Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

‘O PC morreu e ninguém percebeu’

O escritor norte-americano Bruce Sterling esteve no Brasil na semana passada e foi entrevistado pelo ‘Link’.

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Na retrospectiva que estamos fazendo no ‘Link’, elegemos três assuntos com os principais temas de 2010: Facebook, geolocalização e aplicativos. Você concorda com a escolha? O que estas três tendências têm em comum?

Bruce Sterling – O que há de importante sobre essas três coisas é que nenhuma delas precisa do sistema operacional da Microsoft. Por um bom tempo, ter um computador dizia respeito apenas ao sistema operacional e ao processador. E o Windows criou uma simbiose com fabricantes de chip: lançava um sistema operacional logo que um processador mais rápido chegava ao mercado. E isso tornou-se sufocante, não havia mais nenhum entusiasmo. E até a Microsoft teve um hit neste ano, com seu dispositivo de detecção de movimento, como é o nome mesmo…

Kinect.

B.S. – Kinect! Kinect é o aparelho eletrônico doméstico que mais vendeu em todos os tempos – e está vendendo duas vezes mais rápido do que o ex-detentor desse título, que era o iPad. E o que há em comum entre Kinect e iPad? Eles não têm nada a ver com os velhos computadores. Quando coisas assim aparecem, eu procuro o que morreu. Se as pessoas estão olhando para aplicativos, geolocalização e redes sociais, em que elas pararam de prestar atenção? O computador pessoal morreu neste ano e ninguém percebeu. Qual é a definição de computação pessoal: eu tenho um computador e ele é meu e tem todas as minhas coisas! Se você oferecer um desses para alguém hoje, um computador em que você não pode entrar na internet, nem compartilhar nada, que só serve para processar dados e, sei lá, editar filmes… Mesmo que ele seja ótimo, ninguém vai querer! Talvez se você pagasse, alguém teria o computador verdadeiramente pessoal.

Você definiu o Facebook como uma favela…

B.S. – Sim, como as favelas brasileiras, devido à organização política. Ninguém imaginava que ele cresceria tanto, que funcionaria desse jeito, não há um modelo de negócios e ele está crescendo cada vez mais, só no boca-a-boca. Não tem outdoor, programa de TV…

Há o filme.

B.S. – É, mas o filme não vai fazer ninguém entrar no Facebook. E, principalmente, o Facebook é gerido por um moleque de 26 anos que age como… um cacique (fala em português). É estranha essa estrutura tão grande online, mas ela não é tão incomum se você pensa em termos de cidades, daí a comparação com favelas e metrópoles do terceiro mundo, que crescem sem planejamento.

Então, de certa forma, o mundo está mais terceiro-mundista?

B.S. – Não sei se terceiro-mundista, pois há favelas no mundo todo. A internet cresceu de forma muito rápida e usa estruturas muito próximas às de casas de lata – junta o que tem à mão, coloca tudo no mesmo lugar e vê se funciona. Se não funcionar, começa do zero. Tudo é beta o tempo todo, o novo é construído sobre o velho, não importa se vai aguentar o peso, se haverá deslizamentos, spam, pornografia, pirataria. Tudo o que você quiser está lá. De vez em quando tem uma batida policial, ‘vamos derrubar os serviços de compartilhamento de arquivos’. Talvez alguém vá preso, mas quando a polícia vai embora, tudo volta a ser como era. Cada um usa a internet como achar melhor, por isso há uma estrutura semelhante à de uma favela. Não é uma favela literal, mas uma favela cultural.

E como a estrutura do digital afeta o resto do mundo?

B.S. – Hoje essas estruturas são simbióticas, não somos mais inocentes como éramos antes. O que acontece no mundo digital tem consequências ainda mais graves no mundo real do que antes. Um dos temas deste evento que me trouxe ao Brasil (o festival Arte.mov) é a relação entre arte eletrônica e contexto urbano. Veja um exemplo: pergunte a um jovem, entre 18 e 25, se ele prefere um carro ou estar no Facebook. São escolhas excludentes, quem tiver um carro não entra no Facebook e vice-versa. Tenho quase certeza de que ele escolherá o Facebook. Carros serviam para ir até onde as garotas estavam. Agora basta ir ao Facebook. Além disso, as pessoas estão deixando de gostar de carros pois não dá para usar aparelhos eletrônicos enquanto se dirige. É melhor ir de ônibus usando seu iPhone ou iPad, pois você consegue fazer mais coisas no tempo de locomoção. Essa é uma mudança enorme. Meu amigo Adam Greenfield disse há dois anos que o dispositivos portáteis mudariam mais a cidade do que os carros mudaram. E os carros mudaram as cidades de forma profunda. Quando eu ouvi isso, pensei que era um hype forçado. Mas hoje vejo que ele estava certo.

