Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Para criar e recriar cultura

‘No futuro, todos teremos os nossos 140 caracteres de fama’, diria Andy Warhol, se vivo fosse e participasse de um site que já conta com mais de cem milhões de pessoas no mundo. O Twitter, espécie de microblog em que seus usuários podem escrever textos de até 140 toques, surgiu em 2006 como uma rede social para trocas de mensagens curtas – chamadas ‘tweets’ –, quase instantâneas, com grupos de amigos – chamados ‘seguidores’. Desde então, a criatividade dos internautas fez do Twitter uma aplicação de marketing, de pesquisa de opinião, de campanha política, de jornalismo ou de mobilização. O Twitter, como bem compreenderia Warhol, tornou-se pop. E se tornou, também, uma ferramenta utilizada para gerar cultura e produzir arte.

O valor diferenciado do Twitter para a cultura contemporânea ainda é incerto, e há quem questione a inovação das manifestações artísticas do microblog. Mas, recentemente, o site recebeu respaldo de artes tradicionalmente mais nobres. A Biblioteca do Congresso, instituição bicentenária localizada em Washington, Estados Unidos, anunciou no início de abril que pretende adquirir e arquivar todos os textos já publicados no microblog. ‘Todos’ quer dizer tanto a comemoração de Barack Obama na vitória das eleições presidenciais americanas (‘Nós acabamos de fazer História’, escreveu) quanto aquela conversa sem pé nem cabeça sobre futebol, Big Brother ou Lost. Apesar de a maioria dos mais de 50 milhões de tweets diários ser aparentemente irrelevante, o objetivo da biblioteca é tentar mapear os costumes dos usuários de internet. E isso não tem nada de irrelevante.

Destino fatídico

– É preciso desfazer certos dogmas antimodernidade, de que a internet é destruidora de cultura. Isso é uma visão conservadora e um tanto anacrônica – diz Marcos Vinicios Vilaça, presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL).

A ABL foi outra instituição que percebeu o valor do Twitter. Em março, a Academia lançou um concurso de microcontos com o limite de 140 caracteres. O prazo de inscrição vai até 30 de abril, e até agora cerca de 1.500 textos já foram enviados para a avaliação dos acadêmicos. O primeiro lugar vai ganhar um ‘Vocabulário ortográfico da língua portuguesa’, o segundo, um minidicionário da ABL, e o terceiro, um minidicionário do imortal Evanildo Bechara.

– Eu estou muito satisfeito com a repercussão e com a compreensão do concurso. Pode parecer uma coisa afrontosa à intelectualidade escrever um conto com tão poucos toques, mas a lógica foi outra: muita gente valorizou a ideia como um esforço de síntese – explica Vilaça. – Para mim, o mais importante é ofertar uma nova oportunidade de se ter acesso à Academia, e uma nova possibilidade de se ter acesso à produção cultural.

Mas talvez o modelo mais significativo seja o proposto pela Royal Shakespeare Company, uma das mais importantes companhias de teatro do mundo. Há poucos dias, o grupo inglês criado em 1879 se juntou à empresa de conteúdo para celulares Mudlark e começou a reescrever Romeu e Julieta, de Shakespeare, pelo Twitter. O projeto se chama Such Tweet Sorrow (algo como ‘Este lamento gorjeado’). O resultado, um sacrilégio para os puristas, mas perfeitamente moderno para adolescentes, é sem dúvida hilário. O nome de Julieta Capuleto na ferramenta é @julietcap16 . Ela segue as páginas de Shakira, Justin Timberlake, Alicia Keys e de seu primo, Teobaldo Capuleto. Na sexta-feira (23/4), ela escreveu sobre a festa que estava prestes a começar em sua casa, justamente aquela em que se apaixona por Romeu – ao menos na versão oficial. ‘Os garotos estão aqui? Ah, meu Deus’, disse Julieta, toda serelepe. Já Romeu Montecchio atende pelo apelido @romeo_mo . Muitos de seus textos são conversas com o amigo Mercúrio sobre seu prazer em jogar o videogame Xbox. Antes da festa na casa dos Capuleto, ele escreveu: ‘Esperando pelo táxi com Mercúrio e com uma bela cerveja. Dias felizes’.

O bacana da adaptação é poder acompanhar o ponto de vista de cada personagem, numa linguagem coloquial e contemporânea. São atores da própria Royal Shakespeare Company que escrevem os textos no Twitter, a partir de um roteiro elaborado pela companhia. Julieta, por exemplo, é vivida por Charlotte Wakefield, atriz que recentemente interpretou a Wendla de O despertar da primavera, no West End londrino. Suas aventuras, da paixão por Romeu até o fatídico destino dos amantes, ainda vão durar três semanas.

Veneno impresso

– O Twitter é um instrumento para desenvolver tramas, enredos, de certa forma provocar, exercitar malícia e ironia. Ele cria duplicidade, ambiguidade. Nos ensina a não ser tão lineares – diz o poeta gaúcho Fabrício Carpinejar.

Em 2009, Carpinejar lançou o livro www.twitter.com/carpinejar (Bertrand Brasil), uma compilação de 416 textos escritos em seu Twitter. Hoje, ele continua usando a ferramenta e já conta com 25,4 mil seguidores. Entre suas últimas mensagens estão ‘Canalha pede desculpa antecipado. Cafajeste pede desculpa tarde demais’, ‘Gaúcho quando vem ao RJ tem a sensação que passou a vida inteira num internato’ e ‘Quando eu me tiro para dançar nunca me devolvo’.

– Eu coloco lampejos do momento. Eu acredito que o Twitter serve para sublimar detalhes e revelar insignificâncias. É um rascunho, mas com a diferença de ser digital. A Clarice Lispector, em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, usou como rascunhos várias de suas crônicas. Ela transformou crônicas da primeira pessoa para a terceira pessoa. É possível usar o Twitter para fazer o mesmo – explica. – Acho que será natural que eu publique um segundo livro com textos do Twitter. Afinal, o veneno tem que ser impresso.

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Da Redação de O Globo