Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O que vocês estão olhando?

Não tem escapatória. Onde quer que aterrisse, o Google Street View sempre deixa um rastro de polêmica a respeito do direito à privacidade. Para quem ainda não ouviu falar, trata-se de um serviço de mapas do Google que oferece vistas reais das ruas e avenidas de uma porção de cidades. Acabou de chegar ao Brasil. Funciona como se a gente, sentado diante da tela do computador, movendo só o dedo indicador sobre o mouse, pudesse caminhar pela Champs-Elysées, Quinta Avenida, Piazza Navona ou Praça da Sé.

A mágica é possível porque um carro-fotógrafo esquadrinha esses lugares por quase todos os ângulos. Ele leva no teto nove câmeras que captam cenas em 360º na horizontal e 280º na vertical. Ao mesmo tempo, ‘um GPS marca as imagens para que o computador identifique onde é o local’, detalha o Google. Tudo é jogado num software e voilá: as fotos se juntam para dar a sensação de que são uma só, proporcionando a ilusão de estarmos de fato naquele lugar, podendo ‘andar’ e ver tudo ao redor.

É divertido? Sem dúvida. Infringe a lei? Há controvérsias. ‘Se a rua é um local público por definição, é óbvio que a equipe do Google tem o direito de ver as pessoas que por lá passam, e talvez até de fotografá-las’, diz Túlio Vianna, professor de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, estudioso do tema. ‘Mas o direito à publicação dessas imagens é no mínimo discutível’, completa Vianna, autor de Transparência Pública, Opacidade Privada, no qual discute a disseminação das câmeras de segurança – aquelas do ‘sorria, você está sendo filmado’.

O problema do Google Street View é que ele aciona sua metralhadora fotográfica indiscriminadamente e sem trégua. Não poupa nada nem ninguém. É um rolo compressor imagético. Seu carro está estacionado na frente de uma sauna gay e você não gostaria que isso se tornasse público? Azar o seu. Você está fazendo xixi ao lado da banca de jornal e agora a sua namorada quer te largar? Azar o seu. Ou você simplesmente se incomoda de ter seus passos seguidos sem o seu conhecimento ou autorização? Azar o seu. É como estar dentro de uma vitrine, de calças arreadas: todos vão te ver, e não dá pra correr. No máximo, você pode protestar de maneira debochada, como muitos fizeram: mostrando o dedo médio ou as nádegas às câmeras. O Google diz que retira do ar as imagens de quem solicitar. E, de antemão, borra o rosto das pessoas e das placas dos carros flagrados, para impossibilitar a exata identificação.

Na entrevista a seguir, Vianna explica se, legalmente, isso é suficiente e fala sobre o direito de ficarmos a sós na era dos Google Street Views, Twitters, Facebooks.

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O que o Google Street View faz é invasão de privacidade?

Túlio Vianna – A Constituição brasileira estabelece que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Mas ainda não temos leis ordinárias esclarecendo os limites precisos de cada um desses conceitos. Em meu livro defendo que o direito à privacidade deve ser escalonado em três níveis: direito de não ser monitorado (visto/ouvido), direito de não ter seus dados registrados (foto/gravação) e direito de não ter esses dados publicados (jornais, internet, TV). Numa praia de nudismo os frequentadores abrem mão do direito de não ser visto, mas o direito de não ser fotografado e de não ter suas fotos publicadas subsistem. Então, se a rua é um local público por definição, é óbvio que a equipe do Google tem o direito de ver as pessoas que por lá passam e, talvez até de fotografá-las, mas o direito à publicação dessas imagens, que às vezes individualizam determinadas pessoas em situações constrangedoras, é no mínimo bastante discutível.

No que o Google Street View difere das câmeras de segurança que nos vigiam dia e noite, em todo lugar?

T. V. – Ele se limita a fotografar cenas urbanas, não se trata de uma vigilância constante em tempo real. As câmeras de segurança, por outro lado, nos filmam não só nas ruas, mas em lojas, edifícios e em outros locais privados de acesso público, sob o pretexto de controle da criminalidade. Em Vigiar e Punir, Michel Foucault dedicou-se a analisar o panóptico como modelo de prisão no qual um único carcereiro vigiava a partir de uma torre central um número grande de presos dispostos em celas a sua volta. Essa vigilância constante tinha por fim induzir nos presos um comportamento desejado. Hoje não é mais necessário cometer um crime e ser preso para sentir os efeitos da vigilância constante. Vigiam-se a todos por antecipação, como se todos fossem suspeitos de crimes até que se prove o contrário. E isso é terrível. Manifestações políticas e greves, por exemplo, são feitas nas ruas. A simples vigilância desses espaços pode inibir que muitos se manifestem com medo de represálias da parte de quem assistisse às imagens. As câmeras de vigilância são um atentado às liberdades individuais muito mais grave do que o Google Street View.

