Não precisa fazer muito esforço para se lembrar de momentos em que a carência de tecnologia atrapalhou o dia a dia. Basta pensar nas situações em que o sistema estava fora do ar ou quando ficou impossível falar com alguém porque não havia cobertura de celular, por exemplo. Cenas assim são cada vez mais comuns e levaram as instituições públicas a reconhecer a importância desses recursos para a vida das pessoas. No mês passado, a Organização das Nações Unidas (ONU) declarou o acesso à internet como um direito humano e, no Brasil, entidades já começam a decidir casos em que aparelhos eletrônicos são considerados bens essenciais. Os especialistas dizem, porém, que ainda falta muito para ser feito.
Para entender o novo cenário, é preciso voltar alguns anos. A sociedade digital começou a se formar na década de 1980, quando surgiram os primeiros softwares amigáveis ao usuário comum. Foram os programas de computador que inauguraram a ideia de ativos não materiais, promovendo uma transformação radical na economia e nas relações. “As pessoas passaram a exigir, cada vez mais, respostas instantâneas. Houve uma mudança de comportamento e todos começaram a utilizar os recursos tecnológicos para se relacionar, se desenvolver, para trabalhar”, enumera a advogada Patrícia Peck Pinheiro, especialista em direito digital.
Esse movimento ficou ainda mais forte com a popularização da internet. Sem fronteiras físicas para a troca de informações, as noções de imediatismo e desmaterialização ganharam ainda mais valor. Nesse contexto, não há mais separação entre a vida real e a vida digital, uma vez que tudo pode acontecer no ambiente online. “Se o Facebook sai do ar por algumas horas, para muitas pessoas é como se o site matasse todos os seus amigos. O mesmo ocorre com alguém que perde o celular com agenda e becape. A pessoa passa a se sentir como se tivesse perdido um verdadeiro histórico de vida”, exemplifica Patrícia.
“Instrumento de trabalho”
A tradutora Bárbara Soares, 30 anos, faz parte da geração que não vive sem tecnologia. Dona de um laptop e de um iPhone, ela fica conectada 24 horas por dia e fez da internet uma ferramenta que facilita seu cotidiano. Além de manter contato com amigos e alimentar seu blog, a web também serve para que Bárbara compre tudo o que precisa. Na lista de aquisições online estão eletrônicos, cosméticos, um jogo de panelas e, até mesmo, uma estante. “Consigo preços muito melhores em locais fora de Brasília e hoje procuro comprar tudo desse jeito”, justifica. A necessidade da tradutora é tamanha que ela faz de tudo para não ficar sem a rede de computadores. “Quando me mudei, o pessoal do provedor disse que demoraria até sete dias para fazer a migração da internet. Aí eu contratei uma conexão a rádio durante esse período”, conta.
Assim como Bárbara, outras pessoas também não conseguem ficar distantes da web e dos eletrônicos. A estudante Ísis Moreira, 23 anos, ainda não tem um smartphone, mas não passa menos que seis horas por dia online. Na web, a jovem procura se atualizar quanto às novidades da área de seu curso, nutrição, além de fortalecer o contato com amigos. “Minha melhor amiga mora em Uberlândia. Nós nunca vivemos na mesma cidade, e, se não fosse a internet, certamente não seríamos tão próximas”, diz.
No caso do técnico em informática Denilson Kleber dos Santos, 31 anos, o grande companheiro é o celular. “Eu trabalho sozinho e atendo clientes em domicílio. O telefone é meu instrumento de trabalho.” Santos comprou um smartphone recentemente e já começou a atender pessoas via e-mail, MSN e Skype. O técnico em informática faz parte de um contingente de pessoas que passaram a ficar mais protegidas com a última decisão do Ministério Público Federal (MPF) sobre o direito do consumidor que adquire um celular. No fim do mês passado, o órgão determinou que os fabricantes são obrigados a trocar o aparelho imediatamente caso ele apresente defeito, ou reembolsar o valor pago. “Hoje, eu resolvo minha vida toda por telefone. Algumas pessoas não se importam se o equipamento quebra ou se é perdido, mas, para mim, ele é essencial”, reforça Denilson dos Santos.
Navegação monitorada
A determinação do MPF foi mais uma na batalha sobre o assunto, levada aos tribunais por consumidores contra a Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee), representante dos fabricantes de celulares. O caso ilustra uma situação que, sem regras legais definidas, acaba sendo decidida na Justiça. Em questões relativas à internet, a coisa fica ainda pior, uma vez que há muitas brechas na legislação. “Os primeiros registros de crimes eletrônicos surgiram há 15 anos. O problema é que essa matéria não é ensinada pelas faculdades de direito, o meio acadêmico quase não discute esse tema e nós ficamos sem proteção legal”, lamenta a advogada Patrícia Peck.
Uma das maiores lacunas vem da falta de regulamentação de algo já previsto na Constituição de 1988. A Carta Magna diz que qualquer um pode manifestar seu pensamento, mas o anonimato está proibido. No mundo digital, contudo, investigações sobre a identidade de criminosos dependem da colaboração dos provedores. “É preciso determinar por quanto tempo as empresas precisam preservar os dados de conexão. Como isso ainda não foi colocado em uma regra específica, há um impasse jurídico”, esclarece a especialista em direito digital.
A caça ao inimigo, porém, não pode passar por cima da liberdade dos usuários da internet. E aí está outro furo na legislação brasileira no que diz respeito à tecnologia. Atualmente, não há nenhuma lei que proteja a privacidade dos cidadãos. “Muitos bancos, por exemplo, obrigam que o internauta instale plugins no computador para fazer operações de internet banking. O problema é que esses programas acabam monitorando toda a navegação da pessoa, que nem sequer sabe o que está acontecendo”, denuncia o professor Sérgio Amadeu, da Faculdade de Comunicação Cásper Líbero.
Caráter “transformador e único”
Usuários da rede de computadores e especialistas da área elaboraram um projeto de lei para tentar resolver a situação. O chamado Marco Civil da Internet visa a garantir a liberdade, a privacidade e a segurança das pessoas no ambiente online. Após muitas discussões, o material ficou pronto, mas está empacado no Palácio do Planalto. “Estamos, agora, propondo que algum deputado abrace a causa, caso o governo não tome nenhuma medida até agosto”, conta Amadeu. “Não podemos criminalizar nenhuma prática na internet sem antes definir quais são os direitos das pessoas”, defende.
A área jurídica que discute questões relativas à internet já teve vários nomes. Nos anos 1990, ela chegou a ser chamada de lei cibernética, “como se a web não existisse, fosse uma espécie de alter ego das pessoas”, diz Patrícia Peck. Depois, surgiu o termo “direito eletrônico”, também inadequado porque a eletrônica existe há 100 anos. Agora, está estabelecida a expressão “direito digital”, mas não como um novo ramo do Direito, e sim como uma evolução da disciplina.
Desde 3 de junho, entrar na internet é um direito tão humano quanto o de ir e vir. A ONU editou um documento de 20 páginas em que ressalta o caráter “transformador e único” da rede de computadores. Para usuários brasileiros, o texto pode não ter feito grande diferença, mas para quem vive em países ditatoriais, como a China e a Líbia, o apoio da organização é essencial na luta pela liberdade de expressão.
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[Carolina Vicentin, da redação do Correio Braziliense]