O recente apagão da rede de comunicação de dados da Telefonica mostrou as conseqüências nefastas da armação promovida pelos caciques da área de telecom para beneficiar a empresa espanhola e outros tubarões, que vem rolando desde a publicação da LGT em julho de 1997. Para sorte dos usuários, a lei de Murphy se fez valer justamente quando o atual governo está prestes a fazer um upgrade nas maracutaias, por meio de mudanças no Plano Geral de Outorgas que visam consolidar a transformação ilegal do antigo monopólio estatal nos serviços públicos de telecom em oligopólios privados.
A essa altura do campeonato, depois de ver bancos, delegacias, hospitais e mais um monte de serviços essenciais para a população fora do ar, certamente nem o mais desinformado dos cidadãos deve ter dúvidas que os serviços de comunicação de dados, especialmente aqueles que envolvem a rede internet, são de relevante interesse público, talvez até maior que o antigo e decadente STFC (Serviço Telefônico Fixo Comutado). Diante dessa constatação tão óbvia, surge então a pergunta: por que os serviços de comunicação de dados não são explorados em regime público, com obrigações de universalização e continuidade impostas às suas concessionárias, de forma a garantir que os serviços sejam prestados de forma adequada e com tarifas acessíveis a todos?
Convergência digital
Vejamos o que diz a Lei Geral das Telecomunicações (LGT):
a) O inciso I do art. 2º diz que o Poder Público tem o dever de garantir, a toda a população, o acesso às telecomunicações, a tarifas e preços razoáveis, em condições adequadas;
b) O inciso II do art. 2º diz que o Poder Público tem o dever de estimular a expansão do uso de redes e serviços de telecomunicações pelos serviços de interesse público em benefício da população brasileira;
c) O inciso I do art. 3º diz que os usuários de serviços de telecomunicações têm direito de acesso aos serviços de telecomunicações, com padrões de qualidade e regularidade adequados à sua natureza, em qualquer ponto do território nacional;
d) O inciso I do art. 3º diz que os usuários de serviços de telecomunicações têm direito à liberdade de escolha de sua prestadora de serviço;
e) O art. 64. determina que comportarão prestação no regime público as modalidades de serviço de telecomunicações de interesse coletivo, cuja existência, universalização e continuidade a própria União comprometa-se a assegurar.
f) O § 1º do art. 65 diz que não serão deixadas à exploração apenas em regime privado as modalidades de serviço de interesse coletivo que, sendo essenciais, estejam sujeitas a deveres de universalização.
g) O § único do art. 69 diz que a comunicação de dados é uma modalidade de serviço de telecom que não tem nada a ver com a telefonia.
h) O art. 85 diz que cada modalidade de serviço será objeto de concessão distinta.
i) O art. 86 diz que a concessão somente poderá ser outorgada a empresa constituída segundo as leis brasileiras, com sede e administração no País, criada para explorar exclusivamente os serviços de telecomunicações objeto da concessão.
j) O art. 207 diz que a Embratel deveria pleitear concessão para operar o serviço de troncos (responsável pelos ‘backbones’ da rede internet e do STFC).
Considerando que o Antônio Valente, ex-conselheiro da Anatel e atual presidente da Telefonica, admitiu publicamente que o apagão ocorreu na rede de comunicação de dados da empresa, surge então um enigma de telecom que precisa ser decifrado urgentemente pelo Ministério Público Federal: como a Telefonica poderia estar operando redes públicas de comunicação de dados, se o art. 86 da LGT determina que as concessionárias de telefonia fixa devem explorar exclusivamente o STFC, objeto de suas concessões?
O enigma se torna ainda mais intrigante se lembrarmos que foi justamente por causa das restrições impostas pela LGT que a Telefonica, o Opportunity, a MCI e o Carlos Jereissatti conseguiram adquirir o controle acionário das atuais concessionárias do STFC, sem concorrência e a preço de banana podre, nos leilões de privatização de 1998. Afinal?
Em plena aurora da convergência digital promovida pelas redes IP e com a telefonia celular na cara do gol, quem seria louco de comprar concessionárias de telefonia que deveriam explorar única e exclusivamente o secular Serviço de Telefonia Fixa Comutada (STFC), senão aqueles que já sabiam previamente que o Ministério das Comunicações e a agência desreguladora iriam armar algum tipo de trambique para burlar a lei de forma a permitir que elas pudessem fazer barba, cabelo e bigode nos serviços de telecom?
Monopólio e oligopólio
Os sinais de que o governo iria jogar sujo ficaram evidentes a partir da publicação do decreto 2.338/97, que regulamentou apenas os Livros I e II da LGT, deixando de fora a regulamentação do Livro III, que se constituiria no Regulamento Geral dos Serviços de Telecomunicações e definiria as regras para os serviços que deveriam ser explorados em regime público. Porém, a sujeira braba ficou concentrada no decreto 2.534/98 (Plano Geral de Outorgas – PGO), que dividiu o país em apenas quatro regiões, formadas por três ossos (Tele Centro Sul, Tele Norte Leste e Embratel) e um filé mignon que era a Telesp.
