O Fantástico, da TV Globo, apresentou no último domingo (21/10) matéria insinuando que supostos traficantes que foram mortos durante ação policial na favela Coréia estariam armados. Um deles, segundo a imagem congelada, estaria portando uma espingarda – outro, um revólver. Em seguida, a reportagem apresentava o desenho, feito por uma criança, sobre a violência ocorrida naquele local. O desenho – algo incomum, quando se trata de criança – não apresentava assinatura; era, portanto, apócrifo. Geralmente, a mesma TV Globo sempre fez questão de dizer que não publica nada apócrifo. Desta vez abriu uma exceção…
Mas o fato principal da reportagem merece uma análise mais aprofundada. Se a TV Globo imagina que esclareceu a ocorrência – ou seja, de que os supostos traficantes que trocavam fogo com a polícia portavam armas ou não –, enganou-se redondamente. Ao contrário, deixou mais dúvidas e até insinuações, em nada abonadoras para a emissora de maior audiência do país.
Qualquer editor de audiovisual sabe perfeitamente que imagem congelada pode ser aproximada. Aliás, qualquer criancinha que lide com programas gráficos sabe fazer este procedimento, sem necessidade de qualquer técnica ou conhecimento especial. A meninada que está na onda, por sinal, lida com isso com a maior naturalidade. O que dizer, então, dos editores da TV Globo com seus equipamentos de última geração?
‘Normalidade’ necessária
Então, por que a TV Globo não fez o procedimento de aproximar a imagem que poderia acabar com a dúvida? Neste caso, da forma como foi apresentada, dá margem ao telespectador um pouquinho mais exigente de ficar com a pulga atrás da orelha. Os mais críticos poderão afirmar até que se a TV Globo fizesse a aproximação da imagem confirmaria em cem por cento que os referidos fugitivos, narcotraficantes ou não, foram sumariamente fuzilados pelos tiros partidos do helicóptero. E que o papel da polícia não é esse.
A reportagem apresentada no Fantástico se esforçava em absolver a polícia das acusações de entidades ilibadas como a ONG Justiça Global e a Ordem dos Advogados do Brasil, seção fluminense, de que houve um fuzilamento sumário, procedimento que vem sendo aplaudido pela classe média gênero senso comum, que se deixa levar pelo pânico, muitas vezes deliberadamente pré-fabricado.
A história do que aconteceu na Favela Coréia está muito mal contada. A insuspeita colunista social Hildegard Angel observou no Jornal do Brasil: ‘Vamos ao que eu achei daquele tiroteio covarde do alto de um helicóptero, sobre homens indefesos correndo desarmados morro abaixo. Quem me garante que eles eram, efetivamente, traficantes? Quem garantiu aos do helicóptero que eles não eram moradores da favela correndo dos tiros, apavorados, como você correria se naquele momento estivesse em lugar errado?’
Além das dúvidas, a reportagem do Fantástico, deficiente por si só, na prática tentava convencer o telespectador de que o acontecido na favela Coréia faz parte de uma normalidade necessária para combater a delinqüência, como quer o governador Sérgio Cabral e o seu secretário de Segurança, o gaúcho José Mariano Beltrame.
Resultados inócuos
Equivoca-se a TV Globo, e de um modo geral a mídia conservadora, ao cobrir fatos desta natureza geralmente sem qualquer tipo de questionamento. Os números falam por si só e valem mais do que qualquer adjetivo. Um dia antes da incursão policial na favela Coréia, o Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro divulgava um novo recorde de execuções policiais: no primeiro semestre de 2007, as polícias civil e militar mataram 694 suspeitos de delinqüência, 94 a mais do que todas as execuções realizadas em 2002, quando esse tipo de ‘solução’, adotado pelo esquema Sérgio Cabral para o problema da violência urbana, foi colocado em prática pelo então governador Garotinho.
Ou seja, a estratégia de confronto adotado com maior ênfase por Cabral não é nova e demonstra, na prática, ser totalmente ineficiente. A violência urbana diminuiu ou aumentou com a política de confronto? A resposta não é difícil.
Outro fato que não está sendo lembrado pela TV Globo, a mesma emissora que no governo Leonel Brizola atribuiu a este governador a culpa pela violência no Rio de Janeiro: é que na primeira e na segunda gestão de Brizola foram proibidos os vôos de helicópteros da polícia no espaço aéreo das favelas. O motivo alegado era exatamente o de evitar confrontos que pusessem em risco não apenas as vidas dos próprios policiais nos helicópteros, como, principalmente, dos moradores destas áreas, onde em sua maioria vivem trabalhadores de baixo poder aquisitivo. Agora, com Cabral e mesmo com outros governadores, como Marcelo Alencar, Garotinho e Rosinha, esta prática voltou e virou uma rotina, cujos resultados, vale repetir, são inócuos.
Filmando de dentro do caveirão
Neste turbilhão sangrento, a diretoria do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro queima a imagem da própria categoria ao incentivar e aplaudir a realização de um curso de segurança para ‘cobertura jornalística em área de risco’, ministrado por um instrutor militar com experiência no Afeganistão e Iraque. O Globo também aplaudiu a iniciativa conjunta do sindicato dos jornalistas e dos sindicatos patronais de jornais, rádios e TVs.
Ou seja, a diretoria do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro, em vez de questionar a política de criminalização dos pobres que vem sendo incentivada pela mídia conservadora, embarca numa estratégia totalmente equivocada para supostamente proteger os jornalistas que fazem reportagens em áreas consideradas de risco. Não era isso que se esperava de uma diretoria de um sindicato.
Cursos desta natureza, ainda por cima ministrados por instrutor militar que não se identifica – segundo O Globo, por ‘questão de segurança’ –, dão, no mínimo, para desconfiar. É estranho que um sindicato de jornalistas promova cursos desta natureza em vez de questionar a estratégia da mídia conservadora que estimula a corrida desenfreada atrás da audiência e de vendas promovidas por algumas publicações que correm atrás do lucro fácil.
Não seria, isto sim, o momento do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro investigar de que forma repórteres estão cobrindo os acontecimentos em áreas de risco, alguns deles, segundo denúncias, até filmando ou tirando fotos de cenas de violência a partir do interior do caveirão, o veículo blindado utilizado pela polícia em áreas carentes e que atemoriza os moradores de aéreas pobres do Rio de Janeiro?
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Jornalista