Isso vai acontecer rápido?

B.S. – Depende. Talvez baste uma grande crise, seja em energia, combustíveis, exportações, não importa, para as pessoas, preferirem redes sociais a carros. E eu acho que há uma tendência que é o consumo colaborativo: vamos compartilhar objetos físicos via redes sociais. Por exemplo, eu quero pegar um carro, encontro alguém disposto a emprestá-lo, acho o carro no Google Maps, vou até ele e mando, via celular, uma mensagem que destrava porta. Ando uma hora com o carro, estaciono onde for e vou embora.

As pessoas vão sair mais de casa e ficar menos tempo vidradas no computador?

B.S. – Eu gostaria de dizer que sim, mas não acho que isso vá acontecer. As pessoas se reúnem fora de casa para eventos em que vão assistir a alguma apresentação de conteúdo, como um debate político ou um show. Mas essas apresentações têm o formato de mídia antigo, em que poucas pessoas falam para muitas ao mesmo tempo. E os dispositivos portáteis militam contra isso. Já há casos de pessoas que não conseguem assistir a um filme de duas horas sem mandar um SMS. Quer dizer, vai ser cada vez mais complicado para as multidões se verem como grupo. Mas, certamente, as pessoas sairão das mesas, já que você não precisa de um monte de cabos. Haverá menos dores na coluna pelo simples fato de não ser mais preciso ficar sentado.

Outra grande tendência de 2010 foi a divisão da internet em espaços fechados, sem comunicação entre si, como Facebook, Google, as redes iTunes e a PlayStation Network. Tim Berners-Lee acabou de escrever um artigo para a revista Scientific American em que mostra como essas redes fechadas podem acabar com a natureza livre da internet.

B.S. – Google, Facebook e Apple querem criar silos verticais que unam seus amigos, seus dados, seus contatos, o algoritmo do seu coração, o que for, como se fossem coisas que pudesse ficar isoladas umas das outras. Embora eu reconheça que essas iniciativas realmente ameaçam a liberdade da web, por outro lado, eu acho que elas são muito frágeis. Não é preciso muito para acabar com a Microsoft. A própria Apple, que já morreu em outra oportunidade, é basicamente o Steve Jobs. Se ele morrer, ela morre junto. Acho que o Google é quem pode sobreviver por mais tempo, mas, mesmo assim, são só dois ex-estudantes esquisitos de Stanford. Se você for um ditador de um país qualquer e estiver com raiva do Google, basta matá-los. Veja Bill Gates. Você acha que ele queria destruir a Microsoft quando saiu? Ele só ficou entediado e preferiu ir curar a malária. É um tipo de idealismo de poetas, pintores, artistas. E não é só Gates que é assim, todos eles são assim.

Você esteve no Brasil há dez anos e agora está de volta. O que mudou?

B.S. – O país tem crescido muito e ganhou importância. Mas, principalmente, a população é muito jovem. Estamos vendo, especialmente na Europa, o lado sinistro de ter uma população velha. Ninguém faz nada novo. A Europa perdeu a capacidade de esquecer. O Brasil é o oposto. Ninguém olha para trás, o que é saudável. Claro que é bom conhecer sua história, mas é muito ruim ficar preso apenas a ela. Fora que esta é a geração mais conectada e mais culta do país, não no sentido da educação formal, mas de saber o que está acontecendo. E parece ter medo de arriscar.

E em termos de cultura digital brasileira?

B.S. – Eu não gosto do tecnobrega. Parecem umas crianças brincando no quintal. Tudo bem, tem o lado pirata, de reciclar músicas para criar músicas novas, mas isso não é muito diferente de roubar eletricidade da rede pública. Adoraria dizer que a aproximação do então ministro Gilberto Gil com a cultura do software livre irá solucionar os problemas do Brasil, mas isso não vai acontecer.