Mas a preocupação quase obsessiva com a segurança não é legítima?

T. V. – A questão é qual o preço que as pessoas estão dispostas a pagar por ela. A história nos ensina que o principal argumento dos regimes totalitários para retirar direitos fundamentais de seus cidadãos é a defesa da sociedade contra algum perigo. Crie medo em um povo e ele cederá boa parte de seus direitos em prol de segurança. Pouca gente se pergunta se as câmeras nas ruas, de fato, inibem o crime. Muitos crimes que antes eram praticados num local onde hoje há câmeras simplesmente mudaram de endereço para locais sem câmera.

O Google retira do ar as imagens de quem se sentir incomodado. Isso é suficiente?

T. V. – Muitos direitos fundamentais são violados porque, para a maioria das pessoas, um processo judicial é muito custoso. Em termos econômicos e de tempo que o interessado deverá se dedicar a fazer valer o seu direito. O Ministério Público tem entre suas atribuições constitucionais justamente velar por esses direitos difusos e caberia a ele provocar o Judiciário sobre a constitucionalidade desses diversos tipos de vigilância. Infelizmente, o direito constitucional relativo à privacidade vem sendo menosprezado como um direito menor. Muitos insistem no velho bordão do ‘quem não deve não teme’, pois se esquecem que a história está repleta de exemplos de povos e indivíduos que nada deviam e muito tiveram a temer. É só ver o drama dos judeus na Alemanha nazista. No Brasil, só agora começamos a ter uma percepção mais apurada da importância de alguns desses direitos e de muitos outros que ainda não nos parecem relevantes a ponto de merecer uma tutela legal. Mas, como dizia Drummond, os lírios não nascem das leis. Então as leis não bastam, é preciso um Ministério Público forte e combativo e um Judiciário que reconheça na prática o status constitucional desses direitos.

A internet nos conduz à era da privacidade zero? Não teremos mais o direito de ficar sozinhos?

T. V. – A privacidade há muito não é um mero direito de estar só. É mais o direito de não ser visto, fotografado e exposto. Se, de fato, a internet une as pessoas em rede, ela não lhes tira o direito de não ser monitorado ou registrado e nem mesmo o de não ter suas informações publicadas. O que ela cria é uma facilidade imensa de se publicar dados pessoais, e esse é o ponto crítico. Os nazistas separavam os judeus dos não judeus com alto grau de precisão a partir de informações colhidas nos censos. Um censo exige um trabalho hercúleo e tem um custo alto para ser feito com frequência. Hoje, a maioria das informações estão disponíveis em redes sociais. E essas informações que antes ficavam custodiadas pelo Estado agora estão dispersas nos bancos de dados de empresas privadas. Talvez a maioria delas só pretenda utilizá-las para fins publicitários atualmente, mas, no futuro, talvez resolvam utilizá-las na seleção de recursos humanos ou sabe-se lá para que mais.

Temos como nos defender?

T. V. – Precisamos de leis que garantam a transparência sobre nossos dados pessoais armazenados em bancos de dados de empresas. Hoje elas sabem muito sobre nós, mas nós não sabemos sequer quais das nossas informações pessoais elas possuem, e pior, se são informações corretas. Se uma empresa tem meus dados pessoais seria razoável que eu pudesse acessá-los na internet, atualizá-los ou mesmo apagá-los no momento em que julgasse adequado. Além do mais, muitas empresas comercializam seus bancos de dados, criando um verdadeiro mercado de informações pessoais. São práticas lesivas aos consumidores, bombardeados não só por correspondências pelo correio físico e eletrônico, mas por telefonemas inoportunos que tomam tempo e sossego de quem, na maioria das vezes, não tem interesse no produto e jamais informou seus dados àquelas empresas.

Em 1984, Orwell previu um mundo sem privacidade, mas os governos seriam os responsáveis pela vigilância total. Esse futuro chegou diferente, com as pessoas destruindo a própria privacidade?

