Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Os riscos do apartheid digital

Nos últimos dias, os usuários de internet no Brasil foram surpreendidos com o anúncio da Vivo de que contratos feitos a partir de 5 de fevereiro trariam em seu escopo novas regras de franquia de dados para a banda larga fixa. A medida já é praticada pela Oi e pela Net, com base em resolução da Anatel que regulamenta o serviço de comunicação multimídia. Isso quer dizer que a internet banda larga brasileira via redes fixas, uma das mais caras do mundo, poderia passar a adotar um sistema parecido com o utilizado na conexão via celulares: após alcançar limite de dados estabelecido por contrato, o acesso poderia ter velocidade reduzida ou até mesmo ser cortado. O usuário deveria optar entre planos com variação entre 80 GB e 130 GB e preços de acordo com a quota contratada.

No cenário atual, no qual a internet se tornou uma fonte de exercício de direitos, aprendizado e entretenimento, a limitação seria negativa para milhares de usuários. Serviços de streaming de vídeos como YouTube e Netflix, que necessitam de uma quantidade significativa de dados para funcionar efetivamente, seriam severamente afetados. O número de envios e downloads de arquivos pesados, como vídeos, imagens, textos ilustrativos e áudios teriam que ser controlados pelo usuário e sua família. Além disso, a decisão tomada pelas empresas poderia prejudicar milhares de estudantes que fazem uso da Educação à Distância (EAD), empreendedores autônomos que utilizam a internet como trabalho e pequenas escolas e projetos sociais que se conectam através de redes domésticas. Ou seja, a medida afetaria decisivamente nossa relação com a internet, algo essencial para a sociedade de hoje.

É importante frisar que essa proposta de modelo de negócio não é nova e existe em vários países. Mas não é por isso que tal perspectiva estaria correta, especialmente se levarmos em conta duas premissas: 1) mais do que uma relação comercial, a internet tem se consolidado como um serviço essencial para a sociedade e 2) a forma como usamos a rede está intimamente ligada ao seu crescimento. Ou seja: o alto tráfego de informações, de serviços de e-gov, de cursos à distância, é consequência da maneira aberta e abrangente de usar a rede mundial de computadores. Liberdade, inclusive, é uma palavra intrinsecamente associada à internet.

Apesar de o art. 63 do Regulamento dos Serviços de Comunicação Multimídia da Anatel permitir a instituição de modelo de negócio com limitação na conexão de dados, tal princípio colide com o Marco Civil da Internet e o Código de Defesa do Consumidor. O Marco Civil, em seu art. 7º, determina que a suspensão da conexão da internet só pode ser feita por débito decorrente diretamente da utilização. Já o Código de Defesa do Consumidor, no seu art. 39, veda práticas abusivas de fornecedores de serviços. Além disso, a prática comercial de imposição de limitação fere a neutralidade da rede, que veda que os prestadores de serviço de conexão à internet tenham conhecimento sobre a natureza de dado utilizado pelo usuário, ou privilegiem um tipo de dado em detrimento de outro, proibindo a cobrança de modo diferenciado consumo de bytes realizado.

Medidas contra a ação abusiva

Somada às ilegalidades acima citadas, existe a segregação social que a conexão com limite de dados pode acarretar na utilização da internet em nosso país, ferindo a concepção da rede como plataforma para o exercício de direitos. Se tal perspectiva for colocada em prática, ficará ainda maior a lacuna entre aqueles que têm e os que não têm acesso à internet. Somente quem possuir melhores condições financeiras estará apto a desfrutar das melhores possibilidades de conteúdo disponível na rede.

Através da restrição de dados, as operadoras de telecomunicação teriam mais um fator a considerar em suas propostas de vendas. Se antes o principal fator alterador do preço dos planos era a velocidade, o limite da franquia também poderia entrar na fórmula. Existiria ainda o perigo da formação de falsas ilusões de benefícios produzidos pelas empresas, como ofertas de internet ilimitada exclusivamente para órgãos públicos ou o fornecimento de maior franquia de dados se adotado algum plano conjunto de telecomunicação (como a soma dos serviços de TV a cabo, telefone e internet).

Decisões como essas não podem ser tomadas sem a discussão do assunto com os usuários. A resolução passou despercebida em várias áreas da mídia e muitos não entendem como a ação afetaria a utilização da rede. A Anatel se pronunciou dizendo que a proposta poderia ser positiva, promovendo um equilíbrio entre aqueles que usam mais e os que utilizam menos a internet. Essa perspectiva, posteriormente criticada pelo governo federal, parece não levar em consideração que a qualidade da internet do Brasil é baixa e o perfil de milhares de usuários brasileiros que necessitam da internet diariamente não coopera com o modelo proposto.

Medidas contra a ação das empresas já estão sendo tomadas em todo o Brasil. Claudia Silvana, presidente da Associação Brasileira de Procons, comentou que a ação colide com os direitos dos consumidores e fere o Marco Civil da Internet. Diversos órgãos de defesa dos direitos do consumidor do país já entraram com ações contra a medida e o Idec, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, entrou com um processo na Justiça contra a restrição. A Proteste, Associação Brasileira de Defesa do Cosumidor, está com uma petição on-line que já conta com mais de 155 mil assinaturas e contetao bloqueio da internet fixa. Além do apoio também de jornais, revistas e personalidades do YouTube, o grupo “Movimento Internet Sem Limites” surgiu no Facebook como uma forma de despertar o conhecimento e procurar soluções contra a medida. Em apenas uma semana, a página já conta com mais de 300 mil curtidas.

Portanto, diante dessa situação, é importante que a população discuta o assunto e exija de nossas autoridades medidas contra a ação abusiva. Afinal, a internet é uma porta de entrada a um mundo em constante crescimento e é nossa responsabilidade mantê-la aberta a todos.

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Daniel Flores, Marcos Urupá e Fernando Oliveira Paulino, respectivamente, graduando na Faculdade de Comunicação da UnB, mestrando na FAC-UnB e diretor da FAC-UnB