Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Poder da imprensa, o ‘tribunal de exceção’

A Constituição da República Federativa do Brasil em seu Título I – Dos princípios fundamentais, Art. 2º, diz: ‘São poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.’

Como se vê, a mídia não é um dos poderes constitucionais, mas age como se fosse o poder judiciário, acusando e julgando pessoas, diariamente, na telinha e nos jornais, levando o povo a execrá-las. O midiático é antes de tudo um fraco, um pobre coitado que vive das migalhas (das trinta moedas) que lhe pagam para enganar e iludir o povo, em troca de sua honestidade, de sua honorabilidade, de sua humanidade, de sua honra etc.

Ao midiático não interessa se vai prejudicar alguém quando produz uma matéria. O seu objetivo é bem maior (créditos para o poeta Jorge Maia, Fronteiras do Universo nº 2): atender à necessidade de quem lhe está pagando as trinta moedas. Se o material a ser produzido é nobre, é pobre, é mesquinho, não interessa; o importante é atingir o objetivo colimado. São uns sicários.

Fico a imaginar que bodegas são essas que estão ‘formando’ nossos filhos com ‘…o intumescimento inane da idéia’ (créditos para Homero Pires, Junqueira Freire, p. 192).

A dignidade da pessoa humana

Nesses botecos de formadores de midiáticos não existe cadeira de ética? E de Direito? E quem são seus mestres? São capazes? São cultos? Têm conhecimento do que seja ética? São admitidos em concursos públicos como nas universidades federais? Têm notório conhecimento e notório saber? Ou são apadrinhados? O que eles estão ensinando a essas crianças sobre a dignidade da pessoa humana? Sobre os direitos e deveres individuais e coletivos constituídos? Quer me parecer que alguém precisa auditar essas biroscas, pois elas estão formando verdadeiros sicários.

Vejam a seguir alguns artigos de nossa Constituição, os quais, esses meninos e meninas, alguns imberbes, outros nem tanto, jogam na lata do lixo, quando o intuito é produzir a matéria para quem lhes está pagando, não importando se estão sendo éticos ou não. O que importa é o furo de reportagem, é a audiência, é o show business:

Título I, inciso III, cita um dos fundamentos que sustentam a nossa Constituição: a dignidade da pessoa humana. Para eles, isso não existe quando se opõe ao objetivo a ser alcançado: a produção da matéria.

Julgar é competência do júri

Temos ainda no Título II – Capítulo I – Dos direitos e deveres individuais e coletivos:

III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

Alguém precisa dizer isso a eles.

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

Isso também precisa ser ensinado. E muito.

XXXVII – não haverá juízo ou tribunal de exceção;

Nem para eles próprios, nunca. Será que ensinaram isso? Pois eles são o próprio tribunal de exceção. Todos os dias estão na telinha e nos jornais julgando e condenando as pessoas, o que é inadmissível. É triste, muito triste.

XXXVIII – é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:

d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;

Note-se que a mídia não é citada, logo não pode exercer essa função que é de competência do júri. A mídia não pode julgar. Ensinem se forem capazes.

Contraditório e ampla defesa

XLVII – Não haverá penas:

a) de morte;

Atente para o fato de que a mídia, quando lhe interessa, leva o povo a linchar, literalmente, as pessoas, manobrando, induzindo-o, muitas vezes apenas para produzir um furo de reportagem. Vejam o caso da Escola de Base, de São Paulo. Vejam o assassinato da princesa Diana pela mídia. Vejam o caso dos pais da criança inglesa Madeleine – a mídia inglesa pagou uma indenização, por danos morais, aos pais da criança, por ter afirmado que eles a tinham matado. Aprendam, aprendam.

LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;

Esqueceram de dizer a eles, os midiáticos, que a mídia não é essa autoridade competente. Ensinem, ensinem, se é que vocês têm cacife para isso.

LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

Esqueceram de ensinar isso nas ‘faculdades’ de comunicação. Antes, tem que haver um julgamento pelo Tribunal do Júri, e não pela mídia.

LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados, em geral, são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

Também não ensinaram isso. O que é contraditório, vocês sabem? E ampla defesa?

Direito a permanecer calado

LVI – são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;

É só o que a mídia faz.

LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

Faltou ensinar isso também. Aprendam que na instrução do processo criminal, só é levada em conta a posição do Ministério Público. A opinião da mídia e titica é a mesma coisa.

LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente;

Note que a autoridade judiciária competente, no caso, não é a mídia. É o juiz.

LXIII – a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada;

Observe que não há citação da obrigatoriedade de se comunicar à mídia, mas é só o que acontece.

LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;

Vocês sabiam disso? Sabiam que é um direito do preso permanecer calado e ter a assistência de seu advogado? Então por que é que vocês insistem em induzir o povo a linchar o preso, mesmo antes de ele ser julgado?

Falta de honestidade

LXIV – o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial;

E quanto aos seus algozes da mídia, como é que fica?

LXV – A prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária;

A autoridade judiciária, no caso, é o juiz. A prisão ilegal geralmente é corroborada pela mídia.

LXVI – ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;

Para contrariedade dos midiáticos. Observe que este inciso se aplica também para quando os midiáticos forem presos.

A triste realidade é que há muito mais urubu que carniça, ou seja, existem muito mais midiáticos formados pelas bodeguinhas da vida, do que notícias. Por isso, inventemos notícias, criemos notícias, procuremos notícias onde não há. É um carrossel, uma loucura.

Outro dia, quase morro de raiva. Estava assistindo a um desses telejornais quando a apresentadora perguntou ao entrevistado por que, em frente à delegacia, se postava uma multidão de curiosos.

Como eu creio que a menina em questão, a midiática, não sofre de autismo, expõe-se toda a falta de honestidade da mídia quando leva uma questão dessas ao entrevistado. Me surpreendi respondendo: porque vocês assim o quiseram. Vocês levaram o povo à porta da delegacia. No fundo no fundo, o que vocês queriam era que o povo invadisse a delegacia e matasse o casal. Pronto: uma grande reportagem estava armada.

Controle remoto, a proteção

A quem interessa ver um cadáver que acabou de levar 37 facadas, esvaindo-se em sangue, na via pública? A quem interessa ver aquela menina norte-americana sendo agredida pelas colegas a socos e a pontapés pois queriam ficar famosas enviando o vídeo pela internet? A quem interessa ver aquelas cenas dantescas dos velhinhos sendo agredidos pelas mulheres que deveriam protegê-los?

Resposta: à plebe rude, aos ignorantes, aos analfabetos, aos assistidores de novelas, aos imbecis, aos violentos, aos indolentes, aos psicopatas e aos midiáticos que produzem tal lixo e que gozam de prazer ao exibi-lo publicamente.

Vem-me à mente a imagem de uma foto, lá na África, daquela criança agonizando no chão, morrendo de fome, e os urubus (aqui, no caso, eram urubus mesmo) se aproximando devagar para comê-lo, ainda vivo. E o que fizeram os outros urubus (os midiáticos)? Ficaram esperando para tirar a melhor foto. Pode? São uns sicários. São uns doentes.

Ah! Se todos fizessem como eu. Só leio as notícias projetadas no monitor do elevador – é o tempo suficiente para subir ou descer do escritório. Mídia impressa: cancelei todas as assinaturas. Telinha: o meu grande protetor é o controle remoto; sem ele eu seria um homem morto. Quando aparece aquela comentarista de economia, que a cada dia que passa está ficando mais feia, controle nela. Quando aparecem aqueles políticos do Piauí, um que parece sempre falar com a boca cheia e que você não entende nada do que ele diz, e o outro, eloqüente, e que foi cassado por malversação do dinheiro público, controle neles. E aquele do Paraná, que tem a voz mansa e cavernosa, controle nele. E por aí vai. Ainda bem que aquele da Bahia, famoso, foi levado pelo barqueiro do rio Aqueronte, o Caronte.

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Bacharel em Direito (UFC), aposentado, Fortaleza, CE