Deu uma vontade danada de escrever este texto tão logo começaram a ser publicadas as criativas análises sobre as razões que levaram o povo brasileiro a reeleger Luiz Inácio Lula da Silva com aquela maioria avassaladora de votos. Mas me contive. Preferi esperar até que saíssem todas. Parece que se esgotaram. Aprendi muito com elas.
Ainda no domingo passado fiquei feliz ao saber pelo analista-ministro Patrus Ananias que ninguém mais no Brasil troca voto por prato de comida. Também aprendi, agora com o analista-pesquisador Marcos Coimbra, que o povo brasileiro ‘recusou a tutela dos formadores de opinião’. Ou seja: que cada um dos 180 milhões em ação agiu pela própria cabeça. E que ninguém mais faz a cabeça de ninguém, razão pela qual a insidiosa campanha a favor do chuchu tucano pela grande mídia não serviu pra xongas. Os eleitores deram uma banana pros marinhos, civitas, frias e mesquitas, mandaram às favas as análises dos articulistas ‘bem-pensantes’, deixaram de lado as denúncias contra o PT e os auxiliares mais diretos do presidente, e votaram como bem quiseram e entenderam. Aprendi também que a expressão ‘votaram como bem quiseram e entenderam’ significa que votaram em Lula.
Aprendi também que, de uma hora para outra, todos os eleitores brasileiros, sem exceção, e sabe-se lá como, arranjaram computador e se conectaram à internet. Foi um boom como jamais se viu. E foi assim que fixaram de forma independente suas posições. Aprendi também que a expressão ‘fixaram de forma independente suas posições’ significa que votaram em Lula.
Liberdade e consciência
Outra coisa que aprendi foi que as ‘lan-houses’ (pontos de acesso barato à internet) espalharam-se como cogumelos por todas as bibocas do país, da Avenida Paulista ao Marco Zero, lá em Macapá. E que, por isso, pessoas como seu Jorge Pedreiro, mulato inzoneiro que mora na favela da Rocinha, vasculhou os blogs do Noblat e do Moreno, entrou avidamente nos sites oficiais pra conhecer detalhes dos principais indicadores do governo. Feito isso, por meio de chats, troca de torpedos e e-mails, o carioca boa-praça, o sertanejo-antes-de-tudo-um-forte, o gaúcho macho-chô, a baiana-quando-entra-no-samba e seu Jorge-rei-da-colher-de-pedreiro, todos eles danaram-se a discutir política, eleição e candidatos, fosse na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê. Até chegarem à conclusão de que o tinham a fazer era escolher o melhor empregado, já que diante da urna todo mundo é patrão (como ensinou a propaganda da Justiça Eleitoral). E, ao ouvir ‘melhor empregado’, traduziram: é Lula.
Os analistas não explicaram por que Alkmin não daria um bom empregado. Mas deixa isso pra lá. Ah, sim: eu soube e passei a acreditar que durante a campanha eleitoral nehum brslero gstou tmpo trcnd msgs idiots cum amgs i pqeras i prfriu pasar 24h p/dia pnsand xclsivmnt im plitca elçã i cndidts.
Demorou (tenho alguma dificuldade pra entender o óbvio), mas aprendi que não há mais coronéis na política brasileira, e que essa história de Antonio Carlos Magalhães e José Sarney mandarem e desmandarem no quintal onde plantam e colhem votos a-ca-bou, bye-bye, so long, farewell. O eleitorado tupiniquim, livre e soberano, rebelou-se. Agora manda e desmanda, faz e acontece. Aprendi ainda que, pela expressão ‘livre e soberano, rebelou-se, agora manda e desmanda, faz e acontece’ deve-se entender que vota em Lula.
Por último, aprendi com um dos luminares da antropologia que ‘não existem mais grotões no Brasil’. E que ‘foi-se o tempo em que o povo se subordinava a coronéis políticos e governos’. Viva! Finalmente raiou radioso e febril o primeiro dia do eleitorado independente, livre de amarras, dono de seu voto e de seu nariz. Aprendi que o sonho grego da democracia plena finalmente se concretizou. E, quem diria – concretizou-se aqui mesmo, na pátria estremecida onde canta o sabiá. E que devemos saudar o nascimento do ‘New Citizen’, morador de um país sem grotões, que não se sujeita mais à ditadura dos coronéis nem dos formadores de opinião e, portanto, exerce o direito do voto com liberdade plena e consciência absoluta. Ah. Aprendi também que a expressão ‘exerce o direito do voto com liberdade plena e consciência absoluta’ significa que vota em Lula.
Real e crível
Tudo bem, tudo bem. Até aqui, brinquei, ironizei, provoquei e me arrisquei a receber um quilo de mensagens mal-humoradas pelo desrespeito com que tratei análises e analistas. Mas quem tem desconfiômetro e o mantém ligado (como deveriam ser mantidos os transponders dos legacys) sabe do que estou falando.
Todo excesso, inclusive de criatividade, é burro. Por isso, palmas para os analistas pouco criativos e que apenas constataram o que salta aos olhos: Lula foi consagradoramente votado pela combinação de motivos prosaicos e conhecidos. Eis os principais, entre os mais citados:
1.
A vocação natural do eleitorado para o conservadorismo. É raro um ocupante de cargo executivo perder reeleição no Brasil. No mundo também;2.
os excelentes índices de avaliação do governo;3.
a gratidão dos mais necessitados pelos benefícios assistenciais do Bolsa Família e pelo comprovado declínio da miséria (6 milhões pularam das classes D e E para a classe C);4.
a substituição do coronel-intermediário, que distribuía as benesses do governo ao eleitor e manipulava seu voto, pelo coronel-governo-federal, personificado na figura do presidente da República;5.
o bolso (e não a ética) é que foi parar dentro da urna (‘ah, político é assim mesmo, então, farinha pouca etc.’, neutralizando as denúncias de corrupção);6.
o reconhecimento de Lula como ‘um dos nossos’ pelas classes mais desfavorecidas, que não acreditaram que ele soubesse do que todo mundo diz que sabia.E estamos conversados. Aliás, vamos dar uma colher-de-chá aos ‘criativos’: também ajudou para a vitória uma certa democratização da informação com a popularização da internet, que já alcança 20 milhões de usuários (embora boa parte formada por crianças); alguma perda de influência dos formadores de opinião (aqui representados não individualmente, mas, por exemplo, pelo agenda-setting do Jornal Nacional); e, por último, o enfraquecimento de alguns coronéis somada à substituição de alguns por coronéis mais jovens. Sem esquecer também que Alckmin ajudou a construir a própria derrota quando, entre outras bobagens, não teve coragem de assumir as privatizações e foi obrigado a terminar a campanha nas cordas, fustigado pelo adversário. E chega.
Aqui entre nós: a análise dos ‘realistas’ não parece bem mais real e crível do que a dos ‘criativos’? Agora leia em voz alta (se quiser, pode gritar):
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Alguém aí acredita MESMO que o Brasil não tem mais grotões, que ninguém mais vende voto, que o eleitorado subitamente tornou-se independente e que foi o mulato inzoneiro plugado à internet que detonou o Alckmin?******
Jornalista, professor e pesquisador em Comunicação