Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Os cibercafés da Anatel

Você sabe o que é um TAP? Não? Bem, o inciso XI do artigo 3º do decreto 4.769 (Plano Geral de Metas de Universalização do Serviço de Telefonia Fixa Comutada), também conhecido como PGMU do STFC, explica mais ou menos o que é isso:

XI – Terminal de Acesso Público (TAP) é aquele que permite, a qualquer pessoa, utilizar, por meio de acesso de uso coletivo, o STFC, independentemente de assinatura ou inscrição junto à prestadora, incluindo, ainda, funções complementares que possibilitem o uso do STFC para conexão a Provedores de Acesso a Serviços Internet – PASI, de livre escolha do usuário, e envio e recebimento de textos, gráficos e imagens, por meio eletrônico, observado o disposto na regulamentação;

Traduzindo isso do anatelês para o português, temos que o TAP é apenas um microcomputador comum com conexão permanente à rede internet, que pode ser utilizado por qualquer pessoa e cujo tempo de utilização pode ser pago através de créditos carregados em cartões telefônicos.

Acontece que, como o Decreto 4.769 estabelece metas de universalização obrigatórias, específicas para serviços de telefonia, ficaria meio esquisito colocar no texto que os TAPs eram simples PCs, pois poderia passar a impressão de que o governo estaria obrigando as pobrezinhas das concessionárias a prestar serviços de comunicação de dados (que utilizam computadores como terminais), violando o Artigo 86 da LGT, que as proíbe de explorar outros serviços de telecomunicações diferentes da telefonia fixa comutada (STFC), objeto exclusivo de suas concessões.

E assim, para evitar interpretações errôneas, os doutores da Anatel usaram a criatividade e transformaram os TAPs em orelhões superdotados, com ‘funções complementares’ que possibilitam o uso do serviço de telefonia fixa para conexão a Provedores de Acesso a Serviços Internet (PASI) e também para envio e recebimento de textos, gráficos e imagens, por meio eletrônico.

Com esta pequena ajeitada no texto do decreto, em vez de meros computadores conectados à internet temos super-orelhões que fazem barba, cabelo e bigode em termos de telecomunicações. Não fica bem mais simples assim?

Fome Zero e Mp3

Quem esteve nas audiências públicas do Serviço de Comunicação Digital (que também pretende espalhar milhares de TAPs por este Brasil afora), teve a oportunidade de conhecer alguns modelitos desta obra-prima da criatividade dos doutores, principalmente os super-orelhões em formato de totens, dignos de Primeiro Mundo, capazes de matar de inveja qualquer sueco, com design slim, tela LCD, teclado de aço e outras frescuras, que poderiam tranqüilamente estrelar qualquer futura continuação do Matrix.

Quando a gente olha para aquele negócio com tela, teclado e mouse fica difícil imaginar que seja um orelhão. Se observarmos direitinho, porém, poderemos ver um telefone no canto superior esquerdo do totem, mostrando que aquela maravilha é na verdade um telefone público com ‘funções complementares’, e não um simples PC conectado à rede internet, com um inútil telefone pendurado nele.

Os planos do governo para as concessionárias, contudo, vão mais longe, pois os TAPs em formato de totem, que segundo alguns comentários podem custar até R$ 15 mil cada, precisam de instalações à altura e, por causa disso, o decreto exige que eles sejam instalados em Postos de Serviços de Telecomunicações, que são verdadeiros cibercafés:

VIII – Posto de Serviço de Telecomunicações (PST) é um conjunto de instalações de uso coletivo, mantido pela concessionária, dispondo de, pelo menos, TUP e TAP, e possibilitando o atendimento pessoal ao consumidor;

Art. 14. Cada PST deve dispor de, pelo menos, quatro TUPs, quatro TAPs e facilidades que permitam envio e recebimento de textos, imagens e gráficos, em modo fac-símile, bem como deve estar acessível ao público em geral sete dias por semana no horário de oito às vinte horas.

§ 1o Deve ser ativado, pelo menos, um PST por município com até cinqüenta mil habitantes e, pelo menos, um PST para cada grupo com até cinqüenta mil habitantes, nos municípios com população superior a cinqüenta mil habitantes.

Para arrematar, o governo ainda obriga que as concessionárias cumpram as seguintes metas, inicial e final, de instalação de seus cibercafés:

I – a partir de 1º de janeiro de 2007, em trinta por cento dos municípios com até cinqüenta mil habitantes e seis por cento dos municípios com mais de cinqüenta mil habitantes, de forma a assegurar o atendimento de, no mínimo, vinte por cento da população total de cada setor do PGO;

V – a partir de 1º de janeiro de 2011, em todos os municípios independentemente da população.

Já pensaram que maravilha? Postos de Serviços de Telecomunicações espalhados por todo o Brasil? Imaginem um morador lá de Cabrobó dos Matos, sentado em frente a um totem de R$ 15 mil, com seu pratinho de comida do Fome Zero do lado, baixando as suas Mp3 no Kazaa ou votando no Big Brother Brasil pela internet? Esta sim é a verdadeira inclusão digital com que sempre sonhamos.

