O sociólogo francês Dominique Wolton tem o hábito de nadar contra a corrente. Quando a regra entre teóricos da comunicação, inspirados sobretudo pela célebre Escola de Frankfurt, eram os ataques generalizados à indústria cultural, televisão em particular, Wolton buscou demonstrar que justamente esses veículos de comunicação que marcaram o século XX proporcionavam um meio de interação para as sociedades nacionais. Hoje, porém, a internet e as redes sociais parecem, aos olhos da maioria dos analistas, oferecer o caminho para aperfeiçoar a comunicação tanto ao redor do mundo quanto em pequenas comunidades localizadas. Mas o sociólogo discorda profundamente, enxergando nas tecnologias contemporâneas de comunicação uma ilusão de contato que, na verdade, fecha cada um sobre si mesmo. Para Wolton, em resumo, a internet é ‘o Titanic da cibercultura’.
Especialista em comunicação e fundador do primeiro laboratório dedicado ao tema no Centro Nacional de Pesquisa Científica francês (CNRS) – o Instituto de Ciências da Comunicação –, o sociólogo rejeita a associação imediata das noções de comunicação e informação. A comunicação, para ele, envolve relações entre pessoas, e por isso tem implicações políticas, sociais e culturais que vão muito além da informação.
Seu livro mais recente, Informar não É Comunicar (Sulina), trata dessas questões centrais da ‘era da informação’. O problema da internet, na concepção de Wolton, é que se trata de uma ferramenta alvo de uma idolatria até então não verificada em relação a nenhuma tecnologia de comunicação. Enquanto a televisão e o rádio foram sempre encarados como instrumentos nas mãos de grupos poderosos, sejam Estados ou corporações multinacionais, ninguém é capaz de enxergar por trás da internet a atuação dessas mesmas entidades.
‘Fizeram da internet uma panaceia. Criou-se essa ilusão de que ela seria portadora de liberdade, criatividade, proximidade para todos. Nunca é dito nada de negativo sobre a internet. Quando alguém ousa lançar uma ressalva, é logo tachado de reacionário, antiquado e assim por diante’, afirma Dominique Wolton, durante entrevista concedida em São Paulo.
Excesso de informação
O que cega as pessoas ao redor do mundo para o aspecto não tão revolucionário da internet – aquilo que Wolton denomina a ‘não revolução da cibercultura’ – é uma ‘ideologia técnica’ que vem ganhando terreno sobretudo nos últimos 30 anos. Por meio dessa ideologia, aflora uma convicção de que a evolução do desempenho dos chips e aparelhos associados, como telefones, celulares, computadores, cartões e quetais, é fonte de ganhos na vida social e na capacidade comunicativa de todos.
Mas essa convicção, argumenta Wolton, é ingênua e equivocada. A potência técnica traz mais dados, mais acessos, mais contatos. Mas os dados não são conhecimentos, os acessos não são entradas e os contatos não são comunicação. Para demonstrar sua tese, o sociólogo propõe uma grande greve tecnológica: abdicar temporariamente dos e-mails, dos telefones celulares e, ‘sobretudo’, das fotografias com aparelhos digitais. Uma volta aos filmes fotográficos, exemplifica Wolton, obrigaria o fotógrafo – principalmente o amador – a enxergar o valor de cada imagem que faça, porque ela tem um preço e a quantidade é bastante limitada. Seria necessário olhar antes de apertar o botão do obturador: o olhar é comunicação, o botão não é.
Nesse sentido, o sociólogo descreve o universo da internet no livro Internet, e Depois (Sulina) como ao mesmo tempo o auge e a sepultura dessa ideologia técnica. Por que sepultura? Porque ‘essa onipotência que se tem enxergado na internet, a partir de um certo ponto, terá de refluir necessariamente. Jamais voltaremos a ter uma ideia tão poderosa da ideologia técnica, ao menos não no campo da tecnologia de comunicação. São os excessos da ideologia tecnológica que a tornam insustentável em seu estado atual de euforia’.
A briga de Wolton não é com a internet em si, naturalmente, mas com a concepção de globalização que ela carrega consigo. Em um artigo, ele escreve que ‘mesmo se a informação dá a volta ao mundo, é em menos de 100 quilômetros que a realidade muda’. Com isso, a circulação descontrolada de informações por meio dos cabos e satélites da rede mundial acaba enfraquecendo a possibilidade real que as pessoas têm de agir. E essa possibilidade é a ação local, por meio da comunicação entre gente que se conhece e tem uma base comum de cultura histórica, linguística e social. Confrontado com o mantra da modernidade cibernética, o ‘pense global, aja local’, Wolton deixa abertas as possibilidades. ‘O que temo é que a visão menos otimista, em que se perde com a globalização a própria ideia de globalizar, impeça que acreditemos na possibilidade de agir localmente.’
Trata-se de verificar se a velocidade da globalização, que se manifesta numa enxurrada de dados e informações capaz de soterrar uma pessoa, permite às populações desenvolver uma compreensão própria do mundo ou não. Essa é a vantagem da televisão, aos olhos de Wolton.
