comentário postado neste Observatório na edição passada, tratava-se de dizermos se queremos ou não desenvolver, no futuro, uma cultura de paz. O que o referendo mostrou é que, mesmo quando deseja estabelecer um padrão aceitável em sua interlocução com o público, a imprensa já não consegue manter sua mensagem entre paradigmas aceitáveis de razoabilidade, ou seja, ela produz irracionalidade mesmo quando busca estabelecer uma lógica no seu discurso.
Simplismo nas complexidades
Tem sido diferente o caso dos escândalos políticos deste semestre. Ao estabelecer propositadamente um ambiente irracional para a questão da corrupção, a imprensa aposta no pendor natural das massas para aceitar a estupidez bem organizada. A antiga lei de Linch, nos Estados Unidos, que ainda vale nas periferias das grandes cidades brasileiras, é apenas um estatuto dessa perversão coletiva. O filósofo espanhol Ortega y Gasset, citado por cem entre cada centena de articulistas conservadores, já alertava, em ‘A Rebelião das Massas’, para os riscos desse processo, e mesmo notórios fascistas o levam em conta quando querem sublinhar a incapacidade do povo para governar seu próprio destino.
Observe-se que o episódio do referendo foi uma avant-première do que veremos na campanha eleitoral de 2006. Se até aqui a imprensa procurou manipular o veneno para dar aos fatos da política um padrão de densa gravidade sem contaminar a economia, os novos níveis de irracionalidade inaugurados no processo do referendo deverão estender os riscos de instabilidade e diminuir as chances de um debate esclarecedor sobre nossas mazelas institucionais.
Quando, conscientemente ou por suas limitações, a imprensa manipula o simplismo para tratar de complexidades e, assim, manter sob controle certas variáveis do noticiário, ela está investindo no mercado da irracionalidade, onde predominam commodities do emocionalismo e das meias-verdades. O problema é que no mercado da irracionalidade não floresce a fidelidade, e todo jornal, revista ou emissora de rádio ou TV precisa de leitores ou de uma audiência fiel e repetitiva. Se continuar apostando na irracionalidade contra a inteligência, a mídia estará comprometendo seu próprio futuro.
******
Jornalista