Auxílio luxuoso

Uma ação social deste vulto exige planejamento e cautela, pois afinal este negócio de obrigar que as concessionárias universalizem serviços de comunicação de dados, que não têm nada a ver com suas concessões de telefonia fixa, e, ainda por cima, exigindo que elas instalem e mantenham verdadeiros cibercafés de Primeiro Mundo, certamente arrasaria com o equilíbrio econômico-financeiro das empresas, cujas regras de preservação estão estabelecidas em seus contratos de concessão. Assim, para evitar prejuízos, o governo pode tomar as seguintes providências:

a) Repassar os custos de implantação do serviço de comunicação de dados, com totens e tudo, para as tarifas do serviço de telefonia fixa, socializando o prejuízo através de subsídio cruzado, mais ou menos como ocorria na época em que as empresas de telecomunicações eram estatais. A diferença é que naquele tempo as tarifas dos serviços mais elitistas, como o DDD e DDI, subsidiavam as tarifas da telefonia local, tornando seus custos acessíveis para o povão; agora, seria justamente o contrário, o povão subsidiando a universalização dos indispensáveis cibercafés pelo aumento nas suas contas telefônicas.

b) Utilizar verbas do Orçamento Geral da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, ou então do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), caso ninguém saiba como usar, tenha grana para comprar os cartões ou se interesse em utilizar os cibercafés e isso impeça que as concessionárias tenham lucro com a exploração eficiente do serviço. Desta forma, as empresas continuariam tendo lucro, mesmo que os totens fossem utilizados apenas como símbolos para rituais indígenas, como ocorre entre as tribos do Canadá.

c) Nomear uma comissão formada por pessoas que entendam alguma coisa de regulamentação de telecomunicações e não estejam envolvidas com as concessionárias de telefonia nem com a Anatel, para analisar e discutir detalhadamente este plano de metas e, se for o caso, solicitar ao ministro das Comunicações a abertura de processos administrativos para apurar responsabilidades sobre partes do texto que apontam indícios de supostos atos de improbidade administrativa.

O negócio é o seguinte: o idioma anatelês deveria ter sido extinto no governo Lula. Se a Anatel quisesse entregar serviços de comunicação de dados a concessionárias e repassar custos às contas de todos os usuários dos serviços de telefonia que fizesse isso às claras e assumisse as conseqüências pelos seus atos.

O que já encheu o saco é essa mania de os doutores acharem que os usuários são trouxas, e que basta dar uma entortada nos textos para enganar todo mundo. Será que eles realmente acreditam que as pessoas engoliram este papo de orelhão com ‘funções complementares’? É ruim, hein?

Mas aí entra a inexplicável inércia deste governo que se diz moralizador dos serviços públicos. Que moralização é esta, prezados caciques, se quem assina o Decreto 4.769 é o próprio presidente Lula, com o auxílio luxuoso do ex-ministro Miro Teixeira, aquele mesmo que vivia cuspindo marimbondos contra a Anatel?

Um dia a ficha cai

Já que o Lula está apoiando a existência de um controle externo do Judiciário, poderia ao menos dar o exemplo e mandar apurar os fatos abaixo, que envolvem um decreto do próprio Poder Executivo:

a) Na Consulta Pública 426, referente ao modelo de contrato de concessão do STFC que passaria a valer de 2006 em diante, da qual fazia parte a minuta do PGMU transformada no Decreto 4.769, não havia nenhuma menção aos TAPs, incluídos após o término da consulta pública, no projeto final do PGMU pelo conselho diretor da Anatel, através da sessão pública 001/2003, realizada em Brasília no dia 4/6/2003, da qual participaram alguns dos principais representantes da elite das telecomunicações tupiniquins e de cuja ata não consta a presença de nenhum representante do Minicom.

b) Pelo volume de recursos envolvidos na implantação dos TAPs e PSTs e, devido ao rombo que isso causaria no bolso dos usuários dos serviços de telefonia, o PGMU deveria ter sido discutido novamente com a população em novas audiências públicas, e não ficar restrito a uma reunião de caciques em Brasília.

c) O Artigo 86 da LGT proíbe que as concessionárias de telefonia fixa explorem serviços de comunicação de dados.

d) O Artigo 103 da LGT proíbe a prática de subsídios cruzados.

e) Os serviços de comunicação de dados são prestados em regime privado, e por isso não podem ser incluídos em metas de universalização obrigatórias.

f) O PGMU foi analisado pelo Conselho Consultivo da Anatel. Apesar das irregularidades flagrantes, nenhum de seus membros se manifestou sobre o assunto, nem mesmo os supostos representantes dos usuários, a exemplo do que já havia ocorrido em 2001 com os PGMUs inventados para a licitação do Fust, que resultaram nos decretos 3.753 e 3.754.

g) O inciso III do Artigo 5º do Decreto 4.769 transfere para as concessionárias de telefonia a tarefa de implantar os serviços de comunicação de dados previstos no Artigo 5º da Lei 9.998 (Fust). Com isso, para se obter uma área de concessão na concorrência do Serviço de Comunicação Digital (SCD) bastará firmar uma parceria com a concessionária de telefonia da região licitada, pois todos os recursos necessários para a prestação do SCD já terão sido instalados pelas concessionárias com os respectivos custos repassados às tarifas de telefonia pública.

g) Esta manobra de transferir os serviços de comunicação de dados do Fust às concessionárias de telefonia já foi tentada no Decreto 2.592, e só não emplacou por causa da liminar obtida na Justiça pelos deputados Sérgio Miranda e Walter Pinheiro.

h) Escamotear textos em documentos públicos pode ser considerado ato de improbidade administrativa e crime de falsidade ideológica.

i) Transformar microcomputadores em ‘funções complementares’ de telefones públicos em decreto presidencial é uma afronta ao presidente Lula, que não merecia esta traição histórica de seus subalternos.

Um dia, em Brasília, a ficha ainda vai acabar caindo.

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