Identidade e diferença
No tempo em que as sociedades dependiam dela para se informar, por mais que as notícias fossem manipuladas e influenciadas por interesses econômicos e políticos, havia uma base comum a partir da qual cada um poderia tirar suas conclusões para, em seguida, discutir com os vizinhos. Havia espaço para a unidade cultural, mas também para o dissenso. Na cultura técnica, cujo apogeu é a internet, segundo Wolton, as sociedades abdicaram dessa base comum e cada um guarda suas convicções em isolamento, porque recebe apenas as informações que deseja, quando e como deseja.
Mesmo assim, não se pode dizer que a internet esteja mais livre das influências políticas e econômicas que eram tão claras nos grandes meios de comunicação de massa – jornais, internet, rádio. ‘A circulação da informação na internet já é também manipulada, como sempre foi, por interesses poderosos, econômicos e políticos. As questões com que vai se confrontar são as mesmas que já enfrentaram a televisão e o rádio.’
Wolton ressalta que os lados político e econômico do poder são indissociáveis – ‘quando agem forças econômicas também agem forças políticas, e quando agem forças políticas também são forças econômicas’. Mas observa que um poder econômico absoluto, ou seja, a dominação de um mercado, é concebível, mas um poder político absoluto sobre a comunicação fica, se tanto, no campo do potencial. ‘Os monopólios não podem fazer tudo o que querem. Eles frequentemente creem que podem controlar o país porque puxam as cordinhas, mas isso não é verdade. As pessoas são cada vez mais independentes do que dizemos a elas. Não basta ter duas rádios, três canais de televisão e uma infinidade de jornais para controlar o público.’
Se a cultura da internet é uma das faces da globalização, aponta Wolton, então ela deve estar também sujeita às mesmas forças e aos mesmos problemas da globalização como um todo. O Brasil é um grande exemplo dos conflitos que podem surgir de determinadas tendências da globalização – aquelas que isolam, em vez de aproximar. No mundo todo, é possível observar uma expansão das iniciativas que erguem muros entre a identidade (o ‘nós’) e a diferença (‘os outros’). Na própria França de Wolton, o governo Sarkozy endureceu progressivamente a política de imigração, até o ápice que foi a recente expulsão de ciganos do país.
Saída pela arte
Dois outros exemplos são os muros erguidos nas fronteiras dos Estados Unidos com o México e de Israel com a Palestina, que revelam fisicamente a vontade de marcar um território e um universo de exclusão da alteridade. Finalmente, o ataque de militantes terroristas no Iraque a igrejas cristãs coptas do país revela o nível de violência a que pode chegar uma globalização que sublinha as identidades e, com elas, as diferenças.
O que tem o caso brasileiro de especial? Para Wolton, o país tem a tradição de ser a terra onde pode haver comunicação entre diferentes etnias, diferentes religiões, diferentes classes sociais. Essa comunicação não exclui, naturalmente, a existência dolorosa da dominação, da violência, da segregação e da injustiça. Mas os espaços de encontro, de contato e de confronto sempre existiram e obrigaram a que se estabelecessem formas de comunicação. Por mais desigual que fosse essa comunicação, ela sempre pareceu, aos olhos de Wolton, mais democrática do que a existente na Europa e em quase qualquer outro lugar do mundo.
Mesmo assim, o Brasil não escapa ‘a essa tendência à segmentação e ao comunitarismo através da segurança, de tal maneira que os ricos fiquem juntos, os pobres também, cada um em seu canto’. Essa tendência se manifesta nas grandes cidades do país por meio de carros blindados, cercas elétricas e seguranças armados. O perigo é a formação de uma sociedade ‘em dois tempos’, com duas velocidades. Um país dividido não geograficamente, como se chegou a cogitar depois das últimas eleições, mas socialmente e comunicativamente. Em outras palavras, ‘o multiculturalismo brasileiro talvez esteja diante de uma ‘escola de realidade’. Ou bem o país resiste a essa luta ferrenha pela segurança ou entra numa estrutura de uns contra os outros, e nesse caso é toda a unidade nacional que é posta em risco. Essa unidade é vital, mas muito frágil’, adverte o sociólogo.
É preciso achar uma saída para essa globalização que desumaniza e bloqueia toda possibilidade de comunicação verdadeira. Wolton estima, em ‘É Preciso Salvar a Comunicação’ (Paulus, 2006), que os conceitos de informação e comunicação só poderão se reconciliar numa outra onda de globalização, em que as populações se darão conta da necessidade de voltar a comunicar. Há duas maneiras de isso acontecer. A otimista seria uma ação política de regulamentação e, em particular, de desconcentração do poder econômico e político das mídias.
Mas se essa ação política não ocorrer – e Wolton não a vê ocorrendo –, será preciso encontrar uma saída pela arte. ‘Não dá para aniquilar completamente a criatividade e a comunicação do homem. Um dia, haverá um poeta, um cantor, um filósofo, alguém que diga: ‘Chega, basta!’ Enfim, qualquer coisa, um homem ou uma mulher perfeitamente comum.’ Porém, se o grande sofrimento de todos os poetas raramente reverbera, o que se vê atualmente não permite imaginar um tal engajamento. ‘Por enquanto, as pessoas parecem estar mesmo é fascinadas. Elas não se dão conta de que os simulacros de comunicação não servem para nada.’