T. V. – A distopia de Orwell não se concretizou, pois o mundo ocidental está consolidando suas democracias. A ameaça do Big Brother, porém, parece ter sido substituída por uma série de Little Brothers, que são as empresas privadas com suas redes sociais na internet e suas câmeras nos shopping centers. Parte dessa privacidade, de fato, é cedida espontaneamente, mas as câmeras de vigilância, os bancos de dados das administradoras de cartão de crédito e dos planos de saúde tomam informações muito mais sensíveis que qualquer outra cedida livremente pelo usuário. Hoje há sistemas capazes de reconhecer faces no meio de uma multidão comparando-as com fotografias previamente armazenadas. Talvez em um futuro não muito distante entremos em um shopping e a câmera de segurança registre nossa imagem para, alguns metros a frente, um anúncio nos chamar pelo nosso nome nos oferecer o volume 2 de um livro cujo primeiro volume havíamos adquirido. Ou, muito pior, o segurança nos peça para deixar o shopping, pois o banco de dados do plano de saúde os informou de um resultado positivo para um exame médico que detecta uma doença infecto-contagiosa.

Recentemente, um jovem homossexual se suicidou nos Estados Unidos depois que seu colega de quarto na universidade o filmou às escondidas num encontro amoroso e colocou o vídeo na internet. Que lição podemos aprender com uma tragédia dessas?

T. V. – A popularização das câmeras de celulares é uma ameaça muito maior à privacidade do que a internet. Culturalmente teremos que aprender a lidar com isso. Quando inventaram a máquina fotográfica, era de boa educação pedir licença ao se fotografar um desconhecido. Não é razoável admitir que um casal tenha a janela de seu quarto escancarada para satisfazer a curiosidade dos que passam pela rua sem que isso acarrete aos responsáveis a obrigação de pagar uma indenização em dinheiro aos prejudicados.

Essa invasão de privacidade via internet tem a ver com um certo voyeurismo?

T. V. – É natural que, em uma sociedade em que tantos expõem detalhes sobre suas vidas pessoais na internet, aqueles que relutem em fazê-lo sejam objeto da curiosidade pública. Para muitas celebridades isso é um drama, pois seus mundos acabam se tornando uma imensa prisão panóptica. Há, porém, celebridades que se aproveitam desse voyeurismo público para criar simulacros de invasão de privacidade. Vazam fotos de sua vida privada para a mídia, criando a sensação de que as imagens foram obtidas clandestinamente. É a invasão de privacidade autorizada – uma espécie de café descafeinado da indústria de celebridades.

Existe entre os usuários do Facebook e do Twitter um desejo de se tornar célebre?

T. V. – Muita gente almeja ficar famoso a partir do Twitter, o que é bastante ilusório. Mas em busca de reconhecimento público alguns optam pela manifestação de pensamentos, o que é bastante positivo, pois favorece o debate democrático. Outros acabam expondo detalhes de sua vida pessoal na esperança de conquistar um público. Reproduzem em um nível pessoal o zoológico humano que a mídia de massa criou nos reality shows. Em uma palavra: objetificam-se. Abandonam a pretensão de serem sujeitos produtores de informação para exercerem o papel de objeto da curiosidade alheia.

Faz sentido uma pessoa se queixar de ter sua privacidade invadida pelo Google Street View, mas ao mesmo tempo expor sua vida no Facebook ou no Orkut?

T. V. – Sim, faz, pois são violações de privacidade em esferas diferentes. O mesmo indivíduo que se sentiu incomodado ao ver suas fotos saindo de uma sex shop com uma sacola na mão pode não ter nenhuma restrição em expor suas preferências religiosas e políticas em redes sociais. Cada pessoa tem o direito de optar sobre quais informações pessoais deseja tornar públicas e quais prefere manter guardadas. Entre essas três ferramentas, o Google Street View me parece o mais invasivo, pois é o único que expõe informações pessoais sem a autorização expressa do interessado.

Bobagem minha, mas tenho certa implicância com os termos do Twitter, ‘seguidos’ e ‘seguidores’. São os mesmos que usamos para falar de seitas…

T. V. – Estamos muito longe de algo parecido com uma seita no Twitter. É ilusório acreditar que todos que ‘seguem’ alguém concordem com os posicionamentos do ‘seguido’. O que se vê é o contrário: pessoas seguindo outras com o intuito de discordar e criticar. A própria arquitetura da rede social dificulta a formação de hierarquia. Todos são seguidos e seguidores. Claro que alguns se destacam e acabam tendo um número grande de seguidores, mas eu não apostaria que eles sejam propriamente fiéis. Estão mais para companheiros de viagem.

Como o sr. reagiria se fosse fotografado pelo Google Street View?

T. V. – Se saísse bem na foto, divulgaria o link no Twitter e no Facebook. Se saísse mal, talvez processasse o Google para conhecermos a posição do STF sobre os limites do nosso direito à privacidade.