Ao invés de formalizar a área de atuação da concessionária do serviço de troncos, conforme manda o art. 207 da LGT, o PGO estabeleceu que a Embratel seria uma concessionária de STFC de longa distância. Com essa manobra, o governo abriu a porteira para que as futuras concessionárias do STFC se apropriassem ilegalmente dos segmentos da rede de troncos dentro de suas regiões de outorga e as utilizassem para exploração de serviços de âmbito nacional e internacional em regime privado, o que permitiu à elas estabelecerem os atuais oligopólios, tanto no STFC quanto na comunicação de dados.
Na quarta-feira (2/7), passando por cima da Lei 9.649/98, a Anatel celebrou os contratos de concessão que transformaram as antigas subsidiárias Telebrás (inclusive a Embratel) em concessionárias do STFC. Como o Livro III da LGT não foi regulamentado e o PGO era omisso, tanto o serviço de troncos quanto os serviços de comunicação de dados (públicos ou privados) simplesmente viraram fumaça por não constarem na regulamentação oficial pós-LGT.
Para contornar o ‘pobrema’, no mesmo dia em que enviou para a CVM a relação dos consórcios que iriam participar dos leilões (27/7/1998), a Anatel outorgou autorizações a todas as concessionárias Telebrás para que elas pudessem explorar o inexistente ‘Serviço de Rede de Transporte de Telecomunicações’ (SRTT), artifício que deu a elas o suposto direito de explorarem serviços públicos de comunicação de dados utilizando os ‘provedores de acesso internet’ como fachada, conforme consta nos contratos dos serviços aDSL Speedy, Velox e BR-Turbo, que inundam o Judiciário com milhares de ações que questionam vendas casadas.
Resultado: no dia 29/7/1998, por ocasião dos leilões das concessionárias do STFC, os únicos interessado em adquirir o controle das empresas eram a Telefonica (interessada na Telesp), o consórcio armado pelo Opportunity do Daniel Dantas (interessado na Tele Centro Sul) e a MCI (interessada na Embratel), além do consórcio do Jereissatti, montado às pressas para adquirir a Tele Norte Leste que, até o dia do leilão, não tinha nenhum pretendente e foi a pivô do escândalo que ficou conhecido como ‘os grampos do BNDES’.
O mais interessante nisso tudo é o fato de a Telebrás, então presidida pelo Fernando Xavier (atual presidente do conselho da Telefonica), ter enterrado cerca de 15 bilhões de reais na modernização e expansão da rede pública de telefonia no período de 1995 a 1998 e as empresas de telefonia fixa terem sido arrematadas por cerca de 11 bilhões de reais. Pior é ter de ouvir Fernando Henrique ficar falando até hoje que a privatização foi um bom negócio para o país. Certamente o país ao qual ele se refere deve ser a Espanha.
E assim, depois de dez anos se passando por um ‘órgão de Estado’ que nunca foi e ter inundado o ordenamento jurídico com centenas de ‘regulamentos’ que não valem nem o papel em que foram impressos, a Anatel finalmente conseguiu cumprir a missão para a qual foi criada, de transformar o antigo monopólio estatal em oligopólios privados. Hoje se tornou ‘normal’ o governo contratar serviços de comunicação de dados não regulamentados que, apesar de utilizarem redes públicas, são prestados em regime privado, por empresas que não possuem as devidas concessões para explorá-los.
Artifícios inventados
No fundo da latrina desse esquemão perverso, encontram-se os usuários da telefonia fixa que, depois de terem as suas tarifas de assinatura reajustadas em mais de 600% só para bancarem a implementação das redes públicas de comunicação de dados das concessionárias do STFC via subsídio cruzado, acabaram sendo empurrados para os celulares pais-de-santo porque o serviço público, com suas tarifas estratosféricas, passou a ser um artigo de luxo para eles.
Quanto aos porcos serviços de rede internet em banda larga fornecidos pelas concessionárias, não dá para entender a inércia do Ministério Público em relação ao caso, pois, utilizar provedores de acesso como fachada para ocultar a exploração ilegal de serviços públicos de comunicação de dados é algo que lembra muito o crime de estelionato.
Porém, o mais incrível nessa encrenca toda é o ministro Hélio Costa que, mesmo depois dos trambiques da Anatel terem sido cantados em prosa e verso pela internet durante anos, ter a desfaçatez de querer alterar o atual PGO só para atender aos interesses de Jereissatti, deixando de fora temas muito mais relevantes, como definir a área de outorga de concessão do serviço de troncos e obrigar que a Embratel se torne a concessionária do serviço (conforme determina o art. 207 da LGT) e, também, regulamentar os serviços de comunicação de dados, instituir a sua prestação em regime público e licitar outorgas de concessão específicas para exploração dos serviços.