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Wikileaks leva à revisão de valores
O impacto das novas tecnologias sobre o universo da comunicação é difícil de ser medido. Pode, porém, ser estimado por fenômenos como o Wikileaks, que nesta semana provocou protestos de governantes ao redor do mundo, após iniciar a publicação na rede de 250 mil documentos diplomáticos secretos dos Estados Unidos. A dureza das reações, que chegam às ameaças de prisão e sugestões de censura, demonstram que as facilidades de interação oferecidas pela internet põem em xeque a política tradicional.
A diversidade das reações denota perplexidade entre atores geopolíticos. O Ministério italiano das Relações Exteriores classificou o vazamento como um ’11 de Setembro diplomático’. Mahmoud Ahmadinejad declarou que tudo não passa de um golpe estratégico do próprio governo dos EUA. O governo russo enxerga uma conspiração para desestabilizar o presidente Barack Obama. Na segunda-feira, Hillary Clinton afirmou que Wikileaks é um ‘ataque ao mundo’.
Assédio sexual
A expressão escolhida por Hillary é reveladora. A perspectiva de que se extirpe o segredo do cotidiano político parece comprometer a própria existência desse universo. Relações internacionais transparentes parecem uma utopia à primeira vista, mas um olhar mais próximo as revela distópicas. Decisões governamentais estariam sujeitas às variações de humor da opinião pública, discussões internas se tornariam inviáveis, o controle de acesso a dados deixaria de ser possível.
Por outro lado, Wikileaks é parte de uma tendência de exposição crescente, em que indivíduos postam suas informações pessoais on-line e buscas simples trazem milhões de resultados em centésimos de segundo. A motivação de quem transfere esses documentos não é clara: ‘Talvez uma convicção íntima de realizar plenamente o ideal de liberdade de expressão inscrito nos textos fundadores dos EUA’, afirma Valérie Jeanne-Perrier, da Escola de Informação e Comunicação (Celsa) da Sorbonne.
Wikileaks se apresenta como uma iniciativa jornalística, sob responsabilidade da Sunshine Press, formada por ‘dissidentes chineses, jornalistas, matemáticos e jovens engenheiros de computação’. Lançado no início de 2007, conta com menos de dez membros, todos voluntários, segundo o próprio grupo. ‘Trata-se de um modelo de jornalismo ‘sentinela’, que dá alertas e trabalha sobre a revelação de segredos. É de grande atualidade e parece estar no caminho de se tornar um modelo dominante, de dimensão internacional, ainda que acoplado a um sistema midiático já estabelecido’, diz Valérie.
Após alguns meses de existência, o grupo deixou de aceitar contribuições diretas de usuários, o que, em tese, invalida sua denominação como ‘Wiki’. Hoje, toda a atividade de análise e divulgação é interna. O aspecto colaborativo fica por conta de entidades intermediárias. Valérie cita o exemplo do sítio de jornalismo digital Owni.fr, que trabalha sobre os dados divulgados por Wikileaks. ‘Cria-se, assim, um dispositivo de divulgação dos dados. Cria-se o quadro de leitura que contextualiza os documentos brutos. Wikileaks apenas regrupa os dados, coloca-os em segurança e permite sua difusão.’
Sua atuação já mereceu prêmios da revista The Economist em 2008 e da Anistia Internacional em 2009, pelo combate à censura e a denúncia de irregularidades governamentais, como assassinatos políticos no Quênia e negociações de arroz de Xanana Gusmão em Timor Leste. Seu editor, o ativista e hacker australiano Julian Assange, de 39 anos, atingiu a celebridade internacional em agosto, quando autoridades suecas o acusaram de assédio sexual a duas mulheres. Assange afirma que a perseguição jurídica é uma tentativa de calar Wikileaks. Pelo mesmo motivo, o editor evita viajar aos Estados Unidos.
Estrutura reticular
Wikileaks recebe denúncias e documentos anonimamente, por meio de um sistema criptografado. Em seguida, organiza-os, avalia sua pertinência e os publica, acompanhados de um texto jornalístico que explica o procedimento e orienta a leitura. Em certos casos, o vazamento é feito por meio de jornais, como Le Monde, da França, The New York Times, dos EUA, e El País, da Espanha. É o que tem sido feito com os documentos diplomáticos, cuja vastidão exige um trabalho de análise e escolha.
Embora Wikileaks se defina como concorrente da ‘velha mídia’, a ligação com os grandes jornais aponta para uma parceria entre os modelos antigo e novo. Segundo Valérie, falta à mídia tradicional os meios técnicos, humanos e jurídicos de recuperar e organizar tamanha vastidão de dados. A estrutura reticular e internacional da internet facilita esse trabalho. Estabelece-se, assim, um ‘processo de cooperação, uma aliança objetiva pela gestão e repartição de papéis, numa cadeia de trabalho ligada à publicação das informações’, afirma. (DV)