Com todo o respeito, era boa. Quero dizer: a campanha das lojas C&A para o presente Dia dos Namorados era engraçada. O mote era uma palavra de ordem: ‘Papai-Mamãe Não!’. Como não mais vivemos em clima de Maio de 68, quando as palavras de ordem é que protestavam contra o ‘sistema’, houve protestos contra a palavra de ordem publicitária (voltarei a isso, à palavra de ordem publicitária).
Reclamaram ao Conar. Como resultado, o mote ‘Papai-Mamãe Não’ foi suspenso antes que o Dia dos Namorados, o próprio, raiasse. Claro que havia, vejamos, uma carga libidinal, mais que libidinosa, em todas as mensagens. Vi uma coisa ali outra ali, como as fotos dos encartes e folhetos que a Folha de S.Paulo reproduziu numa reportagem (veja abaixo) e alguns filmetes que ainda estão no YouTube.
O vídeo nunca é objeto desta coluna, como bem sabe o improvável leitor, mas, excepcionalmente, cuidei de verificar esses vídeos em particular, apenas para efeitos do que eu chamaria tecnicamente de análise do discurso. Eu queria ter contato com o discurso explícito. A modelo que faz os comerciais fala, a certa altura, que o Dia dos Namorados é dia de colocar ‘o eu para fora’, algo assim, num persistente convite à explicitação dos argumentos. Tendo-os visto devidamente explicitados, descartei os vídeos.
Não se pode dizer que haja, nesse material todo, algo de notadamente chocante ou abusivo. Perto do que temos todos os dias por aí, não é nada excessivamente pornográfico. Ainda assim, o ‘Papai-Mamãe Não!’ é uma página do passado. Está virada. Cancelada. Uma diversão a menos.
As fotos do caderno ‘Cotidiano’ da Folha mostram bem o ânimo geral – e a cara – da campanha.
A mesma Folha de sábado (7/6) trouxe também uma foto de vitrine na cidade de Vitória (ES), onde houve mais indignação entre os fregueses. O crédito é do fotógrafo Nestor Muller, do diário A Gazeta:
Como se vê na fotografia, as pernas (são pernas daqueles manequins de plástico que se usam em lojas de roupas) insinuam que, por baixo de algo parecido com cobertores, pessoas se dedicam à prática de algum esporte carnal que chocou a clientela. (A legenda diz apenas: ‘Vitrine da C&A, em shopping de Vitória, que mostra casal deitado em moitas simulando ato sexual’.) A reportagem da Folha, assinada por Cíntia Acayaba, dá conta de que a C&A suspendeu folhetos e vitrines – e retirou dos filmes a alusão aos termos ‘papai’ e ‘mamãe’. A reportagem narra acontecidos quase que inacreditáveis:
‘No Espírito Santo, a campanha foi alvo ontem de ação da Delegacia do Consumidor e do Procon. Todos os encartes e materiais da campanha, como banners e faixas, foram recolhidos nas três lojas da C&A no estado – duas em Vitória e uma em Vila Velha. Os três gerentes das lojas foram presos em flagrante por ultraje público ao pudor e propaganda enganosa e abusiva. Foram liberados após pagamento de fiança de R$ 1.000 cada um. A operação começou após denúncia de dois pais, que disseram ter flagrado filhos de seis e de 11 anos com o encarte. `Os pais encontraram as crianças manipulando dados que vinham com os encartes e que incitavam práticas sexuais´, disse Denise Izaita Pinto, gerente do Procon do Espírito Santo.’
A matéria prossegue:
‘Em páginas das 26 folhas do encarte aparecem bonecos que formam um casal. Em cima dos bonecos, que praticam ações como dar as mãos e passear com cães, há um sinal de proibido. Sob cenas de sexo há sinais de exclamação. `Isso foi caracterizado como uma publicidade que ofende a moral e os costumes´, disse o delegado Darcy Arruda, titular da Delegacia do Consumidor. Ao final do encarte, há `games do amor´, com dadinhos recortáveis. Em um dos dados há verbos como beijar e massagear. No outro dado, há partes do corpo, como a boca e os seios. Há também um caça-palavras para localizar expressões como orgasmo múltiplo.’
