Wednesday, 04 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Opinião, Estadão e a liberdade de imprensa

Nunca é demais lembrar a resistência do Estado de S.Paulo (e do Jornal da Tarde) à censura – com os versos de Camões, as receitas de bolo e as fotos de flores. É justo lembrar em livro, como fez no 40º aniversário do AI-5, em dezembro do ano passado, o jornalista José Maria Mayrink em seu Mordaça no Estadão, que viveu aqueles tempos difíceis (mais sobre a mídia e o AI-5 aqui, num depoimento de Alberto Dines).

Mas é injusto esquecer que quando Fernando Gasparian, diretor de Opinião, decidiu impetrar mandado de segurança contra a censura em 1973, o mesmo Estadão, por intermédio de seu diretor Ruy Mesquita, ficou atemorizado, negando-se a ser parte da causa (saiba mais sobre Gasparian e seu jornal aqui e aqui).

Eu entenderia se a razão tivesse sido apenas o fato de ser Opinião um semanário alternativo, menor, enquanto o Estadão era um dos jornalões tradicionais do país, muito conhecido até no exterior. Mas Gasparian disse então a Ruy Mesquita que, se o Estadão preferisse não entrar junto com Opinião, estaria bem: entraria sozinho e o semanário, nanico, se somaria apenas depois à iniciativa.

Essa história, com mais detalhes, foi contada pelo próprio Gasparian e está no livro Opinião x Censura – Momentos da luta de um jornal pela independência, de J. A. Pinheiro Machado (Editora L&PM, 1978). O motivo real dos Mesquita (o irmão Júlio estava então fora do país), além do medo de represálias, era o fato de já ter a promessa do general Ernesto Geisel de que a censura do Estadão seria levantada.

Adauto Cardoso, outro herói esquecido

O episódio teve ainda outro herói: Adauto Lúcio Cardoso, jurista da UDN, conspirador no golpe de 1964 e ex-presidente da Câmara dos Deputados (em 1966, até renunciar em protesto pela cassação dos mandatos de seis deputados da oposição), ideologicamente mais afinado com o Estadão do que com Opinião. Nomeado para o Supremo
Tribunal Federal, votara a favor de habeas corpus para Vladimir Palmeira e Darcy Ribeiro. Mas em 1971 aposentou-se, envergonhado com uma decisão que mantivera restrições à liberdade de imprensa.

Cardoso tinha prometido só voltar ao STF para defender a causa da liberdade de imprensa. Assim, ao ser procurado em 1973, concordou em ser o advogado de Opinião no caso. Como Estadão e Veja estavam também sob censura, explicou a Gasparian: a causa ganharia força se um deles (ou os dois) se somasse a ela. O dono de Opinião não tinha ilusões sobre os Civita, mas procurou Ruy Mesquita.

Ficou desapontado com a resposta negativa. Naqueles dias o Estadão, que participara do complô do golpe, apostava na troca de generais, a se consumar no Planalto. O então presidente, Garrastazu Médici, tinha Orlando Geisel à frente do ministério do Exército – uma garantia de que só um grave acidente de percurso seria capaz de impedir em 1974 a ascensão do irmão dele, o também general Ernesto Geisel.

Poupar o Estadão e esquecer o resto?

Um amigo comum do jornal e do futuro presidente, segundo Gasparian, já tinha assegurado aos Mesquita que o novo governo ia tirar a censura do Estadão. De fato, isso ocorreria em 1975. Mas as vítimas menores – Opinião, O São Paulo, Tribuna da Imprensa, Movimento etc – continuariam sob censura implacável. Ao confiar em Geisel, a família Mesquita ficou indiferente à sorte dos demais.

Toda a prática da censura, explicitamente proibida na Constituição em vigor, foi exposta – até com as minúcias ridículas e grotescas – na petição do mandato de segurança levada ao Tribunal Federal de Recursos, a 10 de maio de 1973, pelo advogado Adauto Lúcio Cardoso. Ao final, por 6 votos contra 5, o TFR decidiu: a censura prévia feita no Opinião pela Polícia Federal violava a Constituição.

Consumada a decisão judicial, no entanto, a Polícia Federal avisou a Redação de Opinião pelo telefone: ‘Não publiquem o jornal sem obedecer à censura. Se isso acontecer, temos ordem para apreender a edição’. Na manhã seguinte, o general-presidente Garrastazu Médici, em simples despacho, mandou a PF ignorar a Justiça e manter a censura no jornal, com base no AI-5. Eis a íntegra do despacho, de 20 de junho:

Despacho do Presidente da República – Processo 5005/73

Diante do exposto neste processo pelo Senhor Ministro da Justiça:

1. Ratifico o despacho exarado em 30 de março de 1971, na exposição de motivos n° 165 B, de 20 de março daquele ano, no qual adotei em defesa da revolução, com fundamento no artigo 9 do Ato Institucional n° 5, as medidas previstas no art. 152, parágrafo 2°, letra E, da Emenda Constitucional b. 1;

2. Tendo a decisão proferida no mandato de segurança impetrado pela Editora Inúbia Ltda. Afirmado não existir nos autos provas de imposição de censura por ato do Presidente da República, reitero a autorização de que a Polícia Federal estabeleça censura quanto ao periódico OPINIÃO.

Emilio Garrastazu Médici – Presidente da República

Um detalhe escabroso de tudo isso é que o tal despacho citado no item 1 (de 30 de março de 1971) teria sido secreto, nunca fora revelado. Assim, o mandado de segurança de Opinião tivera no mínimo o mérito de forçar a ditadura ou a revelar a existência de ‘despachos secretos’ (como sabemos, havia também ‘decretos secretos’), ou a fabricar um às pressas (e a posteriori) na obsessão de forjar cobertura jurídica para invalidar a decisão do TFR.

A mesma mídia covarde que hoje apregoa compromisso com a liberdade de imprensa – em ataques torpes ao governo Lula e especialmente a outros governos do continente, como o da Venezuela – acovardava-se então (leia aqui sobre o heroísmo do Estadão no passado e sua prepotência atual). Em 1973, recebeu uma lição de coragem cívica, dada por Gasparian, Opinião e o advogado Adauto Lúcio Cardoso. O Estadão, pelo menos, ainda noticiou o fato discretamente em sua primeira página do dia seguinte. O resto da mídia, nem isso.

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Jornalista