Alguém precisa avisar ao Hélio Costa e aos deputados Jorge Bittar e Walter Pinheiro que, ao adquirirem o controle das concessionárias de telefonia fixa, os atuais controladores sabiam direitinho que as empresas teriam de explorar exclusivamente o STFC durante todo o prazo da concessão. Assim, é muito feio esse negócio do ministro e dos deputados ficarem inventando artifícios para transformá-las em ‘operadoras multi-serviços’ pois, se elas quiserem fazer um upgrade, então que abram mão das suas atuais concessões de STFC e disputem as futuras concessões multi-serviços em igualdade de condições com os demais interessados.
Alterações ilegais
Para finalizar, como o calhamaço publicado pela Anatel explicando os motivos das alterações no PGO não passa de pura conversa pra boi dormir, vão aqui 13 perguntas que precisam ser respondidas pela autarquia, nem que seja necessária uma CPI só para isso:
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Pergunta 1: Por que a Embratel ainda não se tornou a concessionária do serviço de troncos, conforme determina expressamente o art. 207 da LGT?**
Pergunta 2: Por que a Anatel outorgou uma concessão de STFC de longa distância para a Embratel, se a LGT não prevê a existência desse tipo de concessão?**
Pergunta 3: Como poderia a Anatel ter celebrado os contratos de concessão com as antigas subsidiárias Telebrás no dia 02.06.98, se a Lei 9.649/98 atribui expressamente ao Minicom as competências da outorga, regulamentação e fiscalização dos serviços de telecomunicações?**
Pergunta 4: Por que a minuta do novo PGO, a exemplo do atual, não faz nenhuma alusão à existência da concessionária do serviço de troncos?**
Pergunta 5: Por que as concessionárias do STFC estão explorando comercialmente serviços de âmbito nacional e internacional em redes STM-16 e STM-64 específicas da rede de troncos, se o status de concessionárias regionais de telefonia permite apenas que elas operem redes STM-1 e STM-4?**
Pergunta 6: Por que a Anatel permite que as concessionárias do STFC explorem serviços públicos de comunicação de dados (ex. links IP, Velox, Speedy e BR-Turbo), se essa atividade é vedada à elas pelos arts. 69 e 86 da LGT?**
Pergunta 7: Por que a Anatel permite que os provedores de acesso sejam utilizados até hoje como fachada para ocultar a exploração ilegal de serviços públicos de comunicação de dados pelas concessionárias do STFC?**
Pergunta 8: Por que, antes, as concessionárias do STFC precisavam da fachada dos provedores para explorarem serviços de rede IP em banda larga (aDSL) e agora não precisarão mais dela?**
Pergunta 9: Por que a Anatel permitiu que a Telemar celebrasse um contrato de ‘turn key’ com a Siemens em 2005 para cumprir obrigações de universalização de atendimento às comunidades com mais de 300 habitantes utilizando redes metro ethernet e telefonia IP, se o padrão IEEE 802.3, além de não fornecer suporte ao Sistema de Sinalização por Canal Comum (SSC-7) dos serviços públicos de telefonia fixa, também não atende aos requisitos de QoS do STFC?**
Pergunta 10: Por que a Anatel batizou as redes metro ethernet (NGNs) como ‘backhaul do STFC’, se essas redes, destinadas única e exclusivamente à comunicação de dados, não têm nenhuma relação com as redes PDH e SDH do STFC?**
Pergunta 11: Por que o decreto 6.424/2008 imputou metas de universalização de redes metro ethernet (travestidas de ‘backhaul do STFC’) às concessionárias de telefonia fixa, se essas redes, inadequadas para o STFC, serão utilizadas pelas empresas exclusivamente para exploração de serviços de comunicação de dados em regime privado, violando os art. 69 e 86 da LGT?**
Pergunta 12: Considerando que, nos termos dos arts. 2º, 84º, 87º e 175º da CF e da alínea ‘b’ do inciso V do art. 14 da Lei 9.649/98, o Minicom representa o Poder Executivo na condição de Poder Concedente das Telecomunicações, por que a Anatel jamais propôs ao Poder Executivo que regulamentasse o Livro III da LGT e emitisse decretos instituindo o regulamento geral dos serviços de telecomunicações e o regulamento específico dos serviços públicos de comunicação de dados?**
Pergunta 13: Em julho de 1998, quando arremataram em leilão o controle acionário das concessionárias regionais do STFC, a preços irrisórios e sem concorrência, os atuais controladores dessas empresas sabiam perfeitamente que, por força do art. 86 da LGT, elas deveriam explorar única e exclusivamente o STFC. O fato de a Anatel querer transformá-las em concessionárias multi-serviços, através de alterações ilegais na regulamentação, não poderia ser interpretado como uma manobra casuística para tentar ‘legitimar’ todas as irregularidades que têm sido praticadas pelas empresas nos últimos anos com total anuência da agência e do Minicom?******
Diretor de Pesquisa de Regulamentação da Associação Brasileira de Usuários de Acesso Rápido