Será que os fregueses, que sempre têm razão, também têm razão agora? A própria Folha destacou outra repórter, Cláudia Collucci, em São Paulo, para ouvir os responsáveis pelas peças publicitárias:
‘O presidente da agência DM9DDB, Sergio Valente, não considera ofensivos nem o encarte publicitário e nem campanha de TV da C&A para o Dia dos Namorados, vetados por órgãos de defesa do consumidor. `Não fizemos uma campanha ofensiva e nem tivemos a intenção de ofender ninguém. Mas não questionamos as determinações, apenas obedecemos´, afirmou ontem. Valente disse que a campanha de TV continuará no ar, com a retirada da expressão que foi considerada ofensiva (`Papai-Mamãe Não!´). `É uma doideira. Qualquer Caras, qualquer Vale a Pena Ver de Novo, qualquer revista, qualquer jornal, você vai ver fotos mais agressivas´, alega Valente.’ (…) ‘Valente disse que não houve problemas com a campanha publicitária no resto do país. `É uma pena que aconteceu isso lá [em Vitória]. É uma pena que a propaganda esteja passado por esse exagero de censura´.’
Qual dos lados está certo?
A palavra ‘censura’, aplicada a essa situação, merece um breve comentário. Naturalmente, o termo admite esse emprego, mas, nos debates recentes sobre liberdade de expressão, a palavra ‘censura’ vem designando cada vez mais um veto específico: um veto prévio a qualquer veiculação (ou seja, antes que o público possa conhecer a mensagem), que não admite recurso, imposto ou garantido por uma autoridade (quase sempre estatal) que não dialoga. Nesse caso, quem pleiteou a suspensão da campanha foram os clientes da loja, e as decisões foram adotadas no âmbito do Conar, o Conselho de Auto-regulamentação Publicitária, que conta com representantes de agências, de veículos de do público. O Estado não interfere no Conar. Portanto, o que houve aí não foi propriamente a reedição da velha censura.
De outro lado, é evidente que se impôs, contra a criação publicitária, algum tipo de freio. Fossem os folhetos, as vitrines e os filmes produtos de expressão puramente artística, estaríamos, sim, diante de um cerceamento indevido, imposto por uma aparente maioria contra um ou dois artistas. Indevido. Nem a mais esmagadora maioria tem o direito de impedir a livre manifestação artística. Contudo, como se trata de mensagem publicitária, de propaganda, cuja finalidade não é a arte, mas a venda, o raciocínio não é exatamente esse.
No caso de uma propaganda que irrita o consumidor, o próprio anunciante, interessado em angariar a simpatia (e as economias) da clientela, toma a iniciativa de corrigir o curso. Mas qual o critério para saber o que agride e o que não agride o público? Ora, o critério muito mais do humor dominante entre os clientes e muito menos da opinião do publicitário. Isso significa que, sempre, a deliberação final sobre o que vai ou não vai ser veiculado em matéria de propaganda decorre de um cálculo predominantemente comercial, não artístico, a partir da reação do público. Nesse sentido, embora exista aí um veto, não há um cerceamento à liberdade de expressão, quer dizer, a liberdade de expressão, como princípio, não sai agredida do episódio. A retirada do ar de campanhas publicitárias, por decisão autônoma, segundo os parâmetros da auto-regulamentação, é um ato da normalidade. Que, no limite, protege a credibilidade do mercado anunciante.
Isto posto, passemos ao que é mais interessante: as imagens fixas que mudam de lugar.
‘A gente não sabe o lugar certo de colocar o desejo’. Ou sabe?
É de Caetano Veloso o verso acima, entre aspas. Está na canção Pecado Original. Onde mesmo cabe o desejo? Será que a vitrine da C&A, em Vitória, é o lugar certo para que se ponha o tipo de desejo que lá se instalou? A freguesia parece acreditar que não. O publicitário, que sim. O próprio lojista, que aprovou a campanha, também pensava que sim, ao menos no início.
Qual o lugar para uma imagem mais ou menos erótica? Embora tudo mude de lugar, há pontos rituais mais ou menos fixos para isso. São postos de significação, por assim dizer. Eles parecem óbvios, à primeira vista, mas não são tão óbvios. Comportam armadilhas.
Há lugares e tempos – que são outra forma de lugar – para o desejo e para as suas representações mais explícitas. Comecemos pelos lugares que se distribuem no tempo.
Falávamos em Dia dos Namorados. Se, como comparação, pensarmos no Dia das Mães, veremos que seria um tanto deslocado que alguém, numa propaganda, sugerisse que os filhos presenteassem suas progenitoras com calcinhas excitantes. Não cairia bem. A mesma jovem senhora que recebe com um sorriso um lingerie erótico no Dia dos Namorados, gostará de ganhar algo como um colar de pérolas ou mesmo uma panela de pressão no Dia das Mães. As pessoas aí são as mesmas – a personagem que elas encarnam são outras. ‘Papai-Mamãe Não!’ é um exemplo e tanto. Pode ser um slogan engraçado para o Dia dos Namorados, mas acarretaria uma catástrofe no Dia dos Pais. O que é óbvio.
E as armadilhas?
Talvez a loja em questão tenha, em certas cidades, uma freqüência um tanto mais familiar do que em outras. Há reclamações de mães indignadas com a situação de suas filhas que, inadvertidamente, tiveram contato com as peças impressas ditas provocantes. Essas mães deram de cara com uma imagem fixa (os folhetos, os encartes, a vitrine) fora de lugar e, aí, a mensagem que tinha a intenção de excitar o impulso de consumo acabou despertando a fúria cidadã. Em vez de se dirigir à caixa registradora, essa cliente foi impelida a buscar o Conar ou o Procon, ainda que, pessoalmente, nada tenha contra as brincadeiras íntimas de casais apaixonados. A armadilha é de lugar, não é de moral.
Na opinião de quem achou ruim, aquele não é o lugar para se colocar aquele tipo de desejo, mas nada contra o desejo. Não se pode acusar alguém assim de censor ou censora.
Há, porém, aqueles que vão chamar a polícia: ‘Aqui não é lugar pra esse tipo de coisa!’. Aí existe uma ponta mais exacerbada de intolerância. Não nos esqueçamos de que, sempre, o moralismo se esconde atrás do argumento da adequação. E dessa vez também houve elementos de moralismo. Para muita gente, o lugar do desejo é na cadeia.
A palavra de ordem publicitária
O que leva tanta dose de desejo, em imagens concentradas, a escapar assim, a ocupar assim o lugar que não lhe pertencia? A psicanalista Maria Rita Kehl sabe responder. Eu não sei responder com a mesma propriedade, mas há algumas palavras que posso pronunciar.
Em 1968, o desejo virou pichação nos muros de Paris, como todo mundo não se cansa de rememorar. ‘A imaginação ao poder’, dizia uma das mais famosas. Ou: ‘Trabalhadores do país, divirtam-se!’. Outra boa: ‘A barricada fecha a rua, mas abre a via’. O poder, naqueles tempos, tremia diante de uma boa palavra de ordem. Naqueles tempos. Naqueles tempos, o poder ordenava a contenção, a disciplina, a castração. Sublimar era a via autorizada de prazer. Hoje é diferente.
Conforme foi se fortalecendo como indústria, a lógica do consumo praticamente ‘tomou o poder’. Agora, toda a sociedade se converteu ao espetáculo indiscriminado e generalizado. É aí que reluz a publicidade. Hoje, o próprio poder fala a língua da publicidade. Não é como doutrina ou como ideologia que os políticos se oferecem, mas como mercadorias desejáveis e, nos casos mais agressivos, desejantes.
De fato, como propunham os estudantes de 1968, a imaginação tomou o poder, mas não foi aquela imaginação romântica que tomou o poder. Quem tomou o poder foi uma imaginação industrializada ou, mais propriamente, foi a indústria do imaginário. E ela impõe o gozo em vez de interditá-lo. Parece uma loucura – e é mesmo. Mas essa é a ordem.
É por imperativos que a publicidade se dirige às pessoas e estas, que antes se sentiam culpadas quando se excediam nos prazeres, hoje amargam a culpa quando não gozam todas as possibilidades ao mesmo tempo. Foi assim que a linguagem das palavras de ordem mais aparentemente libertárias se converteu na linguagem publicitária mais automática. ‘No limits’, por exemplo, é slogan de uma marca de cigarros. O apelo ao gozo, ou, como muitos já dizem, o imperativo do gozo, dá as cartas. São cartas irresistíveis.
E pensar que, em 68, uma das pichações dizia ‘A mercadoria é o ópio do povo’. As ironias são infinitas. Para responder, enfim, àquela pergunta – o que leva tanta dose de desejo, em imagens concentradas, a escapar assim, a ocupar assim o lugar que não lhe pertencia? –, poderíamos dizer apenas que as imagens desejantes invadem os lugares que não lhe pertenciam porque elas, como o mercado, vivem de se expandir.
Difícil saber aonde esse trem – do desejo transformado na indústria das imagens – nos levará, mas é nele que estamos todos embarcados. Essa história da C&A era apenas uma anedota inofensiva. Uma piada de salão, digo, de vitrine.
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Formado em direito e jornalismo pela Universidade de São Paulo, é doutor em Ciências da Comunicação pela mesma universidade e autor de alguns livros, entre eles Sobre Ética e Imprensa (Companhia das Letras, 2000); foi presidente da Radiobrás entre 2003 e 2007