Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Plínio Bortolotti

‘O repórter-fotográfico Evilázio Bezerra e a repórter Fátima Guimarães cobriam outra pauta quando foram avisados que um assalto seguido de morte acabara de acontecer no bairro Aldeota. Seguiram imediatamente para lá. ‘Comecei a fotografar na linha do jornal’ (isto é, de modo a não expor imagens chocantes de crimes), me diz Evilázio, ‘foi quando duas moças passaram por mim e vi uma delas ‘desabar’ na frente do prédio, consegui fazer duas fotos rapidamente’. O repórter-fotográfico reagiu instintivamente, com faz qualquer profissional em situação semelhante. A fotografia mostra o desespero estampando no rosto de uma jovem de 17 anos e seu choro convulsivo; à sua frente o corpo do engenheiro do engenheiro civil Romero Teixeira, de 49 anos, do qual aparecem apenas as pernas. A moça era enteada de Romero. Layla Siqueira o considerava como pai, pois convivia com ele desde que era uma criança de três anos de idade. O engenheiro foi assassinado quando chegava ao prédio em que mora a mãe, para visitá-la.

No jornal, Evilázio entregou as fotos a Marcos Tardin, que chefiava a Redação no domingo. ‘A imagem me impressionou, mas eu não estava seguro em publicá-la’, diz Tardin. Ele falou com vários colegas na Redação antes de tomar a decisão: alguns foram contra, outros achavam que a foto devia ser publicada, vários não quiseram opinar. Ele também consultou o editor-chefe, Erick Guimarães, e o diretor-geral de Jornalismo, Arlen Medina Néri. Nesta semana, recebi oito manifestações de leitores sobre o assunto. Todas criticando a publicação da foto. Os argumentos vão desde a condenação do fotógrafo: ‘Aética, sensacionalista, desumana, de mau gosto e oportunista a foto feita por este senhor (Evilázio)’, a argumentos legais, contrapondo o ‘direito à informação’ à ‘dignidade da pessoa humana’, como disse um advogado. Esta carta resume as demais: ‘Haveria realmente necessidade de divulgar uma foto daquela em um momento de tanta dor? Será que o respeito à dor, à individualidade, ao sofrimento não foram invadidos?’ Outro leitor revela a identificação direta com a vítima, dizendo-se ‘perplexo’, com o ‘desrespeito’ à família e ao homem morto, pois ‘qualquer um de nós’ poderia estar no lugar dele.

Nos dois primeiros parágrafos fiz questão de relatar de modo objetivo a forma como se chegou à decisão de publicar a foto, a partir do momento em que os dois repórteres foram acionados. Muitos leitores não têm idéia de como se dá esse processo e acham que os jornalistas respondem aos fatos de forma mecânica ou pensando na manchete que ‘vende mais’. Mas, vejam o que diz Marcos Tardin, o jornalista que, em última instância, decidiu pela publicação. ‘Eu sabia que estava diante de uma fotografia importante, mas não foi uma decisão fácil; a dúvida ainda me acompanhou por algum tempo; agora, avalio que foi uma das boas decisões que tomei como jornalista’. E completa: ‘Eu sei que a fotografia choca, mas choca porque tem de chocar e não por sensacionalismo’. (Tardin diz ainda ter feito um corte na foto para suprimir uma parede ensangüentada que aparecia no lado esquerdo da imagem.) Pergunto a Evilázio o que faria se a decisão coubesse a ele: ‘Seria hipócrita se dissesse que não publicaria’. Para o repórter-fotográfico, a fotografia cumpre o papel de exprimir cruamente a violência que está submetendo a todos.

A mulher de Romero, mãe de Layla, a advogada Rita de Cássia de Souza, tem opinião diferente da manifestada pelos leitores. ‘Acho que vocês mostraram a realidade. Ficou a dor. Acho que tem que colocar (a foto) para chocar, sim. A gente sabe quando é sensacionalismo e quando não é’, disse ela ao O Povo (25/4). Layla disse ter sentido ‘um certo incômodo’ por estar ‘sofrendo muito’, sem criticar a publicação. Evilázio, quando soube da reação das pessoas diretamente atingidas, disse ter-se sentido ‘aliviado’.

Também consultei estudiosos do assunto. O professor Silas de Paula, do Curso de Comunicação da UFC, afirma que o fotojornalismo ‘obriga os profissionais da área a enquadrar a dor’ e fala da existência de uma ‘fúria iconofágica (fome por imagens) do leitor contemporâneo’, mas diz haver uma linha demarcatória a ser observada: ‘Existe um (limite) bem simples. Nós, profissionais da mídia, deveríamos sempre pensar em qual o tipo de imagem não nos indignaria se a tragédia tivesse acontecido em nossa família’.

Jaime Gonçalves Filho, jornalista, integrante da equipe da pesquisa Mídia e Violência, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) da Universidade Candido Mendes (Rio), diz o seguinte: ‘(A foto) de alguma forma, aproxima o leitor daquele drama, faz com que ele se identifique com o desespero (da família). Essa estratégia é questionável, mas funciona’. Jaime Gonçalves vê semelhança desta situação com uma foto publicada no ano passado na capa do Globo, a mãe segurando no colo o filho morto, assassinado no centro do Rio: ‘Seria apenas mais um crime, já que as palavras não dão conta de reproduzir aquilo, por mais que tentem; a foto evitou a banalização. Isso também serve para a fotografia publicada no O POVO. Se alguma coisa há de positivo em uma foto tão chocante, é a manifestação dos leitores sobre a publicação e as lições que o jornal pode tirar do acontecimento’.

Sílvia Ramos, cientista social e coordenadora do Cesec, diz que, no Rio de Janeiro, famílias de vítimas de violência iniciaram um movimento para convencer outras pessoas na mesma situação a dar depoimentos, aparecer na TV, falar ao rádio e a deixar que fotos sejam usadas pela imprensa, ‘exatamente porque sabem que, embora doloroso, é importante para ajudar a prevenir novas tragédias’.

Há outro aspecto importante a ser abordado. Nas manifestações dos leitores, há um traço marcante: a justa preocupação com a situação trágica pela qual passa a família do engenheiro assassinado, seguida de uma identificação direta com eles. Sem que isso minimize a brutalidade do fato, o horror dos leitores ficou mais evidente porque a violência atingiu alguém que faz parte do mesmo círculo social. Se O Povo não faz isso, é comum outros jornais e programas de televisão mostrarem cadáveres diariamente, e pouca gente se incomoda, pois os mortos são de uma periferia distante. É compreensível que a reação seja maior quando algo nos atinge mais de perto; faço o registro por ver a necessidade de aprofundar a reflexão em